Tribunal do Júri

Colaboração premiada no júri: da (im)possibilidade aos seus efeitos

Autores

  • Marcos Paulo Dutra Santos

    é defensor público do estado do Rio de Janeiro e mestre em Direito Processual pela Uerj.

  • Denis Sampaio

    é defensor público titular do 2º Tribunal do Júri do Rio de Janeiro doutor em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Lisboa (Portugal) mestre em Ciências Criminais pela Ucam-RJ investigador do Centro de Investigação em Direito Penal e Ciências Criminais da Faculdade de Lisboa membro consultor da Comissão de Investigação Defensiva da OAB-RJ membro honorário do Instituto dos Advogados Brasileiros professor de Processo Penal e autor de livros e artigos.

  • Rodrigo Faucz Pereira e Silva

    é advogado criminalista habilitado no Tribunal Penal Internacional (em Haia) pós-doutor em Direito (UFPR) doutor pelo Programa Interdisciplinar em Neurociências (UFMG) mestre em Direito (UniBrasil) e coordenador da pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI.

  • Gina Ribeiro Gonçalves Muniz

    é defensora pública do estado de Pernambuco e mestre em Ciências Jurídico-Criminais pela Universidade de Coimbra.

5 de agosto de 2023, 8h00

Nas últimas semanas, houve um intenso debate na área jurídico-criminal e na própria sociedade quanto ao infeliz caso Marielle Franco. Foi divulgado nas mídias a existência de possível acordo de colaboração celebrado por Élcio Queiroz ao confessar a participação no homicídio da então vereadora do município do Rio de Janeiro Marielle Franco e do seu motorista Anderson Gomes. Essas informações despertaram uma série de questionamentos sobre a sua admissibilidade e instrumentalização no Tribunal do Júri, merecedores de análise e elucidação. Desde já, ressaltamos que enfrentaremos essas complexas e delicadas questões a partir da divulgação das reportagens, na medida em que não tivemos acesso ao processo e, portanto, não conhecemos concretamente as questões envolvidas do caso.

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Foi divulgado que o acordo de colaboração do ex-PM evitaria o seu julgamento pelo júri popular e cumpriria a pena total de 12 anos em penitenciária estadual.

Diante de diversas discussões técnicas e algumas não tão técnicas, o Ministério Público carioca divulgou nota informando que eventual acordo de delação de Élcio Queiroz não o afastaria do júri popular e não haveria a redução da pena.

Na nota, o Ministério Público afirma o óbvio para qualquer estudante de Direito: "uma cláusula que retirasse Élcio do júri popular feriria a própria Constituição da República, retirando dos Srs. Jurados competência que ali lhes foi assegurada". Mas o espinhoso tema não se resume a essa questão.

Quanto à cooperação premiada, convém lembrar que o diploma legal geral sobre o tema corresponde à Lei nº 9807, de 13 de julho de 1999, artigos 13 a 15, ao prever a figura do "réu colaborador", havendo, ainda, oito hipóteses específicas de delação premiada, reservadas para os crimes hediondos (artigo 8º, p.ú. da Lei nº 8.072/90), extorsão mediante sequestro (artigo 159, §4º do CP, com a redação dada pela Lei nº 9.296/96), crimes contra o sistema financeiro nacional (artigo 25, §2º da Lei nº 7.492/86, com a redação dada pela Lei nº 9.080, de 19 de julho de 1995), crimes contra a ordem econômica e tributária (artigo 16, p.ú. da Lei nº 8.137/90, com a redação dada pela Lei nº 9.080/95 e, quando atrelados à formação de cartel, crimes licitatórios ou associação criminosa, desafiam a colaboração nos moldes da Lei nº 12.529, de 30 de novembro de 2011, artigos 86 e 87), lavagem de capitais (artigo 1º, §5º da Lei nº 9.613/98, com a redação dada pela Lei nº 12.683/12), entorpecentes (artigo 41 da Lei nº 11.343/06) e organização criminosa (artigo 4º da Lei nº 12.850/13).

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Embora parte da doutrina advogue a restrição da colaboração premiada às organizações criminosas, por ter sido a Lei nº 12.850/13 a única que se ocupou em instrumentalizá-la, detalhando o procedimento a ser observado [1], o entendimento dominante tem sido, acertadamente, pela subsistência das diferentes hipóteses de delação, em apreço ao princípio da especialidade, adotando-se, por analogia, o rito insculpido na Lei nº 12.850/13 quanto ao seu implemento [2]. Consequentemente, no procedimento do júri, a admissibilidade da colaboração premiada é inconteste, independentemente da existência subjacente de organização criminosa, consideradas as Leis 9.807/99, geral sobre a matéria e a incidência da Lei 8.072/90, haja vista a natureza hedionda do homicídio qualificado. Descabe, portanto, vedar onde a lei não o fez. Porém, esse mesmo diploma legal não afastou a competência do júri e não teria como fazê-lo, pelo endereço constitucional do próprio instituto do júri.

Em termos probatórios, há de se fazer um corte quando se debruça sobre a colaboração: enquanto as declarações do delator encerram verdadeira confissão, a cooperação, em si, é meio de obtenção de prova, disponibilizando informações, carentes de corroboração externa, que servirão de farol às agências de repressão estatal para que encetem diligências objetivando prová-las.

A confissão, isoladamente considerada, não dá azo a condenação (artigo 197 do CPP). Tampouco a colaboração, daí o artigo 4º, §16 da Lei nº 12.850/13, na sua redação primeva, preconizar que as declarações do delator não consubstanciam ratio decidendi de qualquer édito condenatório em relação ao delatado. Mas, se assim o é, caso, ao longo da investigação, a versão do colaborador reste isolada, sepultada está qualquer expectativa de condenação ao corréu, sobressaindo a falta de justa causa à própria deflagração da ação penal, logo, a denúncia não há de ser recebida, tampouco existindo fumus comissi delicti à concretização de medidas cautelares pessoais ou reais. Essa percepção, abraçada, acertadamente, pelo Supremo Tribunal Federal [3], foi positivada pela Lei nº 13.964/19 (vulgarmente conhecida como Pacote Anticrime) no §16 do artigo 4º da Lei nº 12.850/13, explicitando a imprestabilidade das declarações do colaborador para, por si só, escudar o recebimento da peça acusatória, o implemento de medidas cautelares pessoais e reais, além, evidentemente, da sentença penal condenatória.

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Projetando essas premissas para o Tribunal do Júri, se as declarações disponibilizadas pelo delator, ainda na fase investigatória, não forem corroboradas por outros elementos de prova, o caminho natural será o arquivamento da investigação pelo Ministério Público em relação aos delatados. E, se ofertada a denúncia, a sua rejeição por falta de justa causa (artigo 395, III do CPP).

Como a colaboração pode ser incidental ao processo, mesmo porque dispensável é o inquérito (artigos 12, 27, 39, §5º e 46, §1º do CPP), a ponto de o artigo 3º, I da Lei nº 12.850/13 preconizar que a colaboração premiada tem lugar "em qualquer fase da persecução", caso seja pactuada ao longo da primeira fase do procedimento do júri, restando, ao final, isoladas as declarações do delator, ter-se-á a impronúncia (artigo 414 do CPP) do corréu, em atenção ao próprio papel garantidor da pronúncia [4].

Nada obstante a profunda controvérsia em torno da constitucionalidade da colaboração premiada, seja do ponto de vista ético, presente o devido processo legal substancial (artigo 5º, LIV, da CRFB/88), seja à luz da individualização da pena (artigo 5º, XLVI, da CRFB/88), distorcendo-a na medida em que a resposta penal passa a espelhar não a maior ou menor reprovabilidade da conduta, mas a capacidade de negociação (barganha) do imputado, é indiscutível que, pragmaticamente, encerra importante opção à disposição da defesa. Restringi-la ab ovo, sem expressa previsão legal, traduz cerceamento do direito de defesa, que, no júri, tem dimensão ainda maior, considerada a plenitude versada na alínea "a" do inciso XXXVIII do artigo 5º da CRFB/88.

O delatado, por outro lado, não possui legitimidade, em regra, para impugnar a chancela do acordo de colaboração premiada, cujo teor e cláusulas dizem respeito estritamente ao delator e ao Estado. Enquanto meio de formação de provas, o que vier a ser apurado será submetido ao contraditório na persecução penal em curso, assegurado o direito de defesa aos delatados [5]. Todavia, vislumbrados vícios formais na homologação, como a incompetência absoluta do Juízo responsável pela chancela ou excessos acusatórios em relação ao pactuante, conduzindo-o à autoincriminação, terá o delatado legitimidade impugnativa, via apelação residual (artigo 593, II do CPP), ou mesmo o habeas corpus, afinal, se estará diante de um acervo probatório ilícito, potencialmente incriminatório, traduzindo risco real à liberdade, conforme já bem decidiu o Supremo Tribunal Federal [6].

Por outro lado, a premiação atrela-se aos resultados previstos em lei, devendo-se mensurar ao final do processo, quando da sentença, quais e quantos foram obtidos para, então, fixar o juiz os efeitos sancionatórios (artigo 4º, §11 da Lei nº 12.850/13). Concretizado(s) o(s) resultado(s) previsto(s) em lei, o delator possui direito público subjetivo à premiação, mas quem fixa é o juiz, porque impacta na reprimenda ou na punibilidade, via perdão judicial, cuja aplicação ou concessão é matéria reserva de jurisdição — caso as partes nela se imiscuíssem haveria manifesta afronta à separação e à independência entre os Poderes da República, em desacordo com o artigo 2º da CRFB/88. Nesse particular, aliás, a colaboração premiada, embora expressão da justiça penal negocial, distancia-se consideravelmente da transação penal, do acordo de não persecução penal e da suspensão condicional do processo, institutos com impacto direto no exercício da ação penal pública, privativa do Ministério Público por mandamento constitucional (artigo 129, I da CRFB/88) [7]. O Pleno do Supremo Tribunal Federal, revisitando orientação anterior tendente à vinculação do juiz aos termos do acordo [8], inclinou-se pela presente orientação [9], ladeado pela Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça [10].

Partindo dessa premissa, nada impede a colaboração premiada unilateral, ou seja, se, independentemente de acordo previamente entabulado com o Estado, o imputado disponibiliza informações que vêm a ser ratificadas, desaguando nos resultados previstos em lei dignos de premiação. Esta há de ser deferida pelo juiz, em apreço à paridade de armas e ao devido processo legal (artigo 5º, cabeça e inciso LIV da CRFB/88), do contrário o Ministério Público condicionaria a atuação jurisdicional em temas que lhe são privativos, aplicação de pena e perdão judicial, potencializando ainda mais a natural inferioridade do imputado em relação ao Estado. Esta possibilidade resultará em efeitos concretos à submissão do Conselho de Sentença.

Contudo, quando o prêmio envolver o não oferecimento da ação penal (artigo 4º, §§4º e 4º-A da Lei nº 12.850/13) ou a impronúncia no procedimento do júri, imprescindível será a prévia celebração do pacto entre o delator e o Estado [11], conforme já se colocou o Supremo Tribunal Federal, favorável à colaboração premiada unilateral [12].

Dois pontos devem ser fixados para que não haja interpretações equivocadas pelo setor jurídico e pela própria sociedade:

1º) não há qualquer vedação à aplicação da colaboração premiada no procedimento do júri;

2º) eventual acordo de colaboração premiada não afasta ou suprime a competência constitucional do júri, para julgar os crimes dolosos conta a vida e os seus conexos.

Contudo, outras questões surgem a partir desses pontos: quais são os efeitos para a colaboração premiada para os envolvidos na primeira e segunda fase do procedimento do júri? Temas que enfrentaremos na próxima semana.

 


[1] BITENCOURT, Cezar Roberto e BUSATO, Paulo César. Comentários à Lei de Organização Criminosa: Lei nº 12.850/13. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 121-122.

[2] BADARÓ, Gustavo Henrique e BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Lavagem de Dinheiro, Aspectos penais e processuais penais. 2ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 167-168, nota 23; CUNHA, Rogério Sanches e PINTO, Ronaldo Batista. Crime Organizado. 3ª edição. Salvador: Juspodivm, 2014, p. 34-35; MASSON, Cleber e MARÇAL, Vinícius. Crime Organizado. São Paulo: Método, 2015, p. 107-108.

[3] Inq. 4.074, relator Ministro Edson Fachin, relator p/acórdão Ministro Dias Toffoli, 2ª Turma, julgado em 14/8/2018.

[4] SANTOS, Marcos Paulo Dutra. Colaboração (Delação) Premiada. 4ª edição. Salvador: JusPodivm, 2020, p.278-280.

[5] STF, Inq. 4.483/DF Q.O., rel. min. Edson Fachin, Pleno, julgado em 21 de setembro de 2017; RE 1.103.435 AgR, rel. Min. Ricardo Lewandowski, 2ª Turma, j. 17/05/2019; STJ, AP nº 843/DF, Corte Especial, Min. Herman Benjamin, julgado em 06/12/17.

[6] HC 151.605, rel. min. Gilmar Mendes, 2ª Turma, julgado em 20/03/2018; HC 142.205, Relator(a): GILMAR MENDES, 2ª Turma, julgado em 25/08/2020.

[7] SANTOS, Marcos Paulo Dutra. Ob. cit., p.111-116.

[8] HC 127.483, Relator(a): DIAS TOFFOLI, Tribunal Pleno, julgado em 27/08/2015; Pet 7.074 QO, Relator(a): EDSON FACHIN, Tribunal Pleno, julgado em 29/06/2017.

[9] ADI 5.508, Relator(a): MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 20/06/2018.

[10] APn nº 843/DF, relator Ministro Herman Benjamin, Corte Especial, julgado em 6/12/2017, DJe de 1/2/2018

[11] SANTOS, Marcos Paulo Dutra. Comentários ao Pacote Anticrime. 2ª edição. Rio de Janeiro: Método, 2022, p. 357-359.

[12] Inq 3.204, Relator(a): GILMAR MENDES, 2ª Turma, julgado em 23/06/2015,

Autores

  • é defensor público do Estado do Rio de Janeiro e mestre em Direito Processual pela UERJ.

  • é defensor público, titular do 2º Tribunal do Júri do Rio de Janeiro, doutor em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Lisboa (Portugal), mestre em Ciências Criminais pela Ucam-RJ, investigador do Centro de Investigação em Direito Penal e Ciências Criminais da Faculdade de Lisboa, membro consultor da Comissão de Investigação Defensiva da OAB-RJ, membro honorário do Instituto dos Advogados Brasileiros e professor de Processo Penal e autor de livros e artigos.

  • é advogado criminalista, habilitado para atuar no Tribunal Penal Internacional em Haia, pós-doutor em Direito (UFPR), doutor pelo Programa Interdisciplinar em Neurociências (UFMG), mestre em Direito (UniBrasil), coordenador da Pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI.

  • é defensora pública do Estado de Pernambuco e mestre em Ciências Jurídico-Criminais pela Universidade de Coimbra.

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