Observatório Constitucional

Regimes de urgência dos regimentos do Congresso: o debate na ADI 6.968

Autor

  • Victor Marcel Pinheiro

    é bacharel mestre e doutor em Direito do Estado pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) ex-visiting scholar na Universidade Columbia (EUA) ex-aluno visitante na Ludwig-Maximilians-Universität München (Alemanha) advogado e consultor legislativo do Senado e professor do Instituto Brasileiro de Ensino Desenvolvimento e Pesquisa (IDP).

26 de fevereiro de 2022, 8h00

Na ADI nº 6.968, ajuizada em agosto de 2021, pleiteia-se a interpretação conforme à Constituição do artigo 153 do Regimento Interno da Câmara dos Deputados e do artigo 336 do Regimento Interno do Senado Federal, que tratam dos regimes de urgência requeridos pelos parlamentares. Esses dispositivos estabelecem as hipóteses em que poderá ser concedida urgência para tramitação de uma proposição legislativa — por exemplo, um projeto de lei —, o que implica a aceleração do procedimento legislativo, especialmente com a redução dos prazos regimentais, possibilidade de supressão do exame colegiado da proposição pelas comissões competentes e a apresentação e exame de emendas diretamente em plenário.

De acordo com o requerente, tais dispositivos, da forma como usualmente interpretados e aplicados pelo Congresso Nacional, violam o devido processo legislativo, especialmente as normas constitucionais sobre competências das comissões parlamentares (artigo 58), soberania popular (artigo 1º, parágrafo único) e devido processo legal (artigo 5º, LIV). Isso porque o regime de urgência — caso seja atribuído a uma proposição de modo injustificado — levaria a um encurtamento dos debates em prejuízo dessas exigências constitucionais. Por essas razões, requer a interpretação conforme à Constituição para que seja exigida fundamentação em concreto nos requerimentos de urgência para que se admita sua constitucionalidade.

Deve ser reconhecido que a utilização dos regimes de urgência no processo legislativo, do ponto de vista empírico, não é a exceção, mas a regra.

Durante a 55ª Legislatura (2015-2019), por volta de 70% das leis ordinárias promulgadas no período tramitaram em algum tipo de regime de urgência constitucional ou regimental. Especificamente sobre os projetos de lei, dos 272 projetos convertidos em lei, 146 deles (53,6%) foram aprovados em regime de urgência regimental [1]. Esse alto número de proposições apreciadas em regime de urgência leva à redução da participação das comissões no processo legislativo, sendo substituídas por pareceres monocráticos de plenário que muitas vezes não são fruto de profundas discussões entre os parlamentares — o que João Trindade, em outro artigo deste Observatório, denominou "o desastre dos pareceres de plenário" [2].

Desse modo, devem os dispositivos impugnados ser objeto de interpretação conforme à Constituição para exigir-se fundamentação dos requerimentos de urgência sob pena de inconstitucionalidade formal da respectiva proposição legislativa?

A resposta é negativa por pelo menos três razões.

A Constituição Federal, seguindo a tradição constitucional brasileira e de diversos países, garante a autonomia dos Parlamentos para estabelecerem suas regras sobre o procedimento legislativo. Essa autonomia remonta à doutrina dos atos interna corporis, formulada por autores como Von Gneist e Dicey, fundada, em última análise, na Bill of Rights de 1689, em momento histórico em que se defendiam as prerrogativas parlamentares nos regimes monárquicos em fase de constitucionalização [3]. Contudo, a leitura contemporânea da autonomia procedimental do Poder Legislativo não pode ser confundida com sua suposta "soberania" ou a insindicabilidade das normas regimentais [4].

Como já exposto em coluna anterior deste Observatório [5], o STF, reafirmando sua jurisprudência, definiu que cabem às casas parlamentares interpretar e aplicar seus regimentos internos, somente sendo justificável a intervenção judicial no processo legislativo com base no desrespeito às normas constitucionais que o disciplinam. Nesse sentido, o tribunal fixou a seguinte tese no RE 1.297.884 (relator ministro Dias Toffoli, j. 14/6/2021):

Em respeito ao princípio da separação dos poderes, previsto no artigo 2º da Constituição Federal, quando não caracterizado o desrespeito às normas constitucionais pertinentes ao processo legislativo, é defeso ao Poder Judiciário exercer o controle jurisdicional em relação à interpretação do sentido e do alcance de normas meramente regimentais das casas legislativas, por se tratar de matéria interna corporis.

Nesse mesmo sentido, a autonomia do Poder Legislativo para definir suas normas procedimentais está fundada no caráter discursivamente aberto da produção legislativa do direito, que deve ser permeável a diversos argumentos e narrativas presentes nas diferentes dimensões da esfera pública [6]. Isso exige que se tenham procedimentos com alto grau de flexibilidade para fazer frente — nas palavras de Waldron — às "circunstâncias da política", ou seja, "a necessidade experimentada por membros de um certo grupo por uma estrutura, decisão ou curso de ação comuns em alguma questão, mesmo em face do desacordo sobre o que essa estrutura, decisão ou ação devam ser" [7].

A partir dessa leitura do processo legislativo, deve ser reconhecido que a Constituição Federal garante ao Poder Legislativo o poder de disciplinar seus procedimentos internos de tomada de decisão, inclusive as proposições que podem ter uma tramitação mais célere do que a usual para fazer frente a demandas consideradas prementes. Embora a Constituição Federal estabeleça a estrutura do Congresso Nacional em comissões (artigo 58), não há uma regra constitucional expressa que determine que toda proposição legislativa deva ser necessariamente apreciada por esses colegiados, de modo que se trata de questão a ser resolvida autonomamente por meio dos regimentos parlamentares.

A segunda razão para afastarem-se os argumentos postos na inicial da ADI nº 6.968 é que há uma diferença relevante no regime constitucional da urgência exigida para edição de medidas provisórias e da urgência solicitada pelo presidente da República a seus projetos de lei em relação àquela prevista nos regimentos parlamentares.

A Constituição Federal disciplina expressamente o requisito de urgência para as medidas provisórias (artigo 62) e os pedidos de urgência feitos pelo presidente da República a projetos de lei de sua autoria (artigo 65, §§1º a 4º). Trata-se de expedientes à disposição do Poder Executivo que interferem diretamente no andamento dos trabalhos do Poder Legislativo. Nesses casos, há regras constitucionais que devem ser interpretadas à luz do princípio da separação de poderes para exigir que as alterações ao rito procedimental ordinário de um poder sobre as atividades de outro sejam acompanhadas de justificativas que poderão ser excepcionalmente controladas pelo Poder Judiciário. No caso das medidas provisórias, esse argumento ganha ainda mais força pelo fato de elas produzirem efeitos jurídicos imediatos a partir de sua publicação, possibilitando, em caráter excepcional, o controle judicial das razões oferecidas como justificadoras da urgência constitucional, como já definido pelo STF [8].

Já no caso das normas regimentais, tratam-se de regras definidas pelo próprio Poder Legislativo, de modo que não há interferência de outro poder na definição de seus trabalhos. A avaliação da oportunidade política de se deliberar sobre determinadas proposições é da essência das atividades do Poder Legislativo, que o faz em contato direto com a sociedade mediante o vínculo de representação política selecionando os temas e propostas considerados relevantes em determinado momento. A definição do rito procedimental a ser seguido, portanto, ampara-se em sua autonomia para definir um procedimento flexível para tomada de decisões conforme as circunstâncias políticas da ocasião.

A terceira razão é a de que não há na Constituição Federal uma regra geral expressa sobre a fundamentação de atos praticados no processo legislativo. A exceção pontual é o artigo 113 do ADCT que exige estimativa de impacto econômico-financeiro de proposições legislativas que criem ou alterem despesa obrigatória ou impliquem renúncia de receita, sendo que o STF já interpretou esse dispositivo no sentido de que essas estimativas devem estar presentes durante o processo de tomada de decisão legislativa [9]. De todo modo, trata-se de exigência que se relaciona à fundamentação do mérito das proposições em discussão e não da fundamentação de atos relacionados ao procedimento legislativo.

Significa isso que o Poder Legislativo tem absoluta discricionariedade para disciplinar o procedimento legislativo e cumprir ou não as normas que ele mesmo estabelece?

Novamente a resposta é negativa.

Como reconhecido pelo STF, o devido processo legislativo constitucional é composto não apenas por regras, mas também por princípios que disciplinam o exercício do poder político e são diretamente relacionados ao sistema democrático-representativo adotado pela Constituição Federal [10].

A compreensão de que o devido processo legislativo abarca não somente regras, mas também diversos princípios diretamente relacionados ao sistema democrático também têm sido adotada por outras cortes constitucionais como as de África do Sul [11], Colômbia [12], Espanha [13] e Israel [14]. De um modo geral, tais tribunais reconhecem que uma mera irregularidade regimental não leva necessariamente a uma inconstitucionalidade formal. Entretanto, nos casos de "vícios que vão até o coração do processo" de produção de normas — como expresso pela Suprema Corte de Israel —, poderá haver uma inconstitucionalidade formal por violação direta a esses princípios.

Nesse sentido, a tomada de uma decisão legislativa em concreto que impeça a maior parte dos parlamentares e a sociedade de conhecerem o conteúdo da proposição a ser debatida, não oportunize às minorias exercerem suas prerrogativas de questionar pontos sensíveis e se posicionar sobre questões controversas e sobre a qual não sejam oferecidos argumentos de modo a esclarecer e justificar as medidas pretendidas pode, em casos graves e excepcionais, levar à inconstitucionalidade formal de norma assim editada. Embora não haja espaço para aprofundamentos aqui, trata-se de postura já adotada pelas cortes constitucionais acima retratadas e sinalizada pelo STF como um possível caminho para a proteção constitucional dos princípios do devido processo legislativo.

Em conclusão, com base na autonomia procedimental do Congresso Nacional, devem ser evitadas construções interpretativas que criem regras rígidas a partir dos princípios do devido processo legislativo. Podem ser até desejáveis, de lege ferenda, normas regimentais que exijam fundamentação mais robusta dos requerimentos de urgência, entretanto, elas não estão diretamente contidas na Constituição Federal. Desse modo, não há de se falar de uma regra constitucional que exija fundamentação dos requerimentos de urgência, pois aqui existe um espaço de definição dos ritos procedimentais a serem adotados que, em última análise, se funda no caráter discursivamente aberto do nosso sistema representativo democrático.

 


[1] Dados da pesquisa de tese de doutorado do autor em andamento.

[2] João Trindade Cavalcante Filho, "O desastre dos ''pareceres de Plenário': por que as comissões são fundamentais", Consultor Jurídico, 13/11/2021, disponível em:
https://www.conjur.com.br/2021-nov-13/observatorio-constitucional-desastre-pareceres-plenario-comissoes-sao-fundamentais

[3] Cf. Cristina Fasone, "Legislatures as Hostages of Obstructionism: Political Constitutionalism and the Due Process of Lawmaking", Review of Constitutional Studies 21, 2016, 63-84.

[4] Como salienta José Afonso da Silva, "os interna corporis já não são mais aquele ídolo de soberania dos Parlamentos, seu prestígio de outrora se apaga diante de outros valores, porque acima da soberania do Parlamento, que eles sinalizavam, está a soberania da Constituição, a que têm que prestar vassalagem", Processo constitucional de formação das leis, 3ª ed., São Paulo, Malheiros, p. 352.

[5] Victor Marcel Pinheiro, 3 sentidos do devido processo legislativo e o julgamento do RE 1.297.884 pelo STF, 28/8/2021, disponível em:
https://www.conjur.com.br/2021-ago-28/observatorio-constitucional-sentidos-devido-processo-legislativo-julgamento-re-1297884.

[6] Para uma análise da visão habermasiana de esfera pública e sua relação com o processo legislativo, ver Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira, Devido processo legislativo: uma justificação democrática do controle jurisdicional de constitucionalidade das leis e do processo legislativo, 3ª ed., Belo Horizonte, Fórum, 2016, e Leonardo Augusto de Andrade Barbosa, Processo Legislativo e Democracia, Belo Horizonte, Del Rey, 2010.

[7] Jeremy Waldron, Law and Disagreement, Cambridge, Cambridge University, 1999, p. 102.

[8] Como um dos principais casos sobre o tema, ver ADI-MC 4048 (rel. min. Gilmar Mendes, j. 14/5/2008).

[9] Ver, por exemplo, a ADI nº 5.186 (rel. min. Alexandre de Moraes, j. 15/11/2019) e ADI nº 6.074 (rel. min. Rosa Weber, j. 21/12/2020).

[10] Ver, por exemplo, a seguinte passagem do voto da relatora, min. Cármen Lúcia, acompanhada pela maioria do Tribunal, no sentido de que "inclui-se no devido processo legislativo a observância, ao longo do procedimento de elaboração da emenda constitucional, dos princípios da moralidade e probidade" (ADI 4887, rel. min. Cármen Lúcia, j. 11/11/2020, p. 19). Em sentido semelhante, destaca o Min. Roberto Barroso que "haverá inconstitucionalidade formal por violação ao devido processo legislativo também quando for afetado o núcleo essencial do princípio da moralidade". (ADI-MC 4.885, rel. min. Marco Aurélio, j. 27/6/2018, voto do min. Roberto Barroso, p. 33).

[11] Como leading case, ver o julgado da Suprema Corte da África do Sul Doctors for Life International v. Speaker of the National Assembly, j. 17/8/2006, em que se discutiu a incidência do princípio da participação social sobre o processo legislativo.

[12] Como um dos casos mais expressivos, ver a decisão da Corte Constitucional da Colômbia no Acórdão C-776/03, j. 9/9/2003, em que examinou a extensão do princípio da deliberação durante o processo legislativo.

[13] Relembre-se o leading case pioneiro no direito comparado da jurisprudência do Tribunal Constitucional da Espanha, STC 99/1987, em que se declarou a possível inconstitucionalidade de atos legislativos produzidos de modo a vulnerar os princípios democráticos.

[14] No caso Quantinsky v. Knesset, j. 06/08/2017, a Suprema Corte de Israel declarou a inconstitucionalidade de uma lei tributária por diversas irregularidades procedimentais que implicaram a violação a diversos princípios do processo legislativo, inclusive o de os parlamentares participarem em condições de igualdade das deliberações legislativas.

Autores

  • é doutorando em Direito do Estado pela Faculdade de Direito da USP, ex-visiting scholar na Universidade de Columbia (EUA), consultor legislativo do Senado Federal, advogado e professor do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP).

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