Agruras do mundo digital

Jurisprudência deve limitar abusos ao consumidor nos contratos de adesão

Autor

12 de agosto de 2023, 9h52

O enredo é conhecido. Ao fazer uma compra, contratar um plano de saúde ou simplesmente assinar um cadastro em determinado site de e-commerce, invariavelmente surge na tela um grande texto com os "termos de uso", cuja aceitação é imprescindível para seguir com a aquisição da mercadoria ou serviço. 

Freepik
Jurisprudência deve delinear os abusos nos contratos de adesão, dizem advogados
Freepik

Os chamados contratos de adesão são utilizados para pactos em que uma das partes — no caso, o consumidor — não tem poder de barganha sobre o que está estipulado. Cabe a ele apenas aceitar, ou não, os termos estipulados unilateralmente no contrato. Como diz o Código de Defesa do Consumidor, em seu artigo 54, são negociações sem que "o consumidor possa discutir ou modificar substancialmente seu conteúdo". 

O aumento exponencial das relações digitais de consumo também reflete em um crescimento na constatação de cláusulas abusivas, posto que o consumidor, especialmente nestes casos, está em situação de extrema vulnerabilidade — não tem poder para discutir as cláusulas e, na maior parte das situações, está condicionado a aceitar os termos para obter o produto ou serviço que deseja. 

Para os advogados entrevistados pela revista eletrônica Consultor Jurídico, a venda casada — quando a empresa condiciona o acesso a determinado produto à compra de outro — permanece como a abusividade mais recorrente nos contratos de adesão. Clásulas referentes à quebra de contrato, como multa ou rescisão sem aviso prévio, além de juros abusivos estipulados por instituições financeiras, vêm em seguida.

Já em relação ao setor empresarial acionado, planos de saúde e empresas de telecomunicação dominam as litigâncias. 

Os especialistas, no entanto, afirmam que um novo arcabouço legal específico seria ineficiente, e que cabe à magistratura, por meio da jurisprudência, delinear e coibir os abusos. Hoje, além do artigo 54 do CDC, o parágrafo 2º  do mesma normativa também versa sobre a modalidade, e há uma seção inteira (II) dedicada às práticas abusivas.

"É um mal necessário na economia atualmente. Imagine se empresas como as de telefonia tivessem de individualizar os contratos. Seria inviável do ponto de vista econômico", diz a advogada Tatiana Zenni, do Zubcov Zenni Advogados. "Mas a nossa legislação é exacerbada, nosso CDC é bastante protetivo. No final das contas, o que vai fazer efeito é a análise caso a caso e a jurisprudência." 

Um ponto já consagrado e que costuma ser levado em consideração nas sentenças é o da vulnerabilidade do consumidor. "Não é uma vulnerabilidade econômica, mas técnica. Quando dizemos que o CDC é protetivo significa que no contrato está escrito determinada questão, mas a sua interpretação deve se dar levando em conta essa vulnerabilidade", diz a defensora pública federal Maíra de Carvalho Pereira Mesquita à ConJur

A vulnerabilidade, inclusive, já se consolidou no âmbito das pessoas jurídicas. A título de exemplo, em 2021, a 26ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo condenou uma grande empresa de telefonia a indenizar uma empresa que contratou seus serviços sob a fundamentação da vulnerabilidade técnica disposta no CDC.

O relator do caso, desembargador Vianna Cotrim, relembrou que já há entendimento adotado pelo Superior Tribunal de Justiça no sentido de que, diante da vulnerabilidade técnica da parte, impõe-se a aplicação das regras constantes do Código de Defesa do Consumidor.

Mesquita entende que o código contempla os problemas decorrentes dos possíveis vícios nos contratos de adesão, mas enxerga lacunas em relação ao atendimento depois das aquisições ou contratações, conhecido como "pós-venda".

"É uma questão posterior. Pessoas em maior vulnerabilidade informacional ou geracional vão ter mais dificuldade de resolver problemas que venham a existir nos contratos, e aí às vezes você quer falar com uma pessoa [por um problema no pós-venda] e não consegue. Havia esse problema com o telemarketing, e na internet continua acontecendo."

"Nos últimos anos as lides a respeito de compras online cresceram de forma exponencial. Provavelmente isso é um reflexo da mudança de hábito dos consumidores que, em razão da pandemia, passaram a procurar cada vez mais um atendimento virtual para adquirir produtos e serviços", diz o advogado Daniel Mendes Santana, do NDF advogados.

Ele reforça a posição de Mesquita de que boa parte dos desentendimentos na Justiça tem relação com o pós-venda. "Especificamente no tocante às compras pela internet, grande parte das reclamações dizem respeito a atraso na entrega do produto, descumprimento de prazos para a execução do serviço, exercício do direito de arrependimento e entrega de produto incorreto, com qualidade e características distintas do que foi adquirido."

Judiciário 'contratualista'
Os casos mais delicados que envolvem abusividades em contratos de adesão costumam ser judicializados individualmente e apenas quando o consumidor percebe o dano, segundo os especialistas consultados pela reportagem.

Há situações mais recentes, como em adesões a a programas de benefícios de cartão de crédito (tradicionalmente por pontuação), que têm levantado discussões na própria jurisprudência que, por uma questão de segurança jurídica, costuma ser mais contratualista, ou seja, respeita o que foi estipulado na hora em que o consumidor "aceitou" os termos.

Quando constatadas as abusividades, a tendência no Judiciário é a reforma, e não a nulidade do contrato.

Freepik
A despeito dos abusos recorrentes, Judiciário tende a reformar contrato, e não anulá-lo
Freepik

Nestes casos que envolvem acordos de benefícios por compras no cartão de crédito, por exemplo, há um debate sobre a penhorabilidade, ou seja, há uma pendência no Judiciário para se definir se estes pontos configuram bens transferíveis ou não.

Mesmo dentro desta seara ainda cinzenta, tem prevalecido o entendimento do que está estipulado em contrato, ainda que os juízes e desembargadores reconheçam a situação de vulnerabilidade do consumidor e as vantagens das empresas.

A natureza desses contratos joga luz sobre as contradições intrínsecas ao próprio ordenamento. Se por um lado presume-se a boa-fé das empresas, tendo em vista que não há órgão regulador (e não haveria mão de obra suficiente para fazê-lo) revisando esses contratos, por outro a ação reparadora, como a que pede danos morais por cláusulas abusivas, tem caráter didático.

Ou seja, a consolidação das boas práticas por vezes depende da própria judicialização, que é um processo custoso para empresa, consumidor e Estado.

"A gente percebe um movimento de fortalecimento [na jurisprudência] dessa questão de que 'vale o que está no contrato'. Mas mesmo em cima dessa questão, os outros princípios gerais de defesa do consumidor devem ser observados", diz o advogado Igor Marchetti, do Instituto de Defesa do Consumidor (Idec). 

Para Marchetti, a despeito de o CDC oferecer normativa ampla sobre cláusulas abusivas e contratos de adesão em geral, um ordenamento para a vertente de benefícios (como pontos por milhas) poderia orientar melhor os tribunais e reforçar certas vulnerabilidades da modalidade. "Os juízes se sentem mais à vontade de se pautar em questões já pré-fixadas", diz.

"Há um viés do Poder Judiciário de manter a continuidade de relação contratual por causa da própria saúde do Direito dos contratos. O contrato não foi pensado para ser anulado. Não é interessante que de um lado trate-se da segurança do consumidor, mas de outro aja-se contra a continuidade do contrato. É um trabalho de revisão", diz a advogada Tatiana Zenni. 

Maior volume
O crescimento das lides relacionadas aos contratos de adesão não é ponto isolado dentro do Direito Consumerista. Esse acúmulo chegou a registrar arrefecimento em meio à pandemia, com uma queda de 28% nas ações que envolvem a seara entre 2020 e 2021, mas voltou a figurar entre as principais razões de litigância na Justiça brasileira. 

Em âmbito estadual, demandas relacionadas ao consumidor figuram entre as cinco principais nos números gerais, nos números de segundo grau e nos juizados especiais.

Conforme o estudo "Justiça em Números", publicada pelo Conselho Nacional de Justiça, disputas sobre responsabilidade do fornecedor e indenização por dano moral estão em segundo lugar entre as lides estaduais. Em 2021, último ano analisado pelo CNJ, houve 3,1 milhões de ações  perdendo apenas para "obrigações/espécies de contratos" (4,1 milhões de ações).

Nos juizados especiais estaduais, somando responsabilidade com os danos morais e materiais, são mais de 2,5 milhões de ações que tramitaram naquele ano e tinham como escopo o Direito Consumerista.

Tendo em vista essa crescente judicialização, os advogados afirmam que parte do ônus cabe ao consumidor para que se possa evitar, no futuro, "surpresas desagradáveis". É importante também observar que, como observado pelos especialistas, a nulidade do contrato é exceção, posto que o próprio CDC tenta resguardar a validade contratual, mesmo com cláusulas abusivas

"É fundamental que o consumidor leia sim o contrato no momento de aderir o serviço. Caso as características do produto ou do serviço estejam bem especificadas no contrato, o simples fato de o consumidor alegar que assinou o contrato sem ler ou que concordou com os termos sem se a atentar a todas as cláusulas, não tornará o contrato nulo", diz o advogado Daniel Mendes Santana. 

"O CDC não objetiva tornar o contrato facilmente rompível unilateralmente pelo consumidor e sim, tão somente, estabelecer o equilíbrio entre as partes contratantes. "

Por outro lado, o advogado Igor Marchetti ressalta que há necessidade de o Judiciário se atentar mais aos contratos de adesão, principalmente porque não há construção coletiva do documento e nem possibilidade de discussão das cláusulas. "Quando uma parte só dita as regras e a outra só aceita, isso precisa ser observado de uma outra forma pelo Judiciário."

Processo 1004509-73.2017.8.26.0482
Processo 0812836-61.2023.8.19.0001

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!