Observatório Constitucional

3 sentidos do devido processo legislativo e o julgamento do RE 1.297.884 pelo STF

Autor

  • Victor Marcel Pinheiro

    é bacharel mestre e doutor em Direito do Estado pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) ex-visiting scholar na Universidade Columbia (EUA) ex-aluno visitante na Ludwig-Maximilians-Universität München (Alemanha) advogado e consultor legislativo do Senado e professor do Instituto Brasileiro de Ensino Desenvolvimento e Pesquisa (IDP).

28 de agosto de 2021, 8h00

No último dia 14 de junho, o STF julgou o RE 1.297.884 (pleno, relator ministro Dias Toffoli), fixando a seguinte tese: "Em respeito ao princípio da separação dos poderes, previsto no artigo 2º da Constituição Federal, quando não caracterizado o desrespeito às normas constitucionais pertinentes ao processo legislativo, é defeso ao Poder Judiciário exercer o controle jurisdicional em relação à interpretação do sentido e do alcance de normas meramente regimentais das casas legislativas, por se tratar de matéria interna corporis".

No presente artigo, objetiva-se compreender o alcance desse entendimento. Para tanto, inicialmente, serão sinteticamente expostas as circunstâncias e os principais argumentos do julgamento e, na sequência, investigado como ele se relaciona ao princípio do devido processo legislativo, que tem ganhado cada vez mais atenção na jurisprudência do tribunal.

No RE 1.297.884, discutiu-se a constitucionalidade do artigo 4º da Lei nº 13.654, de 23 de abril de 2018, que revogou a causa de aumento de pena pelo emprego de arma branca no crime de roubo, prevista no inciso I do § 2º do artigo 157 do Código Penal. Questionou-se a constitucionalidade do dispositivo, em razão de a redação do projeto de lei respectivo (Projeto de Lei do Senado nº 149, de 2015), aprovado em fase inicial terminativamente na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) do Senado Federal, não o contemplar. Somente nos autógrafos enviados à Câmara dos Deputados para revisão houve sua previsão no texto do respectivo projeto.

Em face desses fatos, criou-se grande controvérsia sobre a constitucionalidade do artigo 4º da Lei nº 13.654, de 2018, pelo fato de não ter sido aprovado pela CCJ do Senado em fase inicial, nem ter sido publicado no Diário do Senado, o que teria impedido a utilização do recurso por um décimo dos senadores ao Plenário da Casa, nos termos do artigo 58, § 2º, inciso I, da Constituição.

O STF, no caso em exame, não reconheceu vício de inconstitucionalidade no dispositivo. Nos termos do voto do relator, ministro Dias Toffoli, a maioria do tribunal entendeu que a questão se "restringia à interpretação do artigo 91 do Regimento Interno do Senado Federal, não tendo sido caracterizado, contudo, desrespeito às normas pertinentes ao processo legislativo previstas nos artigos 59 a 69 da Constituição Federal [1]". Dessa forma, não foi identificada uma questão constitucional, adotando-se o entendimento de que a interpretação e tutela das normas regimentais é matéria interna corporis, em razão da autonomia do Poder Legislativo decorrente do princípio da separação de poderes. Com base nessas razões, o tribunal fixou a tese acima exposta.

Como já alertado em outras oportunidades neste Observatório Constitucional, não se pode interpretar uma tese como se fosse um enunciado normativo autônomo, pois se trata apenas da expressão textual da ratio decidendi utilizada em uma decisão judicial. Além disso, um precedente não deve ser lido de modo isolado, mas dentro de uma linha de decisões dos tribunais que dialogam com os argumentos do caso sob exame [2].

Diante disso, questiona-se: como deve ser compreendida a decisão do STF no RE 1.297.884 em relação ao controle judicial de constitucionalidade dos requisitos de desenvolvimento válido do processo legislativo, especialmente as normas dos regimentos internos das casas legislativas?  

O exame cuidadoso do enunciado da tese revela a real extensão e profundidade do julgado, especialmente em razão da sua ressalva "quando não caracterizado o desrespeito às normas constitucionais pertinentes ao processo legislativo". A pergunta que imediatamente se coloca é: quais são essas normas constitucionais pertinentes ao processo legislativo?

Naturalmente as regras constitucionais extraídas dos artigos 59 a 69 e artigo 166 da Constituição Federal são exemplos, uma vez que estabelecem condições para apresentação, discussão, emendamento e votação de proposições legislativas, entre outros. Ocorre que a jurisprudência do tribunal também reconhece a existência de princípios mais abrangentes que se aplicam às atividades parlamentares e ao processo legislativo, como preclusão [3], publicidade [4] e moralidade [5]. Para fins do presente artigo, examina-se um deles em específico: o princípio do devido processo legislativo.

Deve ser reconhecido que não há uniformidade na jurisprudência do Tribunal a respeito. Há, pelo menos, três sentidos distintos e não excludentes utilizados pelo STF ao fazer referência ao "devido processo legislativo".

No primeiro sentido, "devido processo legislativo" é um direito constitucional subjetivo dos parlamentares de modo a "preservar a própria regularidade e legitimidade do processo de válida formação dos atos emanados do Poder Legislativo [6]". Esse primeiro sentido possibilita a atribuição de legitimidade ativa aos parlamentares para questionarem, via mandado de segurança, eventuais atos praticados durante o processo legislativo contrários à Constituição, ou seja, abre-se a possibilidade do controle judicial de constitucionalidade previamente ao momento de promulgação do ato legislativo. Trata-se de entendimento consolidado na corte, tendo sido adotado pela primeira vez no leading case MS 20.257 [7]. Fica claro, portanto, que as razões de decidir expressadas na tese fixada no RE 1.297.884 não implicam superação dessa tradicional linha jurisprudencial.

O segundo sentido de compreensão do devido processo legislativo pelo STF é como um direito fundamental difuso: "o direito que têm todos os cidadãos de não sofrer interferência, na sua esfera privada de interesses, senão mediante normas jurídicas produzidas em conformidade com o procedimento constitucionalmente determinado [8]". Nesse sentido, o devido processo legislativo é um princípio constitucional que protege o interesse de toda a sociedade de que o processo de elaboração normativa seja realizado com o cumprimento das normas constitucionais respectivas. Caso essas normas sejam violadas, não haverá o desrespeito apenas a um direito subjetivo dos parlamentares, mas a um verdadeiro direito difuso, o que acarretará a inconstitucionalidade formal do respectivo ato legislativo.

Em sede doutrinária, há argumentos desenvolvidos por Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira e Leonardo Augusto de Andrade Barbosa que, partindo de uma visão de democracia deliberativa habermasiana, ampliam essa visão e entendem que o direito fundamental difuso ao devido processo legislativo abarca a tutela não apenas das normas constitucionais, mas também das normas regimentais do processo legislativo como pilares da legitimidade da gênese democrática do direito legislado [9]. De todo modo, conforme visto acima, as razões de decidir expressadas na tese do RE 1.297.884 e a linha jurisprudencial do STF afastam essa proposta, somente entendendo passível de tutela judicial as "normas constitucionais pertinentes ao processo legislativo".

Já em seu terceiro sentido, o devido processo legislativo é entendido como um princípio constitucional mais abrangente, que abarca outros princípios e regras relativas ao processo legislativo e estabelece exigências para que a tomada de decisão política ocorra com um mínimo de reflexão e em ambiente livre de influências externas indevidas. Embora ainda se trate de entendimento que conta com um número menor de julgados, ele foi adotado por ministros da corrente vencedora na ADI 4.425 [10], ADI 5.127 [11] e, de modo mais explícito, pelo ministro Roberto Barroso na ADI-MC 4.885 (relator ministro Marco Aurélio, julgado em 27/6/2018), no sentido de que "haverá inconstitucionalidade formal por violação ao devido processo legislativo também quando for afetado o núcleo essencial do princípio da moralidade. Assim, a inconstitucionalidade por violação ao devido processo legislativo também pode decorrer da prática de atos ilícitos que ocasionem vício na manifestação de vontade dos representantes do povo".

A utilização do devido processo legislativo nesse terceiro sentido pelo tribunal possibilita sua compreensão como um princípio central para o exercício do poder político mediante a atividade legislativa em uma democracia representativa e deliberativa, como a brasileira. Não se trata de norma constitucional que apenas gera direitos individuais dos parlamentares ou direito difuso para a correta observância das regras do processo legislativo, mas estabelece exigências diretamente fundadas nas condições de legitimidade de exercício do poder político.

Essa compreensão do devido processo legislativo dialoga diretamente com o déficit da dogmática jurídica no Brasil e no Direito Comparado em relação ao processo legislativo, conforme o diagnóstico ainda pertinente de Tércio Sampaio Ferraz Júnior, que carece de bases mais sólidas para compreensão das normas que regem essa prática social [12].

Como um ponto de partida para diminuir esse déficit teórico sobre o processo legislativo, Jeremy Waldron destaca a necessidade de se compreenderem suas regras à luz de princípios mais abstratos que permitam revelar seu valor e relevância para a prática democrática. Retomando a classificação das regras primárias e secundárias da Hart, afirma Waldron: "O processo legislativo — como qualquer processo político — deve ser entendido não apenas em referência às regras secundárias que o constituem e governam, mas também em referência à relação entre essas regras e valores e princípios mais profundos que explicam por que os aspectos regulamentados do processo são importantes para nós [13]". O devido processo legislativo, entendido como um dos princípios centrais para exercício do poder político, justamente tem o potencial de servir como uma dessas normas mais profundas pelas quais se pode compreender normativamente a prática de produção legislativa do direito.

Embora não se tenha espaço para aprofundamento neste artigo, a Constituição Federal, a partir de suas diversas normas que condicionam o exercício do poder político, exige mediante o princípio do devido processo legislativo que, idealmente, o processo de produção legislativa do direito ocorra em ambiente igualitário, com possibilidade de participação social, mediante processo público de deliberação e que seja institucionalizado de modo a favorecer a tomada de decisão política em tempo oportuno para os problemas presentes.

Essa percepção permite lançar novas luzes à questão dos requisitos de constitucionalidade formal dos atos legislativos e do papel dos regimentos internos das casas legislativas nesse exame. Nesse sentido, há julgados de Tribunais Constitucionais — a serem explorados em outro momento — que têm entendido que a mera violação a norma regimental não gera, por si só, uma inconstitucionalidade. Entretanto, em casos de distorções graves no processo de tomada de decisão, poderá haver uma inconstitucionalidade formal, em razão da violação direta aos princípios relacionados ao devido processo legislativo [14].

Diante do exposto, a ressalva feita "às normas constitucionais pertinentes ao processo legislativo" na tese fixada no RE 1.297.884 permite afirmar que a questão sobre a tutela judicial dos regimentos parlamentares não está encerrada no tribunal. Identificando-se os três sentidos do princípio do devido processo legislativo presentes na jurisprudência da corte, a interpretação de normas regimentais — embora deva ser realizada, via de regra, de modo exclusivo pelas casas legislativas — pode ser relevante para fins de controle judicial de constitucionalidade especialmente nos casos em que houver sérias distorções no processo de tomada de decisão legislativa graves o suficiente para violar suas exigências. Não se trata, portanto, de defender o controle judicial de constitucionalidade sobre cada possível desvio regimental, mas da constatação de que, em uma democracia representativa e deliberativa, a Constituição estabelece exigências normativas para a produção das leis que, caso gravemente desrespeitadas, podem levar à inconstitucionalidade dos atos assim produzidos. Quais são essas exigências e os limites do exercício desse controle serão abordados em futura oportunidade.


[1] STF, Pleno, RE 1.297.884, relator ministro Dias Toffoli, julgado em 14/6/2021, p. 20.

[3] STF, Pleno, ADI 1.254, relator ministro Sepúlveda Pertence, julgado em 9/12/2000.

[4] STF, Pleno, ADPF 378 MC, redator para acórdão ministro Roberto Barroso, julgado em 17/12/2015.

[5] STF, Pleno A.DI-MC 4.885, relator ministro Marco Aurélio, julgado em 27/6/2018.

[6] Cf. STF, Pleno, MS 22.503, relator para Ac. ministro Maurício Corrêa, julgado em 8/5/1996, voto do ministro Celso de Mello, p. 80.

[7] STF, Pleno, MS 20.257, redator para acórdão ministro Moreira Alves, julgado em 8/10/1980.

[8] Como exemplo, STF, Pleno, ADI 5.127, Redator para o acórdão ministro Edson Fachin, julgado em 15/10/2015, Voto da ministra Rosa Weber, p. 32.

[9] Cf. Leonardo Augusto de Andrade Barbosa, Processo Legislativo e Democracia, Belo Horizonte, Del Rey, 2010, p. 191 e Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira, "Quais os pressupostos de legitimidade da jurisdição constitucional no Estado democrático de direito?, in Alexandre Gustavo Melo Franco de Moraes Bahia (et. al. Org.) Controle jurisdicional do devido processo legislativo, Belo Horizonte, Conhecimento, 2018, pp. 1-30, p. 7.

[10] STF, Pleno, ADI 4.425, redator para acórdão ministro Luiz Fux, julgado em14/3/2013.

[11] STF, Pleno, ADI 4.425, redator para acórdão ministro Luiz Fux, julgado em 14/3/2013

[12] Cf. Tércio Sampaio Ferraz Júnior, "O que é pesquisa em direito?", in Marcelo Nobre (org.), "O que é pesquisa em direito?, São Paulo, Quartier Latin, 2005, p. 106.

[13] Cf. Jeremy Waldron, Legislating with Integrity, Fordham Law Review 72 (2003), pp. 373-394, p. 376.

[14] Para citar um exemplo, há o julgado pioneiro da Corte Constitucional da Espanha na STC 99/1987, Fundamentos Jurídicos 1: "Embora o artigo 28.1 da nossa Lei Orgânica não mencione os Regimentos Parlamentares entre aquelas normas cuja violação pode levar à inconstitucionalidade da lei, não há dúvida de que, tanto pela invulnerabilidade de tais normas processuais contra a ação do legislador e, sobretudo, pelo carácter instrumental que estas normas têm no que diz respeito a um dos valores superiores do nosso ordenamento jurídico, o do pluralismo político (artigo 1.1 da Constituição), a inobservância dos preceitos que regulam o processo legislativo pode viciar a lei da inconstitucionalidade quando tal inobservância altera de forma substancial o processo de constituição da vontade no seio das Câmaras".

Autores

  • é advogado, professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), doutorando em Direito do Estado pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), visiting scholar na Universidade de Columbia (EUA) e consultor legislativo do Senado Federal.

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