Interesse Público

Controle de políticas públicas, ou a arte de dançar na corda bamba de sombrinha

Autor

  • Vanice Valle

    é professora da Universidade Federal de Goiás visiting fellow no Human Rights Program da Harvard Law School pós-doutora em administração pela Ebape-FGV doutora em Direito pela Universidade Gama Filho procuradora do município do Rio de Janeiro aposentada e membro do Instituto de Direito Administrativo do Estado do Rio.

6 de janeiro de 2022, 8h00

Uso nesta semana um case para uma análise aplicada dos desafios que se tem no tema do controle de políticas públicas — cuida-se da decisão proferida na SLS 3.049 pelo ministro Humberto Martins, presidente do STJ [1].

Spacca
O litígio tem origem em civil pública proposta pela Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro para determinar que o município do Rio de Janeiro mantenha a oferta das creches e pré-escolas já existentes sem qualquer interrupção atinente a período de férias. O argumento principal envolvia o caráter essencial do serviço público de que se estava a cogitar, do que resultaria sua submissão à continuidade — o que não permitiria a paralisação das atividades no período de férias.

A decisão proferida em sentença e confirmada pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro acolhia o argumento, sustentando ainda o caráter assistencial das creches e pré-escolas, viabilizadoras de que os pais pudessem trabalhar.

Simpatizar com a ideia de que creches devam estar disponíveis 365 dias por ano é fácil — muitas são as razões de conveniência que poderiam conduzir a essa conclusão. A questão está em saber quais os argumentos jurídicos que se poderia utilizar para sustentar esse desfecho em relação ao poder público — em especial quando se sabe que esse não é o regime ordinário segundo o qual a atividade se desenvolve no âmbito privado.

Extrai-se da leitura da decisão o manejo de um amálgama de categorias jurídicas, um cherry picking de atributos que serviriam à pretensão autoral. Assim, o serviço de creche é caracterizado ao mesmo tempo como serviço público essencial, e como prestação estatal de natureza assistencial — ventos vindos de diferentes direções balançam a corda-bamba da Administração bailarina… Estranha conjugação de categorias, eis que enquanto na concepção mais tradicional de serviço público, este se rege pela universalidade na oferta; no campo da assistência social, tem-se na vulnerabilidade do assistido um pressuposto da ação estatal.

Curiosa ainda o caráter bifronte que a decisão confere ao serviço de creche — inserido no contexto da atividade de educação, mas também identificado como prestação assistencial. Dessa natureza dúplice decorre que a decisão suspensa dispensa no período de férias, o desenvolvimento de atividades educacionais em sentido estrito (superando com isso a previsão da regulação no MEC de período de descanso) para determinar a "…oferta de alimentação e serviços assistenciais, culturais, recreativos e esportivos durante os períodos de descanso escolar, ou seja, o desenvolvimento de outras atividades justamente quando as de cunho educacional estão paralisadas…".

A metáfora da corda bamba com sombrinha se põe num contexto em que a atividade de controle de políticas públicas é vista como um espaço para o exercício da nostalgia da vida idealizada; para determinar no papel que a realidade mude, sem um compromisso concreto com os instrumentos necessários à mudança. Com isso, a Administração se vê caminhando cautelosamente na fina linha do possível, cruzando o abismo das aspirações coletivas cunhadas a partir de percepções individuais do que seja devido — e em cada passo dessa linha, pode se machucar.

Na perspectiva estritamente jurídica, a lógica de que todas as atividades postas à realização da Administração se traduzam como serviços públicos essenciais, sujeitos à universalidade e continuidade é uma contradição em termos. Afinal, constitui objetivo fundamental da República a redução das desigualdades sociais — o que deixa transparecer uma necessária seletividade na oferta de serviços, em especial os de cunho social.

Em que pese o reconhecimento de que o controle de políticas públicas possa se dar, excepcionalmente, com o Judiciário atuando de forma substitutiva [2], indiscutível que essa atuação não pode desconsiderar o imperativo de planejamento que se põe à Administração, como condição à ação revestida de eficiência. A par dessa relação entre planejamento e eficiência, que é intuitiva, não se pode perder de perspectiva que cada escolha administrativa — ou cada ação administrativa resultante não por escolha própria, mas de determinação judicial — tem no seu âmago um trade off, que é de ser avaliado nas suas consequências. Um planejamento adequado da Administração envolve em princípio a avaliação dos trade off envolvidos, e uma escolha informada em relação a quais sejam os possíveis efeitos desse curso de ação pelo qual se está optando.

A ação judicial substitutiva — como a verificada na hipótese — não contempla esse exercício de prospectiva; nem na avaliação de qual seja a mobilização de recursos em todos os sentidos para atender à determinação, nem tampouco em relação àquilo que se deixará de fazer para alcançar o estrito cumprimento do que se propõe. Uma vez mais o olhar em relação ao caso ilustra o ponto.

A decisão como lançada envolvia o dever de continuação da prestação do serviço — outro, distinto do que habitualmente se prestava, porque não revestido de atividades educacionais, mas orientado ao lúdico —, compreendendo não só às creches próprias, como também as conveniadas. Significa dizer que a ordem transbordava os limites da Administração-bailarina, trazendo para a corda bamba também as instituições conveniadas, que deveriam prover a estrutura e a mão de obra necessária à continuidade das atividades na modalidade reconfigurada pela decisão judicial. No que toca à Administração, não se ocupa a decisão de indicar qual seja a contrapartida desse reencaminhamento de esforços e recursos — mantendo em aberto a possibilidade de censura também em relação à descontinuidade de outra ação pública qualquer alcançada pelo remanejamento de pessoal ou recursos. Em cada passo dessa linha, pode se machucar.

Vale ainda apontar que não se identifica no debate, outro componente que é fundamental no domínio das políticas públicas, que é o reconhecimento de seu caráter matricial. Em tempos ainda de pandemia, quando se tem o recente reconhecimento da relevância da proteção à saúde também das crianças (antes tidas como não sujeitas à contaminação do vírus), não se identifica em qualquer passagem a consideração desse vetor, do quanto contribuiria para o quadro geral de combate à pandemia e suas recentes variantes, a determinação da continuidade do funcionamento das creches. Em que pese a percepção intuitiva que cada qual posso ter no tema, a matéria é do domínio da técnica — e não da técnica jurídica — e deveria ter sido considerada, com suporte nas informações próprias.

É em contextos como o verificado no case que se afirma que o exercício do controle judicial de políticas públicas não pode repousar no abstrato, no mundo idealizado; numa ideia de Administração ideal que pode ser iluminadora de aspirações — mas não é real. A ordem, portanto, há de ser precedida da avaliação de seus efeitos, na linha do que determina a (ainda resistida) Lei 13.655/18. Decerto, essa perspectiva não se alinha com uma urgência na solução das demandas provocada pelos indicadores do CNJ de congestionamento judicial. Mas é preciso entender que, na lição de Ost, "o importante é, antes, que um tempo próprio carregado de um sentido instituinte seja mobilizado pela operação da norma jurídica". O tempo cronológico, tão valorizado pela métrica corrente, não é necessariamente relevante se dele não se extrai o aludido sentido instituinte, a capacidade de mobilizar os elementos necessários à transformação da realidade.

Nesses termos, é preciso entender que, em especial no domínio de controle de políticas públicas, o tempo — seja para a compreensão do passado, seja para um prognóstico dos efeitos futuros — é um componente importante, e pode ser integrado para a construção de uma solução que, mais do que factível, seja transparente no que toca a seus resultados.

O controle de políticas públicas informado — que considera os efeitos possíveis da determinação que ali se venha a exarar — pode funcionar como a sombrinha que socorre à Administração-bailarina. O apetrecho não é meramente acessório. Ele confere visibilidade e estabilidade àquele que se equilibra na corda. Nesses termos também pode se ver a atuação jurisdicional em sede de controle de políticas públicas. Conferindo visibilidade ao problema e à ação pública e ofertando ainda, no debate plural de alternativas estratégicas de superação do problema denunciado, um caminho mais estável para que a Administração siga atuando.

A opção pela ação substitutiva de parte do Judiciário é de ser associada à consciência pelo juízo de que ele se torna corresponsável pelos efeitos alocativos de sua decisão. E para tanto, é de se exigir dele, Judiciário, as mesmas cautelas que se exige da Administração — inclusive e especialmente, um compromisso com o planejamento e a eficiência. Não foi isso que se viu no acórdão objeto da SLS 3.049. Já esta última, para quem seguia na corda bamba, se apresentou como a sombrinha da bailarina.

 
   
 


[1] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. SLS nº 3.049 / RJ (2021/0409063-0), ministro Humberto Martins, decisão em 31 de dezembro de 2021.

[2] VALLE, Vanice Regina Lírio do. Políticas públicas, direitos fundamentais e controle judicial. Prefácio de Marcos Juruena Villela Souto. 2ª edição, revista, ampliada e atualizada. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2016, p. 160

Autores

  • é professora da Universidade Estácio de Sá, visiting fellow no Human Rights Program da Harvard Law School, pós-doutora em Administração pela Ebape-FGV, doutora em Direito pela Universidade Gama Filho, professora do programa de pós-graduação em Direito da Unesa-RJ, procuradora do Município do Rio de Janeiro e membro do Instituto de Direito Administrativo do Estado do Rio.

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