Opinião

Falta de intimação de advogado gera nulidade da audiência de custódia

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8 de outubro de 2022, 9h03

A audiência de custódia, em que pese ter previsão desde 1992, quando aderirmos ao Pacto San José da Costa Rica, só tem sido efetivamente aplicada a partir da sua implementação pelo pacote anticrime. Mesmo assim, alguns percalços ainda têm ocorrido.

Um deles diz respeito à efetividade do exercício da defesa técnica no ato: mesmo o detido tendo constituído advogado em seu interrogatório policial, este advogado não é intimado para a audiência e em seu lugar é nomeado defensor público.

Usa-se a justificativa de que não foi juntada procuração nos autos e, portanto, não há como dizer que o advogado foi efetivamente constituído. Essa argumentação não merece prosperar e é uma violação evidente ao direito de defesa e à finalidade da audiência de custódia.

Trata-se de problema aparentemente pequeno, mas, na prática, traz enormes prejuízos à defesa eficaz. Assim, é necessário esclarecer por que essa dinâmica não pode, jamais, ser aceita pelo Direito brasileiro.

O artigo 266 do Código de Processo Penal informa que "a constituição de defensor independerá de instrumento de mandato, se o acusado o indicar por ocasião do interrogatório". Essa disposição também vale para o interrogatório policial, em leitura sistemática com o artigo 6º, V, do mesmo instituto legal, haja vista não haver óbice de aplicabilidade.

Parte da doutrina entende ter ocorrido a revogação tácita do artigo 266 com a reforma do Código de Processo Penal de 2008, que jogou o interrogatório para o final da instrução processual, sendo que, por óbvio, em tal momento já deveria haver defensor constituído por procuração [1].

Entretanto, no que toca o interrogatório policial em caso de flagrante delito, a disposição mantém-se hígida, já que a dinâmica do flagrante é sabidamente célere. Nesse momento, exigir procuração para o acompanhamento do apreendido seria um óbice inaceitável ao efetivo exercício da defesa. Nesse sentido, pontua Rebouças:

"Entende-se por defesor constituído aquele escolhido pelo acusado para representá-lo patrocinando sua defesa técnica, no procedimento de investigação e/ou no processo penal. (…) A constituição do advogado particular pode ocorrer: 1) por instrumento de mandato, com ou sem poderes especiais (artigo 266, CPP / artigos 104 e 105, CPC/2015); 2) por indicação na oportunidade do interrogatório, hipótese em que a lei processual penal dispensa o instrumento de procuração (artigo 266, CPP). (…) Havendo a indicação no ato do interrogatório, dispensa-se o instrumento de mandato para a prática de qualquer ato processual, inclusive o recursal [2]."

Veja, não se defende aqui a indispensabilidade da presença do defensor no interrogatório policial, tema já pacificado em nossas cortes superiores. Mas, indicado defensor, não se pode exigir dele instrumento formal de procuração para que ele seja considerado "constituído", permanecendo válido o artigo 266 para tal situação.

Ora, se para o interrogatório policial em sede de flagrante delito não se exige procuração, não faz o menor sentido que essa exigência exista para o acompanhamento de audiência de custódia.

Isso porque a audiência de custódia é um desdobramento natural do flagrante delito, sendo aquela inclusive instituída para avaliar a legalidade deste. Se no interrogatório o defensor é um, não faz sentido que na audiência seja outro (a menos que o detido manifeste interesse na troca de procuradores).

Aqui podemos aplicar, inclusive, a mesma lógica da necessidade de o juiz que presidiu a instrução ser o que proferirá sentença (artigo 399, §2º, Código de Processo Penal). Essa disposição existe porque aquele que acompanhou toda a produção probatória tem naturalmente mais propriedade para tratar do resultado da ação.

Da mesma maneira, o advogado que acompanhou todo o procedimento do flagrante, inclusive o interrogatório, tem, por óbvio, mais propriedade para discutir sua legalidade que um procurador novo que ainda não teve contato nenhum com a causa e, muitas vezes, nem com o acusado.

A regra do artigo 266, em que pese ter de fato perdido parte de sua importância com a reforma de 2008, ainda tem grande relevância para esses procedimentos mais céleres, que exigem uma atuação quase emergencial do procurador, sendo que a formalidade processual da procuração, nesse momento, é barreira inadmissível à proteção dos direitos fundamentais do detido.

Para a interpretação adequada do conjunto normativo em estudo, a própria finalidade da audiência de custódia deve ser levada em conta para se chegar à conclusão aqui defendida. Trata-se de instrumento com natureza sui generis, dado em momento pré-processual, regido pelo contraditório e voltado a averiguar a legalidade da prisão [3]. Todo o intuito e desenho do instrumento são voltados para a proteção do capturado contra o eventual abuso estatal [4].  

No que toca a celeridade do instituto, da mesma forma que o interrogatório policial se dá logo na condução do flagrante, a audiência de custódia transcorre em um prazo de apenas 24 horas, lapso absolutamente exíguo para se juntar uma procuração.

Pelo objetivo da norma, qual seja, resguardar o capturado contra excessos das autoridades públicas, já se infere que formalidades como uma procuração formal não podem se tornar barreiras ao exercício da defesa técnica nesse momento tão importante da persecução penal. Assim, é absolutamente aplicável, pela interpretação teleológica, a validade da constituição do defensor no momento do interrogatório policial para fins da audiência.

Para um exercício mais eficaz, mais concreto do contraditório, já se argumentou que o defensor que acompanhou o flagrante tem, em princípio, mais propriedade que um procurador novo para acompanhar a audiência. Nesse sentido, observa-se uma insistência do próprio CNJ na presença do defensor constituído pelo detido, como visto nas regras postas em sua resolução 213/2015:

"Artigo 4º A audiência de custódia será realizada na presença do Ministério Público e da Defensoria Pública, caso a pessoa detida não possua defensor constituído no momento da lavratura do flagrante.
Artigo 5º Se a pessoa presa em flagrante delito constituir advogado até o término da lavratura do auto de prisão em flagrante, o delegado de polícia deverá notificá-lo, pelos meios mais comuns, tais como correio eletrônico, telefone ou mensagem de texto, para que compareça à audiência de custódia, consignando nos autos.
Parágrafo único. Não havendo defensor constituído, a pessoa presa será atendida pela Defensoria Pública
Artigo 6º Antes da apresentação da pessoa presa ao juiz, será assegurado seu atendimento prévio e reservado por advogado por ela constituído ou defensor público, sem a presença de agentes policiais, sendo esclarecidos por funcionário credenciado os motivos, fundamentos e ritos que versam a audiência de custódia."

Já foi debatido que "defensor constituído" inclui aquele nomeado por meio do interrogatório. Ainda, fica claro que a obrigação primeira da intimação é do delegado de polícia [5].

Porém, há evidente esforço da resolução para que haja a preferência do defensor constituído. Dessa maneira, em não havendo a comunicação pela autoridade policial, é obrigação do magistrado zelar pela efetividade da norma, intimando ele próprio o defensor constituído pelos meios céleres trazidos na resolução, e não simplesmente descartar o intuito claro da norma e notificar a defensoria, atropelando a eleição do acusado. A responsabilidade final, nota-se, é então do magistrado, já que é ele o responsável por conduzir o ato dentro da legalidade.

A resolução do CNJ, em princípio, nem seria necessária para se chegar às conclusões aqui em estudo. Bastaria uma análise finalística do instituto e uma interpretação com base nos direitos fundamentais, até porque, tratando-se a audiência de custódia tema afeto à matéria de Direitos Humanos, a interpretação deve se dar sempre pro homine e pautada na primazia da norma mais favorável [6].

Analisado sistematicamente as disposições vigentes, a aplicação prática do raciocínio montado é a seguinte: se o magistrado não intima o procurador constituído no interrogatório policial simplesmente pela falta de procuração, o que ele está fazendo é violar o vetor protetiva da norma instituída tanto em lei nacional quanto em caráter convencional, o que é absolutamente intolerável.

O resultado só poderá ser o reconhecimento da nulidade absoluta do ato, vez que ferida a essência legal, constitucional e convencional do instituto; violado interesse público, na medida em que o contraditório adequado e não mitigado artificialmente é imprescindível à adequada fiscalização da prisão; e gerado prejuízo evidente à parte, que não foi acompanhada por seu procurador escolhido sem motivo justo.

Portanto, em conclusão, constituído um advogado no momento do interrogatório policial, deve este defensor (e não outro) ser intimado da audiência de custódia, na forma da resolução 213/2015 do CNJ, para que participe e exerça a defesa técnica de seu cliente, sob pena de nulidade absoluta do ato.


[1] LIMA, Renato Brasileiro de. Código de Processo Penal Comentado. 5ª ed. Salvador: JusPodivm, 2020, p. 801.

[2] REBOUÇAS, Sérgio. Curso de Direito Processual Penal, volume 2.2ª ed. Belo Horizonte: D'Plácido, 2022, p. 62.

[3] Oliveira, Gisele Souza et al. Audiência de custódia: dignidade humana, controle de convencionalidade, prisão cautelar e outras alternativas. 4ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019, p. 99.

[4] ANDRADE, Mauro Fonseca; Alflen, Pablo Rodrigo. Audiência de custódia no processo penal brasileiro. 3ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2018, p. 59.

[5] CAMARGO, Rodrigo Tellini de Aguirre. Audiência de custódia e medidas cautelares pessoais. 1ª ed. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2019, p. 74.

[6] PAIVA, Caio. Audiência de custódia e Processo Penal Brasileiro. 3ª ed. Belo Horizonte: CEI, 2018, p. 58.

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