DIÁRIO DE CLASSE

Teoria da Decisão e a CHD: 6 hipóteses em que o Judiciário pode não aplicar leis

Autores

  • Luísa Giuliani Bernsts

    é doutoranda e mestre em Direito Público (Unisinos) bolsista Capes/Proex membro do Dasein — Núcleo de Estudos Hermenêuticos (Unisinos) e do grupo de pesquisa Bildung — Direito e Humanidades (Unesa) e professora da Faculdade São Judas Tadeu (SJT-RS).

  • Vinícius Quarelli

    é mestrando em Direito Público pela Unisinos editor-adjunto da Revista Constituição Economia e Desenvolvimento: Revista Eletrônica da Academia Brasileira de Direito Constitucional (Qualis A3 ISSN 2177-8256) e membro do Dasein — Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

5 de agosto de 2023, 14h54

Sobre a controlabilidade das decisões judiciais enquanto propósito de uma Teoria da Decisão, outros textos já foram escritos ou no sentido de explicar o tema num contexto mais geral (aqui) ou no sentido apresentar a Teoria da Decisão presente na Crítica Hermenêutica do Direito (CHD) de Lenio Luiz Streck (aqui e aqui). Com efeito, resta apresentar uma última questão atinente a Teoria em questão: as seis hipóteses pelas quais o Judiciário pode deixar de aplicar uma lei (lato sensu) ou um dispositivo legal.

Desenvolvida em obras como Verdade e Consenso1, Jurisdição constitucional e decisão jurídica2, Dicionário de Hermenêutica3 e Comentários à Constituição do Brasil4, as seis hipóteses nada mais são do que uma parte da Teoria da Decisão articulada pela Crítica Hermenêutica do Direito5 e que tem, em seu cerne, uma intrínseca preocupação com a preservação da autonomia do direito.

Numa breve explicação desse conceito que ampara as seis hipóteses, cumpre compreendermos que este papel autônomo que se atribui àquilo que conforma nossa compreensão acerca do que o Direito é (e deveria ser) a salvaguarda maior que podemos constituir para a manutenção da democracia.

Isso porque, diante das questões moralmente controversas que são postas cotidianamente à análise pela prática jurídica, é muito tentador sucumbirmos à saídas prenhes de argumentos constituídos no âmbito de outras áreas. Grosso modo, o pragmatismo, por exemplo, constrói sua legitimidade a partir de concepções advindas da economia e da política.

É justamente a partir desse desvio epistêmico que acabamos por nos afastar da melhor interpretação jurídica que sempre será adequada à realidade democrática.

Tendo-se compreendido o Direito como um conceito interpretativo, devemos estar engajados em construí-lo com base em argumentos de princípio que, não em razão de sua finalidade, justificam as melhores práticas e interpretações em Direito. O próprio Direito nos fornece caminhos para ser aplicado sem que se incorra em uma violação do seu sentido e da sua autossubsistência.

Para mais, sustentar a autonomia do Direito acarreta compromissos institucionais como, por exemplo, o de compreender que a decisão jurídica não é um produto de escolhas6 e que nenhuma decisão pode(ria) ser proferida no sentido de solapar a legislação produzida democraticamente.

Essa questão que há muito vem sendo desenvolvida a partir da construção de uma teoria da decisão pela CHD, ganha cada vez mais repercussão, isso porque com a crescente adesão das teses precedentalistas entre os intérpretes do Direito, faz-se necessária uma reanálise acerca do limite da atuação do Judiciário em face daquilo que é o Direito legislado. Muito bem trabalhou a questão o professor Lenio Streck na coluna Senso Incomum do último dia 27 (aqui), ao referir o voto do ministro Teori Zavascki, ainda no STJ, na Recl. 2645 no sentido da não admissão da negativa de aplicação, pura e simplesmente, a preceito normativo "sem antes declarar formalmente a sua inconstitucionalidade".

É nesse sentido que Streck, desde muito, argumenta que o primeiro passo para preservarmos a autonomia do Direito pode e deve ser dado a partir do teste das seis hipóteses pelas quais o Poder Judiciário pode deixar de aplicar uma lei (lato sensu) ou dispositivo legal. Para mais, sua falta nos aponta para um dever fundamental de aplicar a lei votada pelo parlamento (ou o ato normativo emanado de outras esferas legítimas de poder)7. In verbis em razão da sua extensão:

a) quando a lei (o ato normativo) for inconstitucional, caso em que deixará de aplicá-la (controle difuso de constitucionalidade stricto sensu) ou a declarará inconstitucional mediante controle concentrado;

b) quando for o caso de aplicação dos critérios de resolução de antinomias. Nesse caso, há que se ter cuidado com a questão constitucional, pois, v.g., a lex posterioris, que derroga a lex anterioris, pode ser inconstitucional, com o que as antinomias deixam de ser relevantes;

c) quando aplicar a interpretação conforme à Constituição (verfassungskonforme Auslegung), ocasião em que se torna necessária uma adição de sentido ao artigo de lei para que haja plena conformidade da norma à Constituição. Nesse caso, o texto de lei (entendido na sua “literalidade”) permanecerá intacto; o que muda é o seu sentido, alterado por intermédio de interpretação que o torne adequado à Constituição;

d) quando aplicar a nulidade parcial sem redução de texto (Teilnichtigerklärung ohne Normtextreduzierung), pela qual permanece a literalidade do dispositivo, sendo alterada apenas a sua incidência, ou seja, ocorre a expressa exclusão, por inconstitucionalidade, de determinada(s) hipótese(s) de aplicação (Anwendungsfälle) do programa normativo sem que se produza alteração expressa do texto legal. Assim, enquanto, na interpretação conforme, há uma adição de sentido, na nulidade parcial sem redução de texto ocorre uma abdução de sentido;

e) quando for o caso de declaração de inconstitucionalidade com redução de texto, ocasião em que a exclusão de uma palavra conduz à manutenção da constitucionalidade do dispositivo.

f) quando — e isso é absolutamente corriqueiro e comum — for o caso de deixar de aplicar uma regra em face de um princípio, entendidos estes não como standards retóricos ou enunciados performativos. Claro que isso somente tem sentido fora de qualquer pamprincipiologismo. É por meio da aplicação principiológica que será possível a não aplicação da regra a determinado caso (a aplicação principiológica sempre ocorrerá, já que não há regra sem princípio e o princípio só existe a partir de uma regra — pensemos, por exemplo, na regra do furto, que é "suspensa" em casos de "insignificância"). Tal circunstância, por óbvio, acarretará um compromisso da comunidade jurídica, na medida em que, a partir de uma exceção, casos similares exigirão — mas exigirão mesmo — aplicação similar, graças à integridade e à coerência. Trata-se de entender os princípios em seu caráter deontológico e não meramente teleológico. Como uma regra só existe — no sentido da applicatio hermenêutica — a partir de um princípio que lhe densifica o conteúdo, a regra só persiste, naquele caso concreto, se não estiver incompatível com um ou mais princípios. A regra permanece vigente e válida; só deixa de ser aplicada naquele caso concreto. Se a regra é, em definitivo, inconstitucional, então se aplica a hipótese 1. Por outro lado, há que ser claro que um princípio só adquire existência hermenêutica por intermédio de uma regra. Logo, é dessa diferença ontológica (ontologische Differenz) que se extrai o sentido para a resolução do caso concreto.

Para além da recomendação de que o leitor confira as referências originais (todas citadas), veja-se que o Direito é, sim, um fenômeno complexo e que qualquer ato judicial é ato de jurisdição constitucional8. Com efeito, toda legalidade há de ser constitucional e toda decisão há de ser coerente para com isto.

1 STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso: Constituição, Hermenêutica e Teorias Discursivas. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 633 e seg.

2 STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e decisão jurídica. 4. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014. p. 322

3 STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de Hermenêutica: 50 verbetes fundamentais da Teoria do Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. 2. ed. Belo Horizonte: Casa do Direito, 2020. p. 393.

4 CANOTILHO, José Joaquim Gomes; MENDES, Ferreira Gilmar; SARLET, Ingo Wolfgang; STRECK, Lenio Luiz; LEONCY, Léo Ferreira. Comentários à Constituição do Brasil. 2. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018. p. 78.

5 Nota explicativa: "Observando a ausência de uma teoria do direito que inclua a preocupação com o modo como devem decidir juízes e tribunais, e compreendendo que a hermenêutica (constitucional) não deva ficar à mercê de procedimentos ad hoc ou atitudes pragmaticistas/solipsistas (portanto, de 'escolhas' individuais), venho buscando a construção de uma Teoria da Decisão Judicial, que implica um rigoroso controle das decisões judiciais, porque se trata, fundamentalmente, de uma questão que atinge o cerne do Constitucionalismo Contemporâneo: a democracia. Se ficarmos a mercê da razão prática para superar o formalismo exegetista, estaremos substituindo o juiz boca-da-lei pelo 'proprietário dos sentidos da lei'". In: STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e decisão jurídica. op. cit. p. 328.

6 STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de Hermenêutica. op. cit. p. 25 e seg.

7 CANOTILHO, José Joaquim Gomes; MENDES, Ferreira Gilmar; SARLET, Ingo Wolfgang; STRECK, Lenio Luiz; LEONCY, Léo Ferreira. Comentários à Constituição do Brasil. op. cit. p. 78.

8 STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019. p. 158.

Autores

  • é doutoranda e mestre em Direito Público pela Unisinos, bolsista Capes/Proex, membro do Dasein — Núcleo de Estudos Hermenêuticos e professora da Faculdade São Judas Tadeu.

  • é bolsista Capes/Proex, doutorando e mestre em Direito Público pela Unisinos (Universidade do Vale do Rio dos Sinos), pós-graduado em Teoria do Direito, Dogmática Crítica e Hermenêutica pela ABDConst (Academia Brasileira de Direito Constitucional), bem como em Direito Constitucional pela mesma instituição. Membro do Dasein (Núcleo de Estudos Hermenêuticos).

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