Controvérsias Jurídicas

Neoconstitucionalismo trouxe a discussão moral para as decisões judiciais

Autor

  • Fernando Capez

    é procurador de Justiça do MP-SP mestre pela USP doutor pela PUC autor de obras jurídicas ex-presidente da Assembleia Legislativa de SP presidente do Procon-SP e secretário de Defesa do Consumidor.

1 de setembro de 2022, 10h41

John Dalberg-Acton (1834-1902), político, historiador, pedagogo, escritor, jornalista e filósofo, professor nas universidades de Oxford e Cambridge, foi o autor da célebre frase que relaciona a falibilidade humana com o exercício do poder, dizendo que "O poder tende a corromper, o poder absoluto corrompe absolutamente, de modo que os grandes homens são quase sempre homens maus" [1]. Em seus estudos, lorde Acton parte da premissa de que a liberdade e o livre arbítrio são os vetores dos processos históricos, onde a cada espaço de liberdade alcançado é gerado um contingente de responsabilidade. Assim, observando o poder político como fenômeno de determinação das ações do homem que retira liberdade, também se torna limitador de responsabilidades. Em linhas gerais, quanto mais livre é uma sociedade, maior a responsabilidade dos indivíduos que a integram.

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A compreensão dos conceitos de liberdade e responsabilidade trazidos pelo autor são de grande valia para analisarmos o fenômeno jurídico-político do constitucionalismo e neoconstitucionalismo, uma vez que por meio deles buscou-se limitar a ação do soberano. Desta feita, ao passo que o movimento constitucionalista restringiu o poder político, cedeu aos indivíduos liberdades fundamentais, e consequentemente, deveres essenciais.

Canotilho identifica vários constitucionalismos, em vários momentos constitucionais distintos, tais como os constitucionalismos inglês, americano e francês, conceituando-o como: "Teoria (ou ideologia) que ergue o princípio do governo limitado indispensável à garantia dos direitos em dimensão estruturante da organização político-social de uma comunidade. Nesse sentido, o constitucionalismo moderno representará uma técnica específica de limitação do poder com fins garantísticos. O conceito de constitucionalismo transporta, assim, um claro juízo de valor. É, no fundo, uma teoria normativa da política, tal como a teoria da democracia ou a teoria do liberalismo".

Dizemos que constitucionalismo foi o movimento de identificação das normas básicas que regem a vida em sociedade que teve como escopo a garantia de liberdades e limitação do poder do Estado, sendo possível identificar três períodos históricos distintos de sua construção. O constitucionalismo antigo é mais primitivo deles, identificado em algumas civilizações antigas, como a romana e a do povo hebreu, com a presença de uma mínima limitação ao poder político do Estado. No entanto, nesse período não havia nenhum documento formal que restringisse o poder do soberano, sendo sua maior parte pactuada ou convencionada.

O legado deixado pelas revoluções francesa e americana resultaram no que se denominou de constitucionalismo moderno, período notadamente marcado pela edição de constituições escritas que garantiam diversos direitos aos cidadãos. Nesse momento, o objetivo principal era a garantia da liberdade e a limitação do poder do Estado, constituindo, assim, os direitos de primeira geração (liberdade, propriedade e limitação ao poder do estado). Se considerarmos o constitucionalismo em seu sentido amplo, diremos que se tratou de um movimento que buscou limitar o poder do Estado sem a identificação de momento histórico determinado. Seu sentido estrito, contudo, remonta à limitação do poder do Estado por meio de uma Constituição escrita, com especial destaque para a Constituição dos Estados Unidos de 1787.

A ascensão de regimes totalitários e o desastre causado pela primeira e segunda guerras mundiais mostraram que a concepção moderna não era mais suficiente para a garantia dos direitos individuais, dando ensejo ao constitucionalismo contemporâneo. Trata-se do período de ampliação das constituições, com diversas garantias de direito, em especial os direitos sociais, tais como os constantes no artigo 6º da Constituição Federal de 1988.

Com a formalização da garantia de direitos em documento escrito, passou-se a debater a força normativa da Carta Constitucional, no sentido de trazer efetividade e aplicabilidade aos seus ditames. Até a segunda guerra mundial prevalecia o pensamento positivista, na qual a lei era a principal fonte de direito. Tal concepção consagrava a supremacia do legislador, vez que os direitos existiam a partir do momento que eram consubstanciados em lei. A partir de 1945 houve uma mudança de paradigma, impulsionado por textos constitucionais carregados de normas programáticas, de elevada carga valorativa, com conceitos abertos e indeterminados, que agregaram ao Poder Judiciário a atribuição de intérprete da Constituição.

O neoconstitucionalismo pode ser identificado por três importantes marcos. O histórico se remete a Europa Ocidental, especialmente à Alemanha pós vitória dos Aliados. O filosófico inaugura o período pós positivista, que busca além da legalidade escrita, empreender uma leitura moral do Direito. Por fim, o teórico reconhece a força normativa da Constituição, expandindo a jurisdição constitucional e propiciando uma nova interpretação do texto. A força normativa da Constituição permitiu que o Poder Judiciário ganhasse destaque na vida pública, uma vez que da aplicação direta da Constituição o juiz passou a ser provocado a tomar decisões de caráter político. Além de aplicar o direito e dirimir os conflitos, as decisões judiciais ganharam dimensão executiva, atendendo a demandas sociais e organizando políticas públicas não reguladas ou negligenciadas pelo Executivo.

Como exemplo desse momento, citamos a ação civil pública proposta pelo Ministério Público do Rio Grande do Sul em face do Estado, no sentido de que fossem realizadas obras de melhoria na casa do albergado de Uruguaiana. O juiz de 1ª instância entendeu pela pertinência da demanda, determinando o prazo máximo de seis meses para a realização das obras. Em sede recursal, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul reformou a decisão, afirmando que não cabia ao Poder Judiciário determinar ao Poder Executivo a realização de obras em estabelecimento prisional, sob pena de ingerência indevida na seara reservada à Administração Pública.

Por meio de recurso extraordinário, o Ministério Público recorreu ao Supremo Tribunal Federal, que firmou entendimento de que cabe ao Poder Judiciário determinar que a Administração Pública realize reforma ou obras em presídios para garantir os direitos fundamentais dos presos, bem como sua integridade física e moral.

"I – É lícito ao Judiciário impor à Administração Pública obrigação de fazer, consistente na promoção de medidas ou na execução de obras emergenciais em estabelecimentos prisionais. II – Supremacia da dignidade da pessoa humana que legitima a intervenção judicial. III – Sentença reformada, que de forma correta, buscava assegurar o respeito à integridade física e moral dos detentos, em observância ao art. 5º, XLIX, da Constituição Federal. IV – Impossibilidade de opor-se à sentença de primeiro grau o argumento da reserva do possível ou princípio da separação dos poderes. V – Recurso conhecido e provido" [2].

Diferentemente do que preconizava os positivistas ou adeptos da Teoria Pura do Direito, a concepção neoconstitucionlista, ou pós-positivista, aproximou o Direito e a Moral. Ao redimensionar a força normativa de princípios revestidos de elevada carga axiológica (dignidade da pessoa humana, igualdade, solidariedade social, Estado democrático de Direito), o neoconstitucionalismo abriu as portas para discussões morais por meio de decisões judiciais, tais como a implementação de políticas públicas, função típica do Poder Executivo.

O mesmo raciocínio prevaleceu em outras decisões polêmicas com forte repercussão na sociedade. Na ADPF 54/DF, a Suprema Corte descriminalizou a conduta abortiva em feto anencéfalo, reforçando a laicidade do Estado e a liberdade sexual e reprodutiva da mulher como direito fundamental:

"ESTADO  LAICIDADE. O Brasil é uma República laica, surgindo absolutamente neutro quando às religiões. Considerações. FETO ANENCÉFALO  INTERRUPÇÃO DA GRAVIDEZ – LIBERDADE SEXUAL E REPRODUTIVA  SAÚDE  DIGNIDADE  AUTODETERMINAÇÃO  DIREITOS DUNDAMENTAIS  CRIME  INEXISTÊNCIA. Mostra-se inconstitucional a interpretação de a interrupção da gravidez de feto anencéfalo ser conduta tipificada nos artigos 124, 126 e 128, incisos I e II do Código Penal" [3].

O mesmo se diga da decisão que garantiu direitos igualitários de pessoas casadas e em união estável:

"É inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros prevista no artigo 1.790 do CC/02, devendo ser aplicado, tanto nas hipóteses de casamento quanto nas de união estável, o regime do artigo 1.829 do CC/02" [4].

Não obstante se reconheça certa conveniência do neoconstitucionalismo e suas consequências práticas, há aqueles que advertem de possíveis riscos de sua adoção para a democracia, tendo em vista a judicialização excessiva da vida social, o perigo de uma jurisprudência ancorada em conceitos abertos e, sobretudo, dos problemas advindos da constitucionalização do Direito para a autonomia pública e privada dos cidadãos e manutenção da separação dos poderes. De algum modo, decidir pelo Executivo incidiria na usurpação indireta do direito de livre escolha e seus governantes pelo povo.


[1] "Power tends to corrupt, and absolute power corrupts absolutely in such manner that great men are almost always bad men". Carta para o Bispo Mandell Creighton de 05 de abril de 1887. In FIGGIS, J. N. e LAURENCE, R.V. Historical Essays and Studies, Londres: Macmillan, 1907.

[2] STF, RE 592581, relator: ministro Ricardo Lewandowski, Tribunal Pleno, j. 13/08/15. p. 01/02/16.

[3] STF, ADPF 54/DF, relator: ministro Marco Aurélio. Tribunal Pleno, j. 12/04/12, p. 30/04/13.

[4] STF, Res878.694 e 646.721, relator: ministro Luis Roberto Barroso, Tribunal Pleno, j. 10/05/2017.

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