Opinião

Breves notas sobre o filtro de relevância do recurso especial

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18 de julho de 2022, 21h07

Tão logo aprovada a EC 45/2004, que criou a repercussão geral para o recurso extraordinário, imaginava-se que não tardaria a criação de filtro similar para o recurso especial.

Contudo, a PEC apresentada para esse fim em 2005 não vingou, instaurando-se, por 18 anos, uma situação um tanto incoerente: o STF poderia não apreciar a violação a uma norma constitucional por irrelevante, mas o STJ não poderia se recusar a fazê-lo quanto a uma norma infraconstitucional.

Isso não quer dizer que o STJ tenha ficado, nessas quase duas décadas, desprovido de mecanismos para (tentar) gerir as centenas de milhares de recursos especiais que lhe são remetidos a cada ano, em especial a sistemática dos recursos repetitivos.

Esse instrumento ensejou, nos seus primeiros anos, significativa redução do número de recursos especiais recebidos pelo STJ, mas o efeito foi paliativo e, por isso, há tempos, se via um clamor (dos próprios integrantes da Corte e de muitos constitucionalistas e processualistas) por um filtro de relevância para o recurso especial.

A EC 125 de 15.07.2022 acrescenta os §§2º e 3º ao artigo 105 da Constituição Federal, criando um filtro para admissibilidade de recursos especiais baseado na "relevância das questões de direito federal infraconstitucional".

Impõe-se ao recorrente o ônus de demonstrar esse requisito nas razões recursais, presumindo-se existente em um rol de cinco hipóteses (ações penais, ações de improbidade administrativa, ações cujo valor da causa ultrapasse quinhentos salários mínimos, ações que podem gerar inelegibilidade e hipóteses em que o acórdão contrarie jurisprudência dominante no STJ), o qual pode ser alargado por pela lei que terá de ser promulgada para regulamentar o instituto.

De fato, entende-se que esses novos dispositivos não têm eficácia plena, pois dependem de regulamentação em sede infraconstitucional (no corpo do CPC), mercê da disposição "nos termos da lei", constante do §2º, a exemplo do que ocorreu quando se instituiu o filtro da repercussão geral da questão constitucional para o recurso extraordinário que a EC 45 inseriu no artigo 102, §3º e foi regulamentado pela Lei 11.418/2006). A despeito disso, estranhamente, o artigo 2º da Emenda prevê que suas novas disposições se aplicam aos recursos especiais interpostos após início da sua vigência (que se dá quando de sua publicação). Ninguém se espantará se o STJ passar a aplicar o filtro antes da sua regulamentação.

São evidentes as semelhanças entre a repercussão geral para o recurso extraordinário e a relevância para o recurso especial, embora não tenha sido utilizada a mesma terminologia. Em ambos os casos, o texto constitucional não especifica o que se entende, respectivamente, por uma matéria com repercussão geral ou com relevância, cabendo à legislação infraconstitucional fazê-lo. O artigo 1035, §1º, do CPC emprega uma fórmula vaga para exprimir o que seria uma matéria com repercussão geral, isto é, aquela revestida de relevância "do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico que ultrapassem os interesses subjetivos do processo". Fatalmente a (necessária) regulamentação da EC 125/2022 trará fórmula similar.

Em ambos os institutos há situações em que se dispensa o recorrente de demonstrar em concreto a transcendência das questões debatidas para efeito de superar o filtro. No âmbito do recurso extraordinário, presume-se a repercussão geral quando o acórdão contrariar súmula ou jurisprudência dominante ou declarar inconstitucionalidade de tratado ou lei federal (artigo 1035, §3º, I e III, CPC). Conforme acima mencionado, as hipóteses de relevância da questão no recurso especial são mais numerosas e largas, podendo ainda ser ampliadas por normas infraconstitucionais.

 De outro lado, se estabeleceu o mesmo quórum de deliberação para aplicação do filtro: dois terços dos julgadores, embora no STF a deliberação sempre caiba ao Plenário, ao passo que no STJ caberá à Turma a quem competir julgar o recurso especial.

Resta saber como ocorrerá a interação entre o filtro e os mecanismos de gerenciamento de processos repetitivos.

Com efeito, é bastante provável que se verifique no STJ situação similar àquela existente no STF, no sentido de que um dos principais elementos caracterizadores da transcendência da questão infraconstitucional repousará sobre a multiplicidade de processos em que ela é debatida. Ou seja, questão relevante se apresenta quase como sinônimo de matéria repetitiva.

Ademais, no âmbito do STF, a negativa de repercussão geral se estende a todos os demais recursos extraordinários que versem sobre a mesma matéria, os quais são barrados de forma muito mais célere (artigo 1035, §8º, CPC). É difícil imaginar que ao STJ não se atribua o mesmo poder.

Para concluir, é de se supor que os litigantes passem a adaptar suas estratégias para transpor os obstáculos para acesso ao STJ. Nas causas de valor inestimável, em que o valor da causa é fixado aleatoriamente em R$ 10 ou R$ 100 mil apenas "para efeitos fiscais", prefira-se, a partir de agora, montante superior a quinhentos salários mínimos, de modo a atrair a hipótese de relevância presumida do inciso III do artigo 105, §3º.

No mesmo sentido, passará a ser mais usada a alínea "c" do permissivo constitucional, a fim de atrair a incidência do inciso V do mesmo §3º.

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