Aperto de Cinto

Ações de Direito do Consumidor caem quase 30% entre 2019 e 2020

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23 de outubro de 2021, 7h32

Em 2019, o Direito do Consumidor era o assunto mais recorrente na Justiça estadual. Naquele ano, foram cadastrados quase 2,3 milhões de processos sobre responsabilização do fornecedor e indenização por danos morais na esfera consumerista. Em 2020, contudo, a cifra caiu para cerca de 1,6 milhão — uma queda de aproximadamente 28%, que tirou o tema do topo da lista.

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Litígios consumeristas tiveram queda de 28% entre 2019 e 2020Piqsels

Os dados são das duas últimas edições do relatório Justiça em Números, do Conselho Nacional de Justiça. Os assuntos consumeristas ainda são os mais demandados nos juizados especiais e um dos principais nos Tribunais de Justiça. Mesmo assim, a queda geral é considerável — especialmente porque temas como o Direito Civil tiveram um aumento no mesmo período.

De acordo com especialistas, muitas hipóteses podem explicar essa redução. A primeira seria a queda no consumo, causada pela crise de Covid-19. Segundo o advogado e professor Arthur Rollo, ex-secretário nacional do Consumidor e atual vice-presidente da Comissão de Direito do Consumidor da OAB-SP, menos dinheiro circulou, o que gerou menos consumo e menos processos.

Igor Britto, professor e diretor de relações institucionais do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), levanta a mesma tese de um indicador econômico: "Menos contratos, menos conflitos".

"No cenário de incertezas causadas pela pandemia e o aumento do desemprego, as pessoas tiveram que eleger prioridades e o consumo passou a ser feito com mais cautela", aponta Fernando Parro, sócio da área de relação de consumo do escritório Nelson Wilians Advogados.

Alternativas extrajudiciais
Uma peculiaridade do Direito do Consumidor é a existência de um "robusto sistema público  de solução extrajudicial de conflitos", nas palavras de Britto. Ou seja, órgãos de defesa do consumidor, notadamente os Procons.

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Procons costumam atender mais consumidores do que o Judiciário

O número de atendimentos nos Procons sempre são maiores que o número de ações de consumidores, o que mostra seu papel na diminuição da judicialização. Para o representante do Idec, isso indica que esses órgãos geralmente têm condições mais abertas para os consumidores.

Mesmo assim, os próprios Procons também foram menos procurados a partir da crise de Covid-19, segundo dados do Sistema Nacional de Informações de Defesa do Consumidor (Sindec). Em 2019, foram registrados quase 2,6 milhões de atendimentos. Já em 2020, o número foi para cerca de 2 milhões — uma queda de pouco mais de 20%.

A justificativa do Sindec foi a falta de atendimento presencial em diversos órgãos, como forma de restrição sanitária. O crescimento de demandas nos Procons pode ser observado com relação a setores específicos, como o de turismo, cujo total de reclamações cresceu 220% em 2020 — provavelmente por causa de cancelamentos de passagens e diárias relacionados às medidas de contenção da epidemia. Os dados do CNJ, contudo, não especificam contra quem os consumidores ajuizaram ações.

"Setores mais impactados pela pandemia, como o de turismo, aviação e varejo, receberam uma atenção mais direcionada da Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon) e do CNJ, com definição de políticas específicas, que geraram soluções conciliatórias mais eficazes para todos", explica Andressa Barros, CEO do escritório Fragata e Antunes Advogados.

Por outro lado, a plataforma consumidor.gov.br, do governo federal, teve um crescimento de aproximadamente 53% no mesmo período: pouco mais de 780 mil reclamações foram finalizadas no site em 2019, enquanto no ano seguinte a cifra quase chegou a 1,2 milhão. 

CNJ
Dados sobre a redução são dos relatórios Justiça em Números, do CNJCNJ

A Senacon, do Ministério da Justiça e Segurança Pública, vem incentivando o uso da plataforma e até mesmo determinando o cadastro de determinadas empresas.

Letícia Piasecki Martins, sócia do Meira Breseghello Advogados, escritório especializado em relações de consumo, lembra também que muitas empresas, durante a crise de Covid-19, fortaleceram seus serviços de atendimento ao cidadão (SACs), e assim consumidores solucionam seus pleitos sem sair de casa, o que evita a judicialização. "Um dos principais motivos na redução das ações consumeristas se dá diante do uso de ferramentas alternativas para solução de conflitos", completa.

Renato Leopoldo e Silva, do escritório Donelli e Abreu Sodré Advogado, concorda com essa visão. "Diante da demora para a resolução do impasse devido ao volume de ações e da efetividade dos meios judiciais, o consumidor está demandando menos o Poder Judiciário e se valendo de meios extrajudiciais para a resolução de conflitos", indica.

Atendimento aos consumidores
Segundo Britto, do Idec, o país possui uma alta taxa de conflitualidade de consumo, ou seja, um alto nível de problemas entre consumidores e fornecedores. "Nós temos atendimentos muito ruins no Brasil. As pessoas vão reclamar em qualquer lugar", diz.

A existência de todos os mecanismos extrajudiciais especificamente na área consumerista também ajuda a entender por que outros assuntos tiveram um crescimento de demandas na Justiça. Em casos, por exemplo, de quebras de contratos no setor empresarial, comercial ou de locações, "não há outra forma de resolver esses problemas se não no Judiciário", como lembra Britto. Por isso, tais casos aumentam em meio à crise de Covid-19.

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Plataforma do governo federal também recebe demandas do tipoReprodução

Além disso, a maioria dos processos de consumidores são levados aos juizados especiais, nos quais, muitas vezes, não é necessário o acompanhamento de um advogado. Enquanto isso, "as outras áreas aumentam por força da atuação dos advogados", aponta.

Os impactos da crise da Covid-19 não se restringem à diminuição do consumo. De acordo com a advogada Renata Abalém, presidente da Comissão de Direito do Consumidor da OAB-GO, "mesmo aqueles consumidores que buscam advogados, em razão do isolamento, preferiram não o fazer e estarem resguardados nas suas casas".

O atendimento presencial dos órgãos de Justiça ainda foi suspenso por certo tempo em 2020. "Muitas comarcas do território nacional ainda recebem exclusivamente processos distribuídos por meio físico", ressalta Fernando Parro. A advogada Mayara Barbosa do Nascimento, do escritório RMS Advogados, diz que "uma parte da população vulnerável, já ambientada com o serviço presencial, não conseguiu suportar os encargos necessários para ter acesso à Justiça virtual".

Direito do Consumidor ameaçado?
Arthur Rollo tem outra tese sobre a diminuição das demandas consumeristas: "um desestímulo generalizado à judicialização por parte do consumidor". Segundo ele, o consumidor é tratado como "vilão" e, por isso, vem sendo cada vez mais difícil recorrer ao Judiciário — muitas vezes sequer vale a pena.

Renata Abalém concorda que existe um descrédito com relação à proteção do consumidor. Para ela, nos últimos anos, as decisões judiciais demonstram um retrocesso na defesa desses direitos.

Um exemplo desse enfraquecimento do Direito do Consumidor seria a fixação, por parte dos magistrados, de indenizações cada vez mais baixas. De acordo com Abalém, os tribunais argumentam que existe uma "indústria do dano moral" e por isso diminuem os valores. 

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Especialistas veem enfraquecimento do Direito do Consumidor

Rollo ainda aponta que tem havido um movimento de juízes que suspendem ações e condicionam sua continuidade à reclamação do autor no site do consumidor.gov.br, mesmo que já tenha reclamado em outros canais das empresas.

Há também casos em que empresas atuam com muita demora no pagamento das indenizações, o que causa problemas para os consumidores que precisam pagar advogados, por exemplo.

O próprio trabalho da advocacia é afetado por esse fenômeno. Como a maioria dos litígios envolve valores baixos, muitas vezes não vale a pena contratar um advogado e ainda correr o risco de perder o caso. Assim, os próprios advogados são desestimulados a aceitar casos consumeristas pouco vultosos, sinaliza Rollo.

Para Abalém, as autoridades nacionais não cobram suficientemente os fornecedores pelas falhas nas relações de consumo. "Falta regulação protetiva. Faltam multas. Faltam condenações pedagógicas. Faltam juízes especializados e varas especializadas no Brasil todo", conclui.

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