Interesse Público

STF e o acesso à creche: uma volta para chegar ao mesmo lugar

Autor

  • Vanice Valle

    é professora da Universidade Federal de Goiás visiting fellow no Human Rights Program da Harvard Law School pós-doutora em administração pela Ebape-FGV doutora em Direito pela Universidade Gama Filho procuradora do município do Rio de Janeiro aposentada e membro do Instituto de Direito Administrativo do Estado do Rio.

29 de setembro de 2022, 8h00

Nos últimos dias, o STF pautou o Tema 548 da Repercussão Geral [1], examinado no RE 1.008.166, de relatoria do ministro Luiz Fux, no qual se discutia a existência de um direito subjetivo público e universal de acesso à creche e pré-escola. A demanda, veiculada por ação mandamental, foi julgada procedente na origem, e nestes mesmos termos confirmada pelo tribunal local (SC); e chega ao STF a partir do manejo do competente Recurso Extraordinário, conhecido e com repercussão geral reconhecida a partir do provimento do Agravo de Instrumento 761.908-SC A matéria já frequenta os escaninhos da corte há muito tempo, e teve no ARE 639.337 AgR, de relatoria do ministro Celso de Mello, o leading case mais conhecido [2], que já proclamava a sede constitucional do direito em questão.

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O acórdão no RE 1.008.166 não se tem ainda disponibilizado, mas a oitiva das sessões de julgamento permite identificar a subsistência no STF, de uma atitude judicial no controle de políticas públicas, inteiramente descomprometida com o plano da concretização das ações do Estado materializadoras desse mesmo direito. Como pano de fundo dessa atitude, tem-se ainda a percepção de que Direito e políticas públicas sejam domínios distintos de conhecimento, cuja comunicação não haveria de ser provida pela Corte Constitucional.

Primeiro indicativo dessa dissociação entre o comando jurisdicional que se veio a cunhar no RE 1.008.166, e a dimensão factual do problema público de fundo, está na própria seleção do paradigma de repercussão geral, que envolvia na sua origem, mandado de segurança impetrado pelo Ministério Público de Santa Catarina, em favor de criança que tivera recusada a sua matrícula em creche no município de Criciúma, em razão da indisponibilidade de vaga.

O paradigma se apresenta reducionista, por força das características que são próprias à ação mandamental. Ausente o espaço para a instrução probatória, os autos pouco teriam a informar em relação aos parâmetros de atuação do município de Criciúma na matéria — não se sabe, portanto se a recusa traduz a inexistência em si de política pública, a sua insuficiência, ou simplesmente a inconformidade entre a situação individual da criança e os parâmetros de habilitação à oferta de creche [3]. A insuficiência de informações quanto à moldura de fato vai se fazer sentir ao longo do julgamento, quando se discute que tipo de efeito poderia ter a decisão que o STF viesse a cunhar, no nível de abstração que é próprio do regime da repercussão geral, no tema em debate. Mas não só a seleção do caso paradigma se revela problemática.

O ponto de divergência nos votos veiculados na sessão dizia respeito aos efeitos em si da decisão que se viesse a cunhar. Pelo menos dois aspectos distintos suscitaram divergências: 1) a viabilidade de se instituir restrições ao direito fundamental em questão, admitindo-se a subordinação da pretensão judicial à prévia provocação à Administração, e o direcionamento da oferta das vagas aos vulneráveis [4]; e 2) a necessidade de se cogitar (como condicionante da decisão a ser proferida, ou como conteúdo da tese a se enunciar) dos limites materiais possivelmente oponíveis pelo ente público responsável, a uma proclamação mais abrangente do direito em discussão.

É de se dizer que a delimitação em si do tema da repercussão geral fixado pela corte quando do juízo de admissibilidade proporcionou o argumento de alguns, de que "o que está em debate é a hermenêutica e a dicção constitucional" [5], donde os efeitos práticos em si do que se viesse a decidir escapariam dos limites objetivos da demanda. Essa posição, que dissocia o acórdão dos efeitos práticos, notadamente em relação à real alteração no mundo da vida da posição subjetiva dos virtuais destinatários do direito em discussão, se viu reiterada por diversos dos ministros ao longo dos debates.

Tem-se então o discurso segundo o qual a virtude do julgamento em sede de repercussão geral repousaria tão-somente em fixar a tese de que acesso a creche e pré-escola é um direito subjetivo [6], importando na vinculação de juízes e tribunais a essa tese. A racionalidade expressa por essa posição é complementada pela afirmação de que se a análise se desse em sede de controle abstrato, aí sim caberia ter-se-ia a vinculação imediata da Administração – mas em sede de repercussão geral, "a vinculação [decorrente de decisão em repercussão geral] é para os magistrados e não para a Administração" [7]; e ainda "a imediatividade [das providências de concretização] é um pouco diferida no tempo; ela não é para amanhã" — donde todas as questões relacionadas à incidência de eventuais condicionantes ou restrições ao direito fundamental em discussão (no plano dos fatos, das finanças públicas, ou quais quer outras) estariam em aberto e deveriam ser apreciadas pelo juízo nas demandas individuais que venham a ser oferecidas.

A sombra das possíveis dificuldades subjacentes à concretização da decisão que se estava a debater, todavia, subsistia no Plenário, com referências diversas à necessidade de construção de modelos que viabilizassem a oferta do serviço; ao imperativo de planejamento para a ampliação do número de matrículas; à eventual fragilidade de financiamento de parte dos municípios etc. Todas as questões foram reputadas relevantes — mas a corte estava ansiosa pela proclamação pura e simples, e em abstrato, da existência de um direito subjetivo público ao acesso à creche.

A construção da solução foi favorecida pela interrupção da sessão, quebra no momento deliberativo que viabilizou a construção de um acordo referido expressamente no curso da votação, em torno da tese de repercussão geral a ser enunciada. A estratégia de redação consensuada, envolveu um sofisma, construído a partir da dupla dimensão — subjetiva e objetiva — dos direitos fundamentais. Vejamos como isso se manifestou na enunciação da tese resultante do julgamento, assim enunciada:

"1. A educação básica em todas as suas fases – educação infantil, ensino fundamental e ensino médio – constitui direito fundamental de todas as crianças e jovens, assegurado por normas constitucionais de eficácia plena e aplicabilidade direta e imediata. 2. A educação infantil compreende creche (de zero a 3 anos) e a pré-escola (de 4 a 5 anos). Sua oferta pelo Poder Público pode ser exigida individualmente, como no caso examinado neste processo. 3. O Poder Público tem o dever jurídico de dar efetividade integral às normas constitucionais sobre acesso à educação básica".

Os itens 1 e 2 dedicam-se à enunciação do multi referido direito subjetivo público ao acesso à creche. Sua afirmação se dá em sentido lato no item 1 da tese, e é explicitada em relação a seu conteúdo no item 2. Nos dois enunciados iniciais tem-se claramente a rejeição à linha de argumentação do município recorrente, que sustentava limitar-se à previsão contida no artigo 208, I CF, o seu dever de oferta de serviços educacionais. Aqui, a Corte harmonizou o artigo 208, I CF com os artigos 206, I, II e IV CF, para gizar um âmbito mais amplo de proteção decorrente do direito fundamental à educação, compreendendo não só a educação básica obrigatória (artigo 208, I CF) mas também o ensino infantil.

A parte final do subitem 2 é mera consequência dessa mesma afirmação – de que haja na hipótese um direito subjetivo público, que como tal, comporta tutela pela via jurisdicional. A sinalização em favor do manejo da demanda individual, constante do referido subitem, parece navegar em sentido contrário da cogitação em favor das ações coletivas como mecanismo mais apropriado à correção sistêmica de omissões ou patologias em políticas públicas envolvendo a concretização de direitos fundamentais. Curiosamente, as virtudes até mesmo dos chamados litígios estruturantes forma referidas na sessão — mas a autorização para a demanda individual foi a mensagem trazida para a tese de repercussão geral.

Já no subitem 3 da tese, tem-se a cogitação em relação à dimensão objetiva do direito fundamental cujos contornos a corte vinha de desenhar. Ali, a enunciação limita-se à (re)afirmação da existência de um dever jurídico de prover creche e pré-escola — o que, data máxima vênia, constituiria consequência lógica direta e inafastável da enunciação do direito subjetivo público. Prover o quê? A "efetividade integral às normas constitucionais" — e aí se vê o caráter puramente retórico deste item da tese. Há dúvida ainda possível em relação ao dever do poder público em prover efetividade de normas constitucionais assecuratórias de direitos fundamentais, especialmente depois dessa qualificação ter sido expressamente enunciada em tese de repercussão geral pelo STF? Não parece haver dúvida — e nesses termos, também não parece haver na matéria, avanço. O STF, pomposamente, reafirmou o que sempre dissera.

Interessante consignar o argumento de defesa manejado pelo ministro relator em favor da enunciação ampla do subitem 3, eis que, na visão dele, "precedentes gerais são muito mais lentamente defasados" [8]. Tem-se aqui uma clara preferência pela preservação da autoridade do precedente que se estava a construir, em detrimento da clareza e explicitação de qual seja, efetivamente, o conteúdo dos deveres de agir dos entes públicos envolvidos. O desdobramento previsível é a ampliação da judicialização crescente do tema, arrimada nos itens 1 e 2 da tese acima transcrita; e a transferência para o juiz oficiante, do ônus de lidar com os possíveis argumentos de defesa de entes públicos que se vejam impedidos de oferecer as vagas no quantitativo judicialmente reclamado.

Não se está a desconhecer que demandas individuais podem apresentar especificidades pessoais, ou de realidades locais, que exijam uma certa calibragem da decisão. Disso não decorre, todavia, que não pudesse a corte ter estabelecido diretrizes em relação, por exemplo, aos vetores constitucionalmente admissíveis para a construção de um programa progressivo de incorporação de crianças em creche e pré-escola, até que se alcançasse a almejada universalização do direito.

Último comentário que a decisão merece diz respeito à disfuncionalidade dessa pretensa combinação entre avançar no empoderamento da dimensão subjetiva, e avançar menos (limitando-se à enunciação genérica) na vertente da dimensão objetiva.

É de se supor que, quando menos à luz da proclamação do subitem 3 da tese, municípios se dediquem à criação, fortalecimento ou ampliação de políticas públicas voltadas à garantia da oferta de creche e pré-escola, caminhando progressivamente para a universalização [9] — como se cogitou inclusive nos debates ao longo das sessões de julgamento. Tais estratégias envolverão uma programação em relação ao atendimento, e possivelmente algum grau inicial de seletividade, tendente à eliminação à medida em que o atendimento se aproxime da almejada universalização.

A concorrência da ação planejada, estruturada com as providências atomizadas de cumprimento de decisões decorrentes de demandas individuais tende a gerar o desarranjo das políticas públicas em curso — que podem ser reconfiguradas ou adiadas, integral ou parcialmente, pela necessidade de acomodação de iniciativas de cumprimento de ordens judiciais. É de se ter em conta que os reflexos nas políticas públicas em andamento podem envolver não só a subversão do universo inicial de destinatários, mas a alteração da modelagem de oferta do serviço pela imposição de sua prestação em condições distintas daquelas ofertadas pela administração [10].

Uma vez mais, o que parece claro é um compromisso do STF com a enunciação de um direito — mas pouca preocupação em relação aos difíceis caminhos de sua real implementação. As dificuldades operacionais postas pelos ministros que manifestaram no debate esse olhar consequencialista (em linha de harmonia, aliás, com a Lei 13.655/2018, que orienta à sua consideração inclusive no âmbito da decisão judicial) foram “contornadas” na decisão pela remessa de seu enfrentamento a cada qual das decisões judiciais individuais que possam sobrevir. Com isso, tem-se a corte, em nome de garantir a efetividade do direito fundamental em discussão, abrindo a porta para a desigualdade na sua concretização.

Ao final do julgamento, os ministros congratulavam-se pelo avanço proporcionado pela decisão. Houve avanço? O que vem à memória dessa articulista em resposta, é o título de Pirandello — "assim é se lhe parece".

 


[1] Tema 548 da Repercussão Geral: Dever estatal de assegurar o atendimento em creche e pré-escola às crianças de zero a 5 (cinco) anos de idade.

[2] ARE 639337 AgR, Relator(a): CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 23/08/2011, DJe-177 DIVULG 14-09-2011 PUBLIC 15-09-2011 EMENT VOL-02587-01 PP-00125

[3] A consulta ao sítio do município de Criciúma (https://www.criciuma.sc.gov.br/servicos/servicos/ver/6) informa que a rede municipal de Criciúma celebra convênio com duas instituições, a Afasc e a Abadeus para a oferta da etapa creche; tudo com vistas ao atendimento às crianças de 4 meses até 3 anos e 11 meses e é ofertado de maneira parcial ou integral.

[4] A proposta de imposição de condicionantes ao direito ao acesso à creche veio do voto do relator, ministro Luiz Fux. No curso do julgamento, é de se dizer, o ministro Luiz Fux abdicou da proposição de condicionantes, com o objetivo de facilitar a decisão do colegiado em relação à tese de repercussão geral

[5] Trecho extraído do voto do ministro Edson Fachin, vídeo 2/2 da sessão de 21/9/2022, disponível em https://www.youtube.com/watch?v=HSNsFBhNgLk, a partir de 52:04 minutos.

[6] Trecho extraído do aparte do ministro Luiz Fux ao voto do ministro Edson Fachin, vídeo 2/2 da sessão de 21/9/2022, disponível em https://www.youtube.com/watch?v=HSNsFBhNgLk, a partir de 55:40 minutos.

[7] A observação se deu em sede de debates pelo ministro Nunes Marques, no mesmo vídeo já referido da sessão, a partir de 55:20 minutos.

[8] Trecho extraído do voto do ministro Luiz Fux, vídeo da sessão de 21/9/2022, disponível em https://www.youtube.com/watch?v=asUXVgaOnYY, a partir de 1:10 minutos.

[9] Os deveres de ação em relação ao provimento de creche e pré-escola a rigor, decorreriam igualmente de outros instrumentos normativos infraconstitucionais, em especial o Plano Nacional de Educação.

[10] A hipótese não é de viveiro — e cito como ilustração, a ordem proferida SLS 3.049 pelo ministro Humberto Martins, presidente do STJ, que determinou, em desfavor do município do Rio de Janeiro, que suas creches e pré-escolas se mantivessem abertas, sem período de férias. O tema foi comentado nesta coluna no texto "Controle de políticas públicas, ou a arte de andar de corda bamba de sombrinha".

Autores

  • é professora da Universidade Federal de Goiás, visiting fellow no Human Rights Program da Harvard Law School, pós-doutora em Administração pela Ebape-FGV, doutora em Direito pela Universidade Gama Filho, procuradora do município do Rio de Janeiro aposentada e membro do Instituto de Direito Administrativo do Estado do Rio.

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