Controvérsias jurídicas

A docilidade dos corpos na obra de Michael Foucault

Autor

  • Fernando Capez

    é procurador de Justiça do MP-SP mestre pela USP doutor pela PUC autor de obras jurídicas ex-presidente da Assembleia Legislativa de SP presidente do Procon-SP e secretário de Defesa do Consumidor.

8 de setembro de 2022, 17h51

Atualidade da obra de Michel Foucault (1926-1984), filósofo pós estruturalista francês, torna-se cada vez mais incontestável ao analisarmos o modus vivendi da sociedade contemporânea. Em que pese a maior parte de sua obra ter sido escrita durante a década de 1960, parte significativa permanece inédita, conforme recente publicação do quarto volume de sua História da Sexualidade. Enxergando na filosofia um modo de sacudir as evidências, desconstrói preceitos do que parece óbvio, revelando sua historicidade.

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Notadamente um dos maiores pensadores do século 20, teve como objeto de estudo as técnicas de criação e implementação de relações de poder pulverizadas em cada interação social, abandonando a concepção do marxismo estruturalista de dominação através da ordem religiosa, econômica e jurídica. Para Foucault, as relações de poder se dão no cotidiano, em espaços que estabelecem métodos de dominação próprios, revelando sua visão libertária ao afirmar que: "o inimigo maior é o fascismo. Não só o fascismo histórico de Hitler e Mussolini, mas o fascismo que está em todos nós, que martela nossos espíritos e nossas condutas cotidianas, que nos faz amar o poder, desejar essa coisa que nos domina e nos explora”.

Para compreender as engrenagens de funcionamento das relações de poder, debruçou-se sobre o indivíduo, construindo uma genealogia do sujeito histórico. Nesse contexto, a obra Vigiar e Punir (1975) ganhou especial relevo ao investigar as origens de práticas, discursos e saberes, vinculando-os com as relações de poder. Para Foucault, as relações de poder geram determinados tipos de saber, que por sua vez, produzem efeitos nas relações poder. Partindo da premissa de que a verdade é produzida e varia de acordo com os períodos históricos, colocou o sujeito histórico de conhecimento como produto do espaço/tempo de em que vive, caracterizado por especificidades de sua época.

Desse modo, é possível dizer que o autor fez uma investigação acerca da forma como os indivíduos se subjetivaram na modernidade ocidental, identificando as práticas, discursos e saberes de relações de poder que os formaram. No capítulo intitulado "Os corpos dóceis", deu espaço ao entendimento de relação de poder produtiva, no sentido de compreender o que é gerado no corpo, e não o que é reprimido, mutilado. Sua gênese não implicou, necessariamente, uma ação repressiva, violenta, sendo mais conveniente para a dominação a extração máxima de "docilidade" e utilidade. Se antes a dominação nas relações de poder se dava pelo meio jurídico, leis e regras impostas coercitivamente para a sociedade, agora também se revela por meio da "normalização", consistente no processo de adequação às normas de beleza, moral, saúde.

A ideia de normalização passou a ser difundida a partir dos estudos das ciências humanas do século 19, em especial da psiquiatria, psicologia, pedagogia e psicopedagogia, ao colocarem o homem como objeto de conhecimento. Porém, tais ciências surgiram de práticas disciplinares engendradas no século anterior. Mesmo presentes em outros momentos, foi partir do século 18 que passaram a ser utilizadas como principais elementos de dominação, criando-se uma política de coerção sobre o corpo e de manipulação sobre os gestos, movimentos e comportamentos.

Buscando não fazer uma história disciplinar das instituições, revelou as técnicas utilizadas em escolas, quartéis, hospitais e conventos de uso do corpo como ressonância de poder. Nesse sentido, a descoberta do corpo como alvo do poder ensejou no surgimento de diversas técnicas que decifraram seu funcionamento (gestos, movimentos, rapidez), esquadrinhando-o no espaço e tempo, permitindo sua dominação plena.

Tais técnicas acabaram por constituir uma microfísica do poder, um espalhamento de pequenas relações de poder que permearam, e ainda permeiam, o cotidiano dos indivíduos. Descreveu o autor quatro mecanismos de disciplinarização e adestramento dos corpos, quais sejam: arte da distribuição; controle das atividades; organização das gênesis e composição das forças.

Na arte da distribuição a disciplina ganhou o papel de distribuir os corpos no espaço físico, requerendo a construção de locais com dimensões aptas a comportar um determinado número de pessoas. Nesses locais a clausura passou a ser dispensável, tendo em vista que as disciplinas lá implementadas criaram um método mais sutil de docilização dos corpos, o "quadriculamento", consistente na disposição de cada indivíduo no seu lugar, subdividindo-o em quantas parcelas forem necessárias a fim de discipliná-lo.

O controle das atividades se refere ao domínio do horário, do tempo. Tomando como exemplo a dinâmica das escolas, as relações de controle temporal se dão na estipulação de horários de entrada e saída, recreação, saudação ao professor e duração das aulas para cada matéria. Já nos quartéis, a questão passou a ser analisada através da marcha e sua sincronia entre corpo e toque de tambores. O modo como os corpos agem durante o percurso, a unidade de todos os componentes e o entoar ritmado dos tambores resulta a interiorização dos comandos nos corpos ali presentes.

O quadriculamento do tempo por meio de sons também foi observado nas fábricas, onde o toque de entrada e saída, momento de refeição, descanso e demais determinações eram dados de acordo com cada tipo de sirene, permitindo a manobra das atividades a fim de se evitar o desperdício, tornando o corpo disciplinado mais produtivo.

Baseando-se no funcionamento de uma instituição corporativa de ensino de desenho do século 18, o autor buscou na organização das gênesis compreender como se deram as técnicas para a evolução da aprendizagem. Notou que a estrutura funcional ocorria a partir das gradações e seriações, de acordo com o nível de dificuldade que cada aluno apresentava com relação ao desenho. Aos melhores alunos eram dadas recompensas e premiações, enquanto para os piores foram reservadas penalizações e exposições, de modo a se engendrar entre eles um mecanismo de hierarquização. Criou-se, também, a concepção de complexidade em escala, na qual os exercícios eram apresentados de modo repetitivo, do simples ao mais elaborado em escala crescente.

Para além apenas do comportamento individual, a disciplina atua no coletivo, docilizando-o, de modo a medir seu desempenho e produtividade. Desse modo, com a composição de forças, Foucault desenvolveu a concepção de aglutinação de especificidades, aproximando indivíduos com características compatíveis que permitiriam a melhor utilização do tempo e do espaço para a produção.

Além do exército e das fábricas, tal técnica de dominação também se deu no que o autor denominou de "escola mútua", instituição de ensino que permitia a vigilância constante dos alunos entre si. Constitui-se, também, um sistema de comando por meio da linguagem de sinais, todos sincronizados, obedientes aos signos emanados da autoridade em sala de aula que indicavam erro, repetição, silêncio, ordem de chamada, expulsão, dentre outras.

O corpo se tornou dócil quando pôde ser submetido, dominado, melhorado, aperfeiçoado, mantendo cada indivíduo perfeitamente governável, funcionando como uma peça essencial para o funcionamento da sociedade moderna. Contudo, para que as técnicas disciplinares gerassem o comportamento politicamente útil e economicamente produtivo, foi necessária a interação de três vetores, os quais o filósofo pontuou como: norma, vigilância e exame.

A norma teve a função de estabelecer padrões de comportamento, corrigindo desvios ou inconsistências. Nesse aspecto, o aluno com nota baixa em uma prova, sentindo-se inferiorizado, busca ajuda de professores particulares ou de colegas para melhorar seu desempenho, objetivando acompanhar o desenvolvimento intelectivo médio da classe. Até mesmo um aluno com deficit de atenção ou hiperatividade, distúrbio comumente diagnosticado nos duas atuais, busca acompanhar o padrão do coletivo pela via medicamentosa, mesmo que ainda na infância.

Quanto à vigilância, conclui o autor que o sujeito se comporta conforme os padrões estabelecidos quando sabe que está sendo vigiado. É nesse cenário, por exemplo, que o professor fica posicionado de frente para os alunos em patamar elevado, sendo possível exercer a vigilância e controle pela visualização total do ambiente, ao passo que os alunos ficam organizados em filas verticais que promovem apenas uma visão parcial e fragmentada do todo. O mesmo raciocínio ocorre com a implementação de nichos envidraçados nas portas, fazendo com que os professores, mesmo ao lecionarem de portas fechadas, também se sintam vigiados pelos bedéis e inspetores dispostos nos corredores.

Por fim, o exame foi responsável por tornar o homem cognoscível, objeto de estudo. Assim, a vigilância e o exame promoveram o desenvolvimento comportamental padronizado entre médico/paciente, professor/aluno, carcereiro/prisioneiro, encarregado/operário.

As considerações filosóficas foucaultianas podem parecer distantes, porém, se mostram de grande valia na interpretação das sociedades atuais. Com o avanço da tecnologia, hoje são implementados métodos de vigilância cada vez mais eficientes, retirando do sujeito o sentimento de que está sendo monitorado. O mesmo ocorre com a normalização das condutas, que requerem dos cidadãos comportamentos padronizados e robotizados. O que os especialistas denominam de big data (conjunto de dados pessoais de um indivíduo) pode ser facilmente acessado por empresas do setor de economia comportamental, que por meio de analises estruturadas conseguem esquadrinhar o comportamento, convicções e preferências de uma pessoa. Vê-se, assim, que os meios de vigilância e controle do século 18 trazidos por Foucault, se tornaram ainda mais sutis com as relações virtuais e a intangibilidade dos dados. Para além dos espaços de escola, quartéis, conventos e hospitais, a contemporaneidade criou o ambiente de vigilância e controle ininterruptos, onde todos são vigiados, examinados e controlados a partir do momento que compartilham dados em rede.

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