Direitos Fundamentais

STF decide pela irretroatividade parcial da reforma na Lei de Improbidade

Autores

5 de setembro de 2022, 14h52

O Supremo Tribunal Federal decidiu: as inovações em matéria de improbidade mais favoráveis ao acusado não retroagem, salvo no que toca a norma que extinguiu a improbidade culposa, que retroage somente para atingir os processos em curso e os fatos ainda não processados. Neste texto, o nosso intento é meramente descritivo, designadamente o de explicar tudo o que ficou decidido, com o detalhamento dos votos dos ministros. A decisão ocorreu nos autos do Agravo em Recurso Especial nº 843/989/PR e representou o Tema 1.199 de Repercussão Geral.

Spacca
Já não é mais novidade que a Lei nº 14.230/21 provocou profundas mudanças na Lei de Improbidade Administrativa (Lei nº 8.429/1992). Dentre as diversas inovações, três em especial já tiverem sua constitucionalidade questionada no STF: a) o reconhecimento do Ministério Público como o único competente para o ajuizamento da ação de improbidade; b) a supressão da improbidade culposa; c) os novos marcos prescricionais.

Quanto ao primeiro ponto, o ministro Alexandre de Moraes, nos autos das ADIns 7.042/DF e 7.043/DF, decidiu de forma monocrática parte da cautelar requerida para, entre outras determinações, dar interpretação conforme à Constituição ao caput e §§ 6-A, 10-C e 14 do artigo 17 da Lei nº 8.429/92, no sentido de existir uma competência concorrente entre o Ministério Público e as pessoas jurídicas interessadas para a propositura da ação de improbidade. Portanto, o que se pode afirmar é que voltou a valer a sistemática vigente antes da Lei nº 14.230/21 até que sobrevenha decisão definitiva do Plenário do STF quanto ao tema, seja confirmando ou revogando a cautelar.

Já as outras duas inovações mencionadas foram objeto de discussão nos autos do ARE nº 843.989/PR, cujo julgamento se encerrou no último 18/9. Em linhas gerais, a controvérsia girava em torno da definição de eventual (ir)retroatividade das disposições da Lei nº 14.230/2021, em especial, em relação: (1) à necessidade da presença do elemento subjetivo — dolo — para a configuração do ato de improbidade administrativa, inclusive no artigo 10 da Lei de Improbidade Administrativa; e (2) à aplicação dos novos prazos de prescrição geral e intercorrente.

Em sua manifestação, o procurador-geral da República, Augusto Aras, se posicionou contra a tese da retroatividade. Segundo ele, entender o contrário representa retrocesso que vai "…de encontro à ordem jurídico-constitucional de preservação da probidade e de combate à corrupção". Nesse sentido, propôs a fixação das seguintes teses: a) as alterações do caput do artigo 10 da LIA apenas explicitam a vedação à responsabilidade objetiva do agente, que, sistematicamente, sempre foi proibida no sistema brasileiro, o qual prossegue permitindo a punição do erro grosseiro; b) os novos prazos de prescrição geral e intercorrente previstos pela Lei 14.230/2021, para os atos de improbidade administrativa que tenham sido cometidos antes da referida lei, somente são computados a partir da data de sua promulgação.

No julgamento, por maioria, foi firmada a seguinte tese:

a. é necessária a comprovação do elemento subjetivo do dolo para a configuração dos atos de improbidade administrativa;

b. a norma que aboliu a improbidade culposa não retroage para atingir a coisa julgada, também não tendo incidência durante o processo de execução das penas e seus incidentes;

c. a norma que aboliu a improbidade culposa retroage e é aplicável imediatamente aos processos em curso e aos fatos ainda não processados, cabendo ao juízo competente, em qualquer caso, analisar eventual dolo do agente, hipótese em que a ação poderá continuar tramitando;

d. o novo regime prescricional é irretroativo e os novos marcos interruptivos começam a correr a partir da publicação da lei, garantindo-se a eficácia dos atos praticados validamente antes da alteração legislativa.

O relator do recurso, ministro Alexandre de Moraes, votou pela irretroatividade das disposições mais benéficas aos acusados. Ele iniciou sua argumentação destacando a natureza civil dos atos e da ação de improbidade administrativa, bem como que o Direito Administrativo sancionador em nada se confunde com o Direito Penal. Nesse sentido, entendeu que a aplicação ao sistema da improbidade dos princípios constitucionais do Direito Administrativo sancionador não implica na aplicação também dos princípios constitucionais penais, dentre os quais a retroatividade da lei mais benéfica — inciso XL do artigo 5º da Constituição.

Contudo, seguiu ele, nos processos em curso a regra da irretroatividade atinge somente os atos já praticados. Os atos a serem praticados, por outro lado, devem a ela guardar deferência, de modo que nos processos em andamento hão de ser aplicadas as novas disposições em matéria de improbidade, com destaque para a regra que suprimiu a modalidade de improbidade culposa. Mas, também, aqui, há uma exceção: os novos marcos prescricionais. Segundo o ministro, não há o que falar em retroatividade dos novos prazos sob pena de se surpreender o Estado que, até então, agia regularmente. Em outras palavras, como o Estado não estava inerte com base na lei vigente a época da sua atuação ele não pode ser considerado inerte com base em uma lei superveniente.

Nesse sentido, propôs a fixação da tese no sentido de que somente a norma que aboliu a improbidade culposa retroage e apenas para atingir os processos em curso. Sua proposta se sagrou vencedora no julgamento, com duas exceções: na proposta original, entendeu o ministro que cabia ao magistrado, na análise do caso concreto, avaliar eventual má-fé ou dolo eventual do agente. A maioria dos ministros da corte, contudo, não concordou com a inclusão da expressão má-fé, na medida em que em momento algum ela é tratada pela lei como um elemento subjetivo caracterizador da improbidade.

Além disso, o relator não votou pela retroatividade da norma, e sim pela não ultratividade da lei antiga, no sentido de que não é a lei nova que retroage, mas a lei antiga que, uma vez revogada, não pode ser utilizada como base para novas condenações — tanto é assim que, nesse ponto, a sua proposta de tese original começava da seguinte forma: "aplicam-se os princípios da não ultratividade e tempus regit actum…". Também aqui ele ficou vencido, votando a maioria do Tribunal pela retroatividade da Lei nº 14.230/2021.

Apenas quatro ministros votaram pela irretroatividade total das novas disposições: Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Rosa Weber e Cármen Lúcia. Os demais, como veremos a seguir, parcial ou integralmente, e alguns com divergências de fundamento, votaram com o relator. Em especial, os ministros André Mendonça, Dias Toffoli, Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes votaram no sentido de que a retroatividade norma que excluiu a modalidade culposa estende-se também à coisa julgada.

O ministro André Mendonça abriu a divergência. Segundo ele, a improbidade faz parte do gênero direito sancionador, dos quais também são espécies o direito penal e o ilícito civil, de modo que nada impede a aplicação dos princípios gerais do direito sancionador ao sistema da improbidade, dentre os quais a retroatividade da lei mais benéfica ao acusado. Com base nesse e em outros argumentos, concluiu que a norma que excluiu a modalidade culposa de improbidade retroage (1) para atingir os processos em curso e os fatos ainda não processados e (2) para atingir a coisa julgada, hipótese em que será necessário o manejo da ação rescisória.

Quanto aos novos marcos prescricionais, propôs o ministro as seguintes teses: a) o novo prazo de prescrição intercorrente aplica-se de maneira imediata aos processos em curso, tendo como marco inicial nesses casos a entrada em vigor da Lei nº 14.230/21; b) o novo prazo de prescrição geral tem aplicabilidade imediata aos processos em curso e aos fatos ainda não processados. Contudo, se o prazo já tivesse começado a correr quando da publicação da Lei nº 14.230/21, valeria o prazo da lei antiga, que é de cinco anos, se não, valeria o novo prazo, oito anos.

O ministro Nunes Marques acompanhou o voto do relator quanto a norma que suprimiu a modalidade culposa, divergindo quanto aos novos prazos prescricionais. Para o ministro, os novos prazos retroagem para atingir os processos em curso, inclusive no que toca ao marco do início de contagem dos prazos. Segundo ele, os princípios gerais do direito administrativo sancionador aplicam-se ao sistema da improbidade dada a sua natureza repressiva e sancionatória, além de que a regra constitucional da irretroatividade é uma via de mão única: se trata de uma garantia do cidadão contra inovações legislativas mais severas, que não pode ser invocada pelo Estado a favor de si mesmo.

Os ministros Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Rosa Weber e Cármen Lúcia, por outro lado, entenderam que as novas disposições mais benéficas aos acusados não retroagem em nenhum caso, esteja o processo já transitado em julgado ou ainda em curso. Segundo eles, os atos e a ação de improbidade possuem natureza puramente civil, não havendo o que se cogitar, portanto, da aplicação dos princípios constitucionais penais, que devem ser interpretados e aplicados restritivamente.

O ministro Dias Toffoli acompanhou o voto do ministro André Mendonça no que toca a norma que aboliu a improbidade culposa e o voto do ministro Nunes Marques no que toca aos novos marcos prescricionais (retroatividade inclusive quanto ao marco inicial de contagem). Segundo ele, aplica-se ao sistema de improbidade a mesma lógica que rege o Direito Penal, haja vista o caráter eminentemente repressivo e sancionatório da Lei de Improbidade Administrativa.

O ministro Ricardo Lewandowski votou no mesmo sentido do ministro André Mendonça no que toca a norma que aboliu a modalidade culposa de improbidade, isto é, ela retroage para atingir os processos em curso e os já transitados em julgado, mas divergiu quanto aos novos prazos prescricionais. Nesse último ponto, o ministro Lewandowski votou no sentido de que o novo prazo de prescrição intercorrente começa a correr somente a partir da publicação da lei, ao passo que o novo prazo de prescrição geral retroage para atingir fatos consumados à luz da lei antiga.

O ministro Gilmar Mendes, por sua vez, votou com o relator, no sentido de que a norma que aboliu a improbidade culposa retroage somente para atingir os processos em curso — no fundamento, contudo, votou pela tese da retroatividade, e não pela tese da não ultratividade. Quanto aos novos prazos prescricionais, votou no sentido da retroatividade do novo prazo de prescrição geral e no sentido da irretroatividade do novo prazo de prescrição intercorrente, que é aplicável somente às ações ajuizadas após o advento da Lei nº 14.230/21.

Por fim, o presidente do tribunal, ministro Luiz Fux, seguiu integralmente o voto do relator, inclusive no que toca a tese da não ultratividade da lei antiga.

Em resumo, e considerando somente o resultado das votações (sem entrar no mérito das divergências) somente quanto aos fundamentos e razões de cada ministro:

a. votaram a favor da retroatividade da norma que excluiu a modalidade culposa de improbidade para atingir os processos em curso os Ministros Alexandre de Moraes, André Mendonça, Nunes Marques, Dias Toffoli, Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes e Luiz Fux;

b. votaram a favor da retroatividade da norma que excluiu a modalidade culposa de improbidade para atingir também os processos já transitados em julgados os Ministros André Mendonça, Nunes Marques, Dias Toffoli, Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes;

c. votaram pela retroatividade do novo prazo de prescrição intercorrente, os Ministros Nunes Marques de Dias Toffoli – para os demais, o novo prazo começa a correr a partir da vigência da Lei n. 14.230/21;

d. votaram pela retroatividade do novo prazo de prescrição geral os Ministros André Mendonça, Nunes Marques, Dias Toffoli, Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes, sendo que o primeiro defendeu uma posição alternativa.

Em linhas gerais, as consequências da tese firmada pelo STF são as seguintes:

a. as pessoas que estão sendo processadas exclusivamente pela prática de ato culposo de improbidade devem ser absolvidas, ante a supressão dessa modalidade pela Lei nº 14.230/21;

b. as pessoas que já foram processadas e executadas, bem como as pessoas que estão sendo atualmente executadas (o processo de conhecimento já se encerrou e o feito está na fase de cumprimento de sentença), não são beneficiadas pelas novas disposições ainda que tenham sido acusadas somente pela prática de ato de improbidade culposo;

c. os novos prazos prescricionais passam a contar somente a partir da publicação da Lei nº 14.230/2021, de modo que as ações ajuizadas na vigência da lei anterior continuam a respeitar os prazos nela estabelecidos.

Apresentados, em síntese apertada, o julgamento e os votos dos ministros, o que se constata é que a polêmica que já se travava de forma acirrada na doutrina apenas tende a se intensificar, posto que não faltam os que não se conformam com a decisão, controvérsia que, como já se está a visualizar, agora impactará diretamente a aplicação da nova legislação pelo Poder Judiciário, inclusive no que concerne à adequada interpretação da própria decisão da Suprema Corte. Ao fim e ao cabo, cuida-se de tema que nunca permitiu que alguém se pudesse queixar de tédio e não faltarão colunas na ConJur e em todos os meios discutindo a matéria.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!