Opinião

Legitimidade do MPT nos casos de assédio eleitoral na Administração Pública

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26 de outubro de 2022, 7h12

O número de casos de assédio eleitoral aumentou assombrosamente, são 1.135 denúncias, conforme dados atualizados do Ministério Público do Trabalho até ontem, dia 24 de outubro, cerca de nove vezes maior que o número de casos registrados em 2018. Ainda assim, considerando as dimensões continentais do país e polarização política, sem espaço para "terceira via", é de se cogitar que o número real de casos seja bem superior.

A maioria dos casos de assédio eleitoral acontece nas relações privadas de trabalho, todavia, não se pode ignorar a existência de assédio eleitoral na administração pública, e nesses casos, algumas questões surgem, dentre as quais: o MPT tem legitimidade para investigar, expedir recomendações, fazer acordos e, em último caso, processar entes ou servidores públicos pela prática de assédio eleitoral na administração pública? A Justiça do Trabalho tem competência para apreciar esse tipo de matéria? O presente artigo busca responder essas questões.

MPT na defesa meio ambiente do trabalho equilibrado
O MPT tem por missão a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, tem como dever constitucional garantir os ditames da dignidade da pessoa humana, do valor social do trabalho e da justiça social nas relações de trabalho (artigos 1º, III e IV, artigo 127, caput e artigo 170 da CF).

Compete a este ramo do Ministério Público da União adotar as medidas extrajudiciais e judiciais cabíveis para fazer cumprir a legislação trabalhista, notadamente quando há interesse público que justifique sua intervenção, podendo instaurar Inquérito Civil, expedir Recomendações, firmar Termos de Ajustamento de Conduta e propor Ações Civis Públicas (artigo 129, III e IV da CF, LC 75/93 e LACP).

Dentre as matérias que justificam a atuação do MPT está o (saudável) meio ambiente do trabalho, direito fundamental de todos trabalhadores, aí incluindo os servidores públicos, que também são titulares desse direito. O disposto no artigo 225, caput, da CF trata do meio ambiente de forma ampla, não afastando a necessidade de manutenção do equilíbrio ambiental também em microambientes, como o meio ambiente do trabalho  local onde as pessoas passam a maior parte do seu dia e, possivelmente, de suas vidas. A Constituição, ao garantir o direito ao meio ambiente de trabalho equilibrado, não distinguiu os trabalhadores do setor privado dos trabalhadores do setor público, e nem poderia: por tratar-se de direito difuso, seus titulares são todas as pessoas, independentemente do vínculo jurídico subjacente.

Nesta esteira, e considerando a indisponibilidade do direito ao meio ambiente do trabalho equilibrado, a Coordenadoria Nacional da Defesa do Meio Ambiente do Trabalho do Ministério Público do Trabalho editou a Orientação nº 07, que versa sobre o tema:

"ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. ATUAÇÃO NA DEFESA DO MEIO AMBIENTE DO TRABALHO. O Ministério Público do Trabalho possui legitimidade para exigir o cumprimento, pela Administração Pública direta e indireta, das normas laborais relativas à higiene, segurança e saúde, inclusive quando previstas nas normas regulamentadoras do Ministério do Trabalho e Emprego, por se tratarem de direitos sociais dos servidores, ainda que exclusivamente estatutários. (Redação alterada na 6ª reunião Nacional dos Membros da Codemat, ocorrida em agosto de 2008)."

Portanto, não restam dúvidas que o Ministério Público do Trabalho detém legitimidade para atuar nos casos em que o meio ambiente do trabalho saudável é o tema discutido, seja qual for o vínculo que submete o trabalhador ao ambiente de trabalho  estatutário ou celetista.

Assédio eleitoral como espécie de assédio moral ou assédio eleitoral como elemento degradante do meio ambiente de trabalho
O assédio moral é uma nefasta prática conhecida e muito comum, seja no âmbito da administração pública ou nas relações privadas de trabalho. Trata-se de violência psicológica, infligida por superiores hierárquicos ou colegas de trabalho, que expõem a vítima a situações constrangedoras e humilhantes. O assédio moral, assim como qualquer tipo de discriminação no ambiente de trabalho, desestabiliza a vítima psicologicamente, podendo ser a causa de graves transtornos, como a ansiedade e a depressão. É um mal que deve ser firmemente combatido e o MPT tem um relevante papel nessa batalha, pois tem instrumento legais adequados para tanto.

Já o assédio eleitoral, nada mais é que uma espécie de assédio moral, e que também constitui conduta discriminatória (o que nem sempre ocorre com o assédio moral). O assédio eleitoral é conduta repelida por normas nacionais e internacionais de proteção dos direitos humanos, sendo caracterizado pela legislação a partir de uma conduta abusiva que atenta contra a dignidade do trabalhador, submetendo-o a constrangimentos e humilhações, com a finalidade de obter o engajamento subjetivo da vítima em relação a determinadas práticas ou comportamentos de natureza política durante o pleito eleitoral [1].

No plano internacional, a Declaração Universal dos Direitos Humanos veda a discriminação sobre quaisquer de suas formas; o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos da ONU (1996), garante a todas as pessoas o direito de participar dos assuntos públicos, diretamente ou por meio de representantes e também o direito de votar; a Convenção nº 111 da OIT, norma com status supralegal, proíbe toda "distinção, exclusão ou preferência, com base em raça, cor, sexo, religião, opinião política, nacionalidade ou origem social, que tenha por efeito anular ou reduzir a igualdade de oportunidade ou de tratamento no emprego ou profissão". A Convenção nº 190 da OIT reconhece o assédio nas relações de trabalho como uma violação aos Direitos Humanos, sendo uma ameaça inaceitável e incompatível com o trabalho decente, a Convenção (artigo 1º) aponta como violência ou assédio no mundo do trabalho "uma série de comportamentos e práticas inaceitáveis, ou ameaças desses, seja uma única ocorrência ou repetida, que visam, resultam ou podem resultar em danos físicos, psicológicos, sexuais ou econômicos e inclui violência e assédio de gênero".

No plano nacional, o assédio moral e a discriminação por orientação política são terminantemente vedados, posto que o pluralismo político, a não discriminação e a liberdade de consciência, de expressão e de orientação política, são direitos fundamentais positivados em normas constitucionais que se consubstanciam em cláusulas pétreas (artigos 1º, II, III, IV e V, artigo 3º, IV, artigo 5º, caput, VI e VIII e artigo 7º, XXX da CF). Até a reforma trabalhista, que trouxe regras de questionável convencionalidade e constitucionalidade no teste da vedação do retrocesso social, positivou medida em que atribui à comissão de representantes de empregados o dever de "assegurar tratamento justo e imparcial aos empregados, impedindo qualquer forma de discriminação por motivo de sexo, idade, religião, opinião política ou atuação sindical" (artigo 510-B, V da CLT).

O que se percebe é que não faltam normas para proteger a liberdade de opinião política e a garantia do voto livre, essas garantias são degradadas quando ocorre assédio eleitoral no meio ambiente do trabalho. O assédio eleitoral é um assédio moral qualificado, mas algumas distinções precisam ser feitas entre o assédio moral e o assédio eleitoral.

Normalmente o assédio moral é configurado a partir de condutas reiteradas no tempo, isto é, não se trata de assédio moral, em regra, um único evento, um único fato, que pode até gerar o direito à reparação por danos morais, mas não configura assédio moral. Tal dogma deve ser flexibilizado quando tratamos do assédio eleitoral, primeiro porque o tempo eleitoral é diferente do tempo normal, não há espaço para uma conduta reiterada no tempo quando, por exemplo, entre o primeiro e o segundo turno das eleições se passa menos de um mês.

Outro ponto é que no assédio eleitoral, passado o período eleitoral e vitorioso ou não o candidato do assediador, não há mais motivo para continuidade do assédio  apenas para eventuais reprimendas , daí que o tema do assédio eleitoral deve ser analisado sob a perspectiva de que o assediador tem um objetivo de curto prazo: influenciar o resultado das eleições, por isso que assédio eleitoral pode ocorrer mesmo a partir de um único ato, conforme análise do caso concreto. Essa interpretação está de acordo com a Convenção nº 190 da OIT, que conceitua violência ou assédio no ambiente de trabalho a partir de "uma única ocorrência ou repetida".

Sendo assim, parece muito claro que qualquer tipo de conduta degradante do meio ambiente trabalho deve ser seriamente reprimida, sob pena de violação a postulados fundamentais do próprio Estado de Direito e da Democracia, que tem dentre os seus pilares o pluralismo político e a liberdade de consciência.

Assédio eleitoral na Administração Pública e legitimidade do MPT
Sabe-se que, com o fenômeno da terceirização, não há mais repartição pública cujos trabalhadores sejam apenas estatutários, os celetistas também estão no meio ambiente de trabalho da administração pública. Esse fato é fundamento suficiente para que o Ministério Público do Trabalho atue nos casos de assédio eleitoral no âmbito da Administração Direta e Indireta, já que dificilmente a conduta atingirá somente os trabalhadores estatutários.

Mas suponhamos que o assédio eleitoral na administração pública seja praticado exclusivamente contra servidores estatutários, seria a Justiça do Trabalho competente para processar e julgar eventual ação para coibir a conduta? A resposta é positiva, vejamos.

Em um raciocínio mais simples, a questão seria já liquidada com a leitura do artigo 114, I da Constituição, que dispõe competir à Justiça do Trabalho processar e julgar as ações oriundas das relações de trabalho em sentido amplo, o que inclui os trabalhadores da administração pública, sejam estatutários ou celetistas, uma vez que a Constituição fala em "trabalhadores" e não em "empregados". Esta interpretação, no entanto, foi rechaçada na ADI 3.395, tendo o STF entendido que compete à Justiça Comum processar e julgar as causas que envolvam conflitos entre os servidores públicos e à administração pública, pois essas demandas são relacionadas a direitos tratados nos estatutos dos servidores.

Logo, é de se concluir que os casos de assédio eleitoral na administração pública são de competência da Justiça Comum, conforme ADI 3.395? A resposta é não. Explico: sendo o assédio eleitoral uma espécie de assédio moral, e uma violação ao meio ambiente do trabalho equilibrado, uma ação judicial que tente coibir o assédio eleitoral tem como causa de pedir a modificação do ambiente laboral dentro de uma relação de trabalho, o que atrai a competência da Justiça do Trabalho, nos termos da Súmula 736 do STF: "Compete à justiça do trabalho julgar as ações que tenham como causa de pedir o descumprimento de normas trabalhistas relativas à segurança, higiene e saúde dos trabalhadores".

O STF já respondeu essa questão fazendo a distinção entre o precedente veiculado na ADI 3.395-MC e o casos de violação do meio ambiente de trabalho na administração pública:

"[…] Ao julgar a ADI 3.395-MC, este Tribunal deferiu medida cautelar para suspender toda e qualquer interpretação dada ao inciso I do artigo 114 da CF, na redação dada pela EC 45/2004, que inclua, na competência da Justiça do Trabalho, a apreciação de causas que sejam instauradas entre o Poder Público e seus servidores, a ele vinculados por típica relação de ordem estatutária ou de caráter jurídico-administrativo. 3. As circunstâncias do caso concreto, no entanto, não permitem a aplicação dessa orientação. Isto porque o debate instaurado na origem diz respeito ao cumprimento de normas relativas à higiene, saúde e segurança dos trabalhadores de hospital público (estatutários e celetistas), matéria que não parece ser alcançada pelo paradigma invocado. Assim, entendo não haver identidade estrita entre a hipótese dos autos e o julgado na ADI 3.395-MC". (Rcl 20.744 AgR, relator ministro Roberto Barroso, 1ª T, j. 2-2-2016, DJE 34 de 24-2-2016).

Esse distinguish feito pelo STF é de fundamental importância, já que define a competência da Justiça do Trabalho para atuar nos casos de assédio eleitoral na administração pública, como espécie de assédio moral que degrada o meio ambiente do trabalho, pois não há se falar que esse tipo de ação verse sobre regime jurídico estatutário, se a causa de pedir for adequação do meio ambiente do trabalho (ex., coibir assédio eleitoral), a competência será da Justiça do Trabalho e, por consequência, haverá legitimidade do MPT.

Mas há quem questione a competência da Justiça do Trabalho e do MPT no tema do assédio eleitoral na administração pública, argumentando que, em todo caso, ou se trata de crime eleitoral, e a competência é da Justiça Comum, ou se trata de matéria não-trabalhista (relação jurídico-estatutária), sendo competente a Justiça Comum ou, no máximo, a Justiça Eleitoral.

Respeitosamente, não concordo com essa posição, isto porque, quando a causa de pedir for a proteção do meio ambiente de trabalho equilibrado no âmbito da administração pública, a competência é da Justiça do Trabalho, conforme o precedente já citado, precedente este que é resultado de uma distinção com o precedente anterior, fato que lhe dá maior qualidade e menos generalidade, trazendo mais segurança na sua aplicação ao caso, pois o Tribunal se debruçou novamente sobre o tema explicitando uma hipótese de não aplicação.

Ressalte-se, ainda, que não é possível falar em violação ao princípio do promotor natural pelo fato do MPT instaurar Inquérito Civil com o fito de apurar eventual assédio eleitoral no âmbito da Administração Pública. O servidor público (latu sensu) que pratica assédio eleitoral no âmbito da administração, pratica um fato que repercute em todas as esferas jurídicas: no âmbito cível a vítima tem direito à reparação por danos morais; no âmbito penal o assediador comete crime eleitoral; no âmbito administrativo o assediador pratica improbidade administrativa por violação dos da administração pública e no âmbito trabalhista pode ser alvo de ação civil pública visando a reparação por danos morais coletivos e obrigações de fazer ou não fazer.

Por fim, é preciso deixar claro que nenhuma pessoa perde seu status de cidadão por ser um agente público, todos brasileiros podem manifestar suas preferências políticas, o que é vedado pelo ordenamento jurídico é o constrangimento no meio ambiente de trabalho com vistas a beneficiar determinado candidato, ambiente este que deveria ser livre desse tipo de violência política, especialmente quando vem de um agente público que deve observar os deveres da imparcialidade, impessoalidade e legalidade.

Conclusão
O assédio eleitoral é um sintoma da infantilidade democrática já denunciada por Victor Nunes Leal em 1948 [2], um resquício do mandonismo que, como sistema de falseamento da representação política, nada mais é que um grave atentando contra a democracia.  Ocorre que, diferente do contexto em que o referido autor escreveu sua tese, hoje temos um Poder Judiciário e um Ministério Público bem estruturados, equipados com prerrogativas e garantias constitucionais que fazem essas instituições preparadas para enfrentar o problema do assédio eleitoral.

Mas de nada adianta uma boa estrutura sem a fixação de regras claras e objetivas, sob pena do combate ao assédio eleitoral na administração pública ser ineficiente. Daí a contribuição do presente artigo, que pode ser resumida em três conclusões:

1) A Justiça do Trabalho é competente para processar e julgar as ações que tenham como causa de pedir adequação do meio ambiente do trabalho na administração pública contra o assédio eleitoral.

2) O Ministério Público do Trabalho tem legitimidade para atuar (extrajudicial e judicialmente) nos casos de assédio eleitoral na administração pública, por tratar-se de tema relativo ao meio ambiente do trabalho equilibrado.

3) Não há violação do princípio do promotor natural na instauração de Inquérito Civil, pelo Ministério Público do Trabalho, para apurar possível caso de assédio eleitoral no âmbito da administração pública.


[1] Nota Técnica nº 001/2022 da COORDIGUALDADE do Ministério Público do Trabalho.

[2] "[…] Essa ascendência dos dirigentes do Estado resulta naturalmente do fortalecimento do poder público, mas tem sido consolidada pelo refletido emprego desse poder para fins de política partidária. A precariedade das garantias da magistratura e do Ministério Público (ou sua ausência) e a livre disponibilidade do aparelho policial sempre desempenharam a esse respeito saliente papel, de manifesta influência no falseamento do voto, e essa prática — atenuada, é certo — ainda subsiste. A utilização do dinheiro, dos serviços e dos cargos públicos, como processo usual de ação partidária, também se tem revelado de grande e eficácia na realização dos mesmos objetivos". (LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto: o município e o regime representativo no Brasil. Editora: Companhia das Letras. 7ª edição, p. 205).

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