Fábrica de Leis

Por que a análise de impacto legislativo ainda não é realidade no Brasil?

Autor

  • Victor Marcel Pinheiro

    é bacharel mestre e doutor em Direito do Estado pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) ex-visiting scholar na Universidade Columbia (EUA) ex-aluno visitante na Ludwig-Maximilians-Universität München (Alemanha) advogado e consultor legislativo do Senado e professor do Instituto Brasileiro de Ensino Desenvolvimento e Pesquisa (IDP).

18 de outubro de 2022, 8h00

É notável a ampliação do debate sobre a análise de impacto legislativo (AIL) no Brasil. Já há diversas publicações e cursos que se destinam a aprofundar as reflexões teóricas e práticas sobre o tema [1]. Desde já, cabe registrar que se entende a AIL como uma modalidade ex ante de análise (ou, no mesmo sentido, avaliação) de impacto regulatório (AIR), em que se objetiva identificar e avaliar possíveis consequências de diferentes alternativas regulatórias em face de um problema a ser enfrentado pela edição de um ato legislativo. Em outras palavras, a AIL é uma análise de impacto regulatório aplicada a uma proposição legislativa.

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Cabe destacar que no âmbito dos países membros da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) a realização de AIR sobre projetos de lei (aqui denominada de AIL) já é realidade há muitos anos. Atualmente, todos os países que pertencem a essa organização e a União Europeia exigem a AIL para os projetos de lei mais relevantes apresentados perante os parlamentos nacionais [2].

E no Brasil, quanto avançamos na prática da realização da AIL?

A verdade é que, a despeito das reflexões acadêmicas, ainda não avançamos muito. Basta constar que até hoje — pelo menos no plano federal — não se realiza a AIL de forma sistematizada nem mesmo para as proposições legislativas consideradas mais relevantes.

Como será visto abaixo, é verdade que o Congresso e o Poder Executivo federal têm envidado esforços para aumentar a qualidade da produção legislativa no Brasil, sendo possível identificar diversos de seus elementos na prática da elaboração legislativa. Contudo, isso ainda não foi o suficiente para transformar a AIL em prática sistematizada e rotineira.

Como tentativa de explicação desse cenário, elencam-se três fatores relevantes para tanto: a) a falta de institucionalização normativa da AIL, b) uma cultura de elaboração de legislação ainda fundada em uma visão voluntarista do exercício do poder político e c) o receio de apropriação da decisão política por agentes técnicos.

Quanto à falta de institucionalização normativa da AIL, falta a previsão de sua realização em sede normativa — seja constitucional, legal ou regimental — ou até mesmo diretiva não-vinculante por parte das instituições públicas. Há, é verdade, uma série de normas jurídicas que apresentam elementos da análise ex ante e ex post de propostas normativas ou políticas públicas, mas não um conjunto integrado de normas ou diretrizes específicos para a AIL. Como exemplos mais relevantes, mencionam-se em ordem cronológica:

a) o artigo 96-B do Regimento Interno do Senado Federal (Risf), incluído pela Resolução 44/ 2013, que de modo inovador criou a possibilidade de as comissões permanentes da Casa realizarem avaliações ex post de políticas públicas;

b) o artigo 113 do ADCT, incluído pela Emenda Constitucional nº 95/2016, que exige estimativas de impacto orçamentário-financeiro para proposições que criem ou alterem despesas obrigatórias ou renúncia de receita;

c) o Decreto nº 9.191, de 2017, que regulamenta a Lei Complementar nº 95/1998, no âmbito do Poder Executivo federal, cujo Anexo estabelece uma série de diretrizes de legística formal e material na elaboração das minutas de proposições legislativas, medidas provisórias e decretos a serem submetidos à apreciação da Presidência da República;

d) Lei 13.848/2019 (Lei das Agências Reguladoras Federais) e Lei 13.874/2019 (Lei de Liberdade Econômica), que disciplinam a AIR ex ante para determinados atos administrativos normativos; e

e) a inclusão do § 16 no artigo 37 da Constituição pela Emenda Constitucional 109/2021, que determina a realização de avaliação de políticas para o poder público federal, estadual, distrital e municipal, nos termos de lei a ser editada.

Reitera-se que nenhum desses diplomas prevê expressamente de modo integrado a realização de AIL para proposições legislativas. Para além de não haver a previsão da AIL como etapa procedimental ex ante, tais diplomas apenas estabelecem alguns de seus elementos (como o artigo 113 do ADCT e o Decreto nº 9.191, de 2017) ou focam na Avaliação ex post de políticas públicas em sentido amplo (artigo 37, § 16, da Constituição e artigo 96-B do Risf). Chama atenção o fato de que, no plano federal, a realização de AIR ex ante é apenas obrigatória para atos normativos inferiores a decreto, não sendo exigida para proposições legislativas, nos termos da Lei das Agências Reguladoras Federais, Lei de Liberdade Econômica e Decreto 10.411/2020.

Há diversas proposições legislativas que objetivam institucionalizar a AIL ou seus elementos no processo legislativo, entre elas: a) PEC 184/2015 — Câmara dos Deputados, que acresce o § 2º ao artigo 59 e artigo 170-A à Constituição Federal, para determinar a estimativa de impactos financeiros de proposições legislativas sobre os agentes econômicos, b) Projeto de Lei 488/2017, que altera a Lei Complementar 95/1998 e prevê a realização obrigatória de AIL para projetos de leis que instituam políticas públicas, c) Projeto de Resolução do Senado 52/2018, que exige AIR para subsidiar pareceres da Comissão de Infraestrutura do Senado Federal no caso de matérias que possam afetar o equilíbrio econômico-financeiro de contratos de concessão e parcerias público-privadas, e d) o Projeto de Resolução do Senado 7/2020, que exige a AIL para propostas de emenda à Constituição relacionadas ao direito financeiro, econômico, tributário e previdenciário que tenham repercussão econômica. Nenhuma dessas proposições, contudo, foi transformada em ato normativo.

Essa constatação leva imediatamente ao segundo fator que dificulta a implementação da AIL no Brasil: uma cultura de elaboração legislativa ainda fundada em uma visão voluntarista do exercício do poder político.

Não é raro encontrar em textos acadêmicos ou debates políticos, de modo expresso ou implícito, a percepção de que a legitimidade da atividade de legislar seria fundada exclusivamente ou predominantemente na vontade da maioria parlamentar. Nesse sentido, a regra da maioria seria, em si mesma, o atributo que conferiria respaldo político à tomada de decisões legislativas, sem maiores exigências procedimentais relacionadas ao debate público de alternativas ou participação social dos interessados. Essa cultura voluntarista da elaboração da lei influencia não somente a decisão sobre seu conteúdo, mas também a definição do próprio rito procedimental a ser seguido na sua elaboração.

Essa percepção é reforçada no caso brasileiro por alguns julgados do STF, em que se dá a entender que a atividade legislativa seria apenas regulada do ponto de vista constitucional por regras expressas em seu texto de seu artigo 59 a 69. Como exemplo, pode ser mencionado a decisão proferida pelo Tribunal no RE 1.297.884 (Tema 1.120, Pleno, relator ministro Dias Toffoli, j. 14/6/2021)[3] e na ADI 6.968 (rel. min. Edson Fachin, j. 22/4/2022)[4], em que se reiterou o entendimento de que, salvo em caso de incidência de normas constitucionais, o Poder Legislativo é único intérprete, aplicador e protetor de suas normas regimentais em razão da doutrina dos atos interna corporis, inclusive de adoção de regimes de urgência e supressão de pareceres colegiados das comissões permanentes das casas legislativas.

Ocorre que há uma transformação das percepções sobre os conceitos de representação política e soberania popular que impactam diretamente na compreensão constitucional das exigências normativas relacionadas ao processo legislativo. Embora não se tenha espaço para desenvolver por completo o argumento aqui, o próprio STF já reconheceu em outras decisões que o devido processo legislativo apresenta uma dimensão principiológica que, para além da regra da maioria, exige o respeito, entre outros, aos princípios da igualdade política, participação social, publicidade, deliberação e eficiência durante o processo de elaboração das leis [5].

Isso significa que, do ponto de vista constitucional, a elaboração das leis não deve ser compreendida como um fiat discricionário, mas uma atividade que envolve toda a sociedade. É, portanto, desejável que haja um amplo debate público sobre as alternativas postas perante o Poder Legislativo, inclusive com a possibilidade de realização de AIL nos casos de propostas mais relevantes de legislação.

Como terceiro e último fator aqui levantado para a falta de implementação da AIL no direito brasileiro, há o receio de apropriação da decisão política por agentes técnicos no sentido de uma transferência de poder decisório dos parlamentares para burocratas do poder público e agentes privados, corroendo as bases democráticas do processo legislativo.

Para afastar esse receio deve ser pontuado que a AIL não é a aplicação de uma fórmula matemática ou de uma racionalidade exclusivamente econômica ao processo de elaboração normativa. É verdade que a análise de custo-benefício, em que se identificam os custos e benefícios economicamente determinados de uma alternativa regulatória, é a metodologia mais comum utilizada para a realização da AIL. Entretanto, ela também revestida de pressupostos normativos abertos ao debate político para a estimativa de valoração econômica de uma série de consequências da regulação. Basta mencionar o grande debate político e moral sobre como mensurar atividades que criam ou mitigam riscos à vida, cujos pressupostos são objeto de grande divergência [6].

Além disso, há outras metodologias que também são utilizadas para realização da AIL, mencionando-se a análise de custo-efetividade, em casos de maior dificuldade de monetização dos benefícios esperados, e a análise multicritério, em que outros fatores são levados em consideração para fins de avaliação das diferentes alternativas regulatórias. Também se investigam os impactos sobre os direitos fundamentais em suas diversas dimensões. Novamente, aqui, há pressupostos normativos que são objeto de debate e divergências jurídicas, políticas, morais, sociais e econômicas.

Ainda mais relevante: a AIL não define qual será o curso de ação a ser adotado pela decisão legislativa. Trata-se apenas de uma etapa preliminar cujo objetivo é oferecer maiores subsídios informacionais — inclusive advindos dos agentes econômicos e sociais — para que a sociedade como um todo e o Poder Legislativo possam debater com maior profundidade as diferentes alternativas regulatórias à disposição em determinado momento. É inerente ao processo de tomada de decisão legislativa que existam divergências jurídicas, morais, sociais, políticas e econômicas entre pessoas de boa-fé não somente quanto aos problemas a serem enfrentados e à avaliação de alternativas disponíveis, mas à própria definição de qual é a alternativa mais adequada considerando o momento político e os demais problemas coletivos a serem resolvidos em que medida e com quais recursos.

A título de conclusão, abre-se espaço para a discussão sobre quais mecanismos adequados para sua institucionalização, previsão de hipóteses de realização obrigatória ou de dispensa e as especificidades da AIL em face da AIR — temas a serem abordados futuramente. De todo modo, a implementação da AIL passa por sua correta compreensão como um procedimento auxiliar na tomada de decisão pelos parlamentares. Sua institucionalização e realização na prática permitirão maiores ganhos informacionais, deliberativos e de participação social durante o processo de elaboração legislativa no quadro constitucional da democracia brasileira.

 


[1] A título de exemplo, veja-se a obra organizada por Fernando Meneguin e Rafael Silveira, Avaliação de impacto legislativo: cenários e perspectivas para sua aplicação, Brasília, Senado Federal, 2017, e o curso online organizado em 2021 pelo Instituto do Legislativo Paulista, disponível na íntegra em: https://www.youtube.com/c/ilpsp.

[2] OCDE, Regulatory Policy Outlook, Paris, 2021, p. 72.

[5] Cf. Victor Marcel Pinheiro, Devido processo legislativo: princípios, elaboração das leis ordinárias no Congresso Nacional e controle judicial, Tese de doutorado apresentada à Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2022.

[6] Vejam-se os diferentes métodos de atribuição de valor a uma vida estatística na recente revisão de literatura publicada para consulta pública pelo Ipea, Valor de uma vida estatística: uma revisão de literatura empírica para o Brasil, 2022.

Autores

  • é bacharel, mestre e doutor em Direito do Estado pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), advogado e consultor legislativo do Senado Federal, professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP) e coordenador-geral da pós-graduação em Poder Legislativo e Direito Parlamentar do Instituto Legislativo Brasileiro (ILB).

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