Controvérsias Jurídicas

Economia de mercado e prevalência dos contratos de adesão

Autor

  • Fernando Capez

    é procurador de Justiça do MP-SP mestre pela USP doutor pela PUC autor de obras jurídicas ex-presidente da Assembleia Legislativa de SP presidente do Procon-SP e secretário de Defesa do Consumidor.

22 de setembro de 2022, 10h51

Uma das principais características dos contratos advindos de uma relação de consumo é a sua adesividade, consistente na aderência de uma das partes ao vínculo jurídico estipulado unilateralmente pela outra. Acerca de tal característica, o Código de Defesa do Consumidor reservou especial atenção em seu artigo 54 e parágrafos, ao dizer:

Spacca
"Artigo 54. Contrato de adesão é aquele cujas cláusulas tenham sido aprovadas pela autoridade competente ou estabelecidas unilateralmente pelo fornecedor de produtos ou serviços, sem que o consumidor possa discutir ou modificar substancialmente seu conteúdo.

§1° A inserção de cláusula no formulário não desfigura a natureza de adesão do contrato.

§2° Nos contratos de adesão admite-se cláusula resolutória, desde que a alternativa, cabendo a escolha ao consumidor, ressalvando-se o disposto no §2° do artigo anterior.

§3º Os contratos de adesão escritos serão redigidos em termos claros e com caracteres ostensivos e legíveis, cujo tamanho da fonte não será inferior ao corpo doze, de modo a facilitar sua compreensão pelo consumidor.

§4° As cláusulas que implicarem limitação de direito do consumidor deverão ser redigidas com destaque, permitindo sua imediata e fácil compreensão".

Por boa parte do século 20 o mundo observou a disputa de dois modelos político-econômicos que buscavam hegemonia. Os Estados Unidos representavam a consolidação da democracia representativa e da economia de mercado; enquanto a União Soviética encampava o modelo de coletivização da terra e dos meios de produção postulados por Marx e Engels.

A disputa econômica e ideológica entre os dois modelos teve seu fim com a queda do muro de Berlim e a fragmentação dos países que formavam a URSS, consagrando o modelo liberal sustentado pela economia de massa, produção de produtos e serviços em escala global, queda das tarifas alfandegárias e atuação multinacional de empresas.

Nesse sentido: "Lembramos que esse nome dado ao contrato que envolve relação jurídica de consumo, “de adesão”, é pura e simplesmente constatação de que na sociedade capitalista em que vivemos o fornecedor decide, sem a participação do consumidor, tudo o que pretende fazer: escolhe ou cria os produtos que quer fabricar ou serviço que pretende oferecer, faz sua distribuição e comercialização, opera seu setor de marketing e publicidade para apresentar e oferecer o produto ou o serviço, e elabora o contrato que será firmado pelo consumidor que vier a adquirir o produto ou serviço". [1]

Como ocorre em todo fenômeno jurídico, a criação de uma espécie de contrato resulta de uma demanda da sociedade ou da necessidade de regulamentação de uma prática já constituída entre as pessoas. Assim, com a globalização das relações de consumo, a deliberação conjunta das obrigações deu lugar a formatação de um instrumento mais célere, construído unilateralmente, aplicável a qualquer consumidor independentemente de sua localização.

"Assim, aqueles que, como consumidores, desejarem contratar com empresas para adquirirem produtos ou serviços já receberão pronta e regulamentada a relação contratual e não poderão efetivamente discutir, nem negociar singularmente os termos e condições mais importantes do contrato. A inserção da cláusula de formulário, por exemplo, sobre preço, condições, data de entrega e outras, não desfigura a natureza de adesão do contrato" [2].

Quanto à natureza jurídica da aderência do consumidor ao contrato de adesão, a doutrina nos mostra dois posicionamentos antagônicos. O entendimento de que a adesão do consumidor não representa consentimento ao conteúdo trazido no contrato é defendido pelo desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, professor Rizzatto Nunes: "Agora, anote-se que o uso do termo adesão não significa manifestação de vontade ou decisão que implique concordância com o conteúdo das cláusulas contratuais. No contrato de adesão não se discutem cláusulas e não há que se falar em pacta sunt servanda. É uma contradição falar em pacta sunt servanda de adesão" [3].

Por sua vez, Cláudia Lima Marques se posiciona no sentido de que a aderência do consumidor ao contrato é forma de manifestação de consentimento: "O consentimento do consumidor manifesta-se por simples adesão ao conteúdo preestabelecido pelo fornecedor de bens ou serviços" [4].

Tendemos a concordar com o posicionamento da primeira vertente, na qual a aderência ao contrato não consiste na manifestação de concordância do consumidor com seu inteiro teor. Ao aderir, o cidadão não explicita anuência com o conteúdo trazido na avença porque não participou da elaboração das obrigações ali estabelecidas. Até porque, hodiernamente, convenhamos, se o consumidor quiser adquirir qualquer coisa, será obrigado a aderir à oferta, preço, condições de pagamento e demais pormenores.

É possível que o contrato de adesão seja estipulado pelo Poder Público, vez que na posição de fornecedor poderá figurar pessoa jurídica de direito público ou privado. Inclusive, é por essa razão que o "Caput", do artigo 54, CDC se refere às cláusulas que tenham sido estipuladas unilateralmente e aprovadas por autoridade competente.

Em que pese a elaboração unilateral por parte do fornecedor, somente o consumidor poderá cancelar unilateralmente a vigência contratual, recebendo as quantias já pagas depois de descontados eventuais prejuízos e vantagens (artigo 53, §2º e 54, §2º, CDC).

Em observância ao princípio da transparência, os contratos de adesão deverão ser redigidos de forma clara, precisa, ostensiva e legível. Clareza consiste na vedação da utilização de termos técnicos que inviabilizariam a compreensão do que está sendo dito para um cidadão médio. Precisão dos termos corresponde à proibição do uso de termos duplos, ambíguos e obscuros, que gerem dupla interpretação.

A ostensividade do contrato de adesão é necessária a fim de se evitar disposições em letras minúsculas, quase ilegíveis, que na maioria das vezes é colocado no final do acordo ou em notas de rodapé, impossibilitando que o consumidor tenha plena ciência daquilo que está contratando.

Visa-se, portanto, dar total transparência ao que será exigido, considerando-se nulas as obrigações constantes em dispositivos de difícil compreensão ou visualização. Seria extremamente contraditório, por óbvio, requerer do consumidor a obrigação do cumprimento de cláusulas contratuais da qual não teve conhecimento de seu inteiro teor e tampouco tenha participado de suas deliberações.

De igual forma, não poderá o fornecedor, valendo-se do domínio do conhecimento técnico do produto ou serviço que disponibiliza, utilizar-se de terminologias inacessíveis ao cidadão comum, vez que nos contratos de adesão a vulnerabilidade presumida do consumidor fica ainda mais latente.

Dessa forma, compreende-se que a legislação consumerista não busca inviabilizar as relações comerciais. A vida moderna nos mostra que a agilidade das transações é fundamental para um consumidor que a todo momento é instado a consumir. A aquisição de bens e serviços ganhou especial magnitude com a expansão da internet, onde cada indivíduo passou a ocupar o posto de consumidor constante a partir do momento que estiver conectado em rede. Contudo, a agilização dos acordos não pode dar espaço à insegurança, de modo que a imposição unilateral de obrigações não acarrete em onerosidade excessiva para a outra parte.


[1] NUNES, Rizzatto, "Curso de Direito do Consumidor", 13ª edição, 2019, p. 700)

[2] MARQUES, Cláudia Lima. "Comentários ao Código de Defesa do Consumidor", 6ª edição, 2019, p. 1.524

[3] NUNES, Rizzatto, "Curso de Direito do Consumidor", 13ª edição, 2019, p. 699

[4] MARQUES, Cláudia Lima, em "Comentários ao Código de Defesa do Consumidor", 6ª edição, 2019, p. 1.525).

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