Controvérsias jurídicas

Limitação às garantias fundamentais e o Estado democrático de Direito

Autor

  • Fernando Capez

    é procurador de Justiça do MP-SP mestre pela USP doutor pela PUC autor de obras jurídicas ex-presidente da Assembleia Legislativa de SP presidente do Procon-SP e secretário de Defesa do Consumidor.

25 de agosto de 2022, 10h43

Pedra angular do constitucionalismo clássico, todo governo constitucional deve ser limitado, evitando-se, assim, o arbítrio instituído por um regime despótico. Referência histórica e normativa quanto a esses limites, a Constituição dos Estados Unidos, de 1789, estabeleceu as premissas de garantia das liberdades individuais, com a sujeição dos Poderes às normas constitucionais.

Spacca
Paradoxalmente, a omissão generalizada do Estado no âmbito privado levou a sociedade a caminhos tão tirânicos quanto em sua presença absoluta, como se viu nas fábricas pós-revolução industrial. Nesse contexto, visando garantir condições mínimas de dignidade, emergiram as Constituições dos Estados Sociais, notadamente a Constituição do México, de 1917, e da República de Weimar (Alemanha), de 1919, destacando a garantia à previdência social, proteção dos vulneráveis, empregabilidade e salário mínimo. Posteriormente, sob os efeitos das guerras mundiais, o movimento constitucional buscou resguardar a existência de futuras gerações e a partilha do espaço comum, dando especial atenção ao direito à paz, ao meio-ambiente equilibrado e ampla participação política.

O título II da Constituição Federal de 1988 é composto pelos capítulos referentes aos "direitos e deveres individuais e coletivos", "nacionalidade"; "direitos políticos" e "partidos políticos"; todavia, é possível encontrarmos garantias fundamentais em outros artigos ali não contidos, como os atinentes à limitação do poder de tributar. Quanto à sua classificação geracional, identificamos que os direitos de 1ª geração estão presentes no capítulo dos "direitos e deveres individuais e coletivos", acrescido das garantias. Posteriormente encontram-se os "direitos econômicos e sociais", chamados de 2ª geração; e por fim, no artigo 225, identificam-se um dos direitos de 3ª geração, relativos à proteção do meio ambiente (direitos transgeracionais).

Nas palavras de Nelson Nery Júnior, os direitos fundamentais constituem, na atualidade, a conjunção dos direitos humanos universais e dos direitos nacionais do cidadão, garantidos pela Constituição, contra possíveis arbítrios que possam ser cometidos pelo Estado ou particulares. Mesmo cada qual das categorias contendo suas especificidades, ambas integram o que se denominou de cultura de um Estado democrático de Direito.

Dada sua magnitude, os direitos e garantias fundamentais têm natureza constitucional e devem preponderar sobre os interesses público e particular. Presentes majoritariamente na CF, artigo 5º, seu rol é exemplificativo, numerus apertus, admitindo, portanto, a inclusão de outros direitos que lá não conste, tal como ao meio ambiente sadio, reconhecido como fundamental em decisão do Supremo Tribunal Federal.[1]

Temos como regra em nosso ordenamento jurídico a supremacia dos direitos e garantias fundamentais ante os interesses do Estado e de particulares. Diferentemente do que defendia Friedrich Klein, para qual a ideia de restrição a direitos suscitava o problema relativo à possibilidade lógica de estabelecimento de tais restrições, afirmando que, segundo as leis da lógica, não pode existir restrição a direito fundamental, mas, apenas, um conceito dela, sua preponderância não é absoluta, admitindo-se, excepcionalmente, hipótese em que sofra mitigação, desde que ponderada pelo princípio da proporcionalidade.

"Não se pode fazer da exceção regra e banalizar essa excepcionalidade, tangendo direitos fundamentais ao argumento de que o interesse público deve prevalecer sobre eles. No verdadeiro estado Constitucional, não se deve distinguir Estado e sociedade, porquanto esse Verfassungsstaat não se caracteriza, apenas, pelo princípio da legalidade formal que subordina os poderes públicos às leis gerais e abstratas, mas também pela legalidade substancial, que vincula o funcionamento desses mesmos poderes à garantia dos direitos fundamentais e da dignidade da pessoa humana[2]."

Gilmar Mendes nos mostra que a Carta de 1988 trouxe consigo o estabelecimento de restrições diretas e indiretas a diferentes direitos fundamentais[3]. Tomando como exemplo a garantia à inviolabilidade das comunicações telefônicas, a própria Constituição autorizou sua suspensão mediante ordem judicial, "nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer, para fins de investigação criminal ou instrução processual penal" (artigo 5º, XII). O mesmo se diga do direito e garantia ao trabalho, desde que "atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer" (artigo 5º, XIII), ou das liberdades ambulatoriais em todo território nacional "em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens" (artigo 5º, XVII).

Sua dimensão eminentemente constitucional se dá pelo fato de que podem se opor aos interesses do Estado ou do indivíduo, constituindo-se desde a Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1789, como o principal meio de garantia legal individual contra o abuso de poder e desmandos estatais. Para que sua excepcional restrição seja possível, aponta a doutrina cinco requisitos cumulativos: a restrição deve estar constitucionalmente autorizada; a limitação deve ser proporcional; a restrição deve atender ao interesse social; o ato do poder público que restringe direitos e garantias fundamentais deve ser exaustivamente fundamentado e o ato do poder público que limita as garantias constitucionais deve ser constantemente revisado pelo Poder Judiciário. [4]

Não basta fundamentação legal infraconstitucional para a limitação de uma garantia, sendo imperiosa sua justificação constitucional. Embora seja possível a delimitação de garantias fundamentais pela via legislativa, é necessária expressa remissão ao dispositivo constitucional que a autorize. Assim, caso a mitigação emane de um ato administrativo ou se baseie em legislação ordinária sem previsão constitucional, será nula e deverá ser extirpada do ordenamento pelo controle de constitucionalidade repressivo.

"Os direitos fundamentais, enquanto direitos de hierarquia constitucional somente podem ser limitados por expressa disposição constitucional (restrição imediata) ou mediante lei ordinária promulgada com fundamento imediato na própria Constituição (restrição mediata).[5]"

De igual forma, toda limitação de garantias fundamentais deverá ser proporcional, observando-se sua estrita necessidade e a vedação do excesso, impedindo que o cerceamento excepcional e temporário não culmine na extinção do direito em si. Mesmo não expressamente previsto na Constituição, o princípio da proporcionalidade (ou proibição de excessos) configura-se como condicionante para o Estado democrático de Direito, tendo em vista que sua função é controlar a ação que restringe as liberdades individuais.

De modo geral, a doutrina o subdivide em três subprincípios, quais sejam: idoneidade; necessidade e proporcionalidade em sentido estrito. Idoneidade consiste na aptidão das medidas restritivas no atingimento de um objetivo. O subprincípio da necessidade preconiza que de todos os meios idôneos disponíveis e aptos para o atingimento do objetivo, deverá ser escolhido o que causar menor impacto aos direitos fundamentais. Por fim, no que se refere ao subprincípio da proporcionalidade em sentido estrito, estaremos diante cotejamento entre a restrição imposta e o benefício que com ela se busca atingir.

Quanto aos interesses sociais, a restrição ocorre como garantia de outro direito fundamental de modo a amparar e conferir maior tutela e proteção para a coletividade. Daí que a restrição fundada no interesse social somente poderá ocorrer a partir da explicitação de que os direitos fundamentais da sociedade serão privilegiados.

O quarto requisito é amparado pela CF, artigo 93, IX, ao dizer que "todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação". A exegese do dispositivo nos mostra a incompatibilidade entre a discricionariedade e o Estado democrático de Direito, sujeitando à ilegalidade o ato da Administração Pública que não estiver amparado em argumentos fáticos-jurídicos que demonstrem sua conveniência.

Finalmente, o último requisito nos coloca a necessidade de reiterada revisão judicial de ato do poder público que mitigar direito e garantia fundamental. Ao dizer que "a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito", a Constituição, em seu artigo 5º, XXXV, também conferiu ao Poder Judiciário o controle da constitucionalidade e legalidade dos atos da Administração Pública, onde toda e qualquer restrição de direitos fundamentais que desviar de sua finalidade precípua ou não atender aos demais requisitos, deverá ser declarada ilegal.


[1] STF, Pleno, MCADI 3540-DF, rel. Min. Celso de Mello, j. 01/09/05, DJU 05/11/05.

[2] GARCÍA-HERRERA, Miguel Ángel. Poder judicial y Estado Social. Legalidade y resistência constitucional, p. 71.

[3] MENDES, Gilmar Ferreira e BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional, 14ª edição, São Paulo, Ed. Saraiva, 2019, p. 197.

[4] NERY JR. Nelson e NERY, Rosa Maria de Andrade. Constituição Federal Comentada, 8ª edição, São Paulo, Ed. Thomson Reuters, 2022, p. 140.

[5] MENDES, Gilmar Ferreira e BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional, 14ª edição, São Paulo, Ed. Saraiva, 2019, p. 200.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!