Garantias do Consumo

Pauta necessária a políticas públicas de promoção ao consumidor

Autores

  • Fernando Rodrigues Martins

    é professor da graduação e da pós-graduação da Universidade Federal de Uberlândia (UFU) mestre e doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) membro do Ministério Público do Estado de Minas Gerais e presidente do Brasilcon.

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  • Clarissa Costa de Lima

    é juíza de Direito do TJ-RS doutora pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul especialista em Direito Europeu dos Contratos pela Universidade de Savoie ex-presidente do Brasilcon (2012-2014) diretora adjunta da Revista de Direito do Consumidor e vice-presidente do Brasilcon (2020-2022).

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  • Guilherme Magalhães Martins

    é promotor de Justiça do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro professor de Direito Civil da UFRJ e diretor do Instituto Brasilcon.

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  • Sophia Martini Vial

    é doutora pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul assessora parlamentar no Distrito Federal e diretora secretária-geral do Brasilcon.

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30 de novembro de 2022, 8h00

Retornamos neste espaço para, ao tempo de rapidamente prestarmos contas de nossa gestão no biênio 2020-2022 noticiando nossa recondução à diretoria do Brasilcon (2023-2024), apresentarmos necessária pauta à equipe de transição do novo governo que estará vinculado aos deveres estatais de promoção ao consumidor nos próximos quatro anos. Aqui estivemos em 16 de dezembro de 2020 quando, exortando as diretrizes da solidariedade, cooperação e participação, publicamos nosso projeto político-institucional [1]. Valem algumas observações iniciais.

O Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (Brasilcon) completou, em 2022, 30 anos de fundação e formação. Como já amplamente conhecida, a associação atua fortemente como entidade voltada aos multifários interesses dos consumidores nessa constelação infinita que é a "galáxia do mercado de consumo", sem limites e fronteiras.

Alguns eixos associativos são necessários sempre serem repisados. Buscamos a pesquisa e a produção de conhecimento multidisciplinar, isto porque o CDC é norma transversal e, portanto, em ampla dialogicidade com inúmeros outros ramos. O instituto não detém finalidade lucrativa, (re)estruturando-se à base de anuidades e contribuições. Não adotamos qualquer linha partidária, muito embora estejamos conscientes do "direito posto" como produção política e, via de consequência, da necessidade em acompanhar e propor temas necessários às políticas públicas de proteção ao consumidor. Por fim, voltados à academia e à operabilidade das conquistas valorativas, debruçamo-nos sobre a ciência e a efetividade dos direitos dos consumidores.

Enfim, com vistas à representatividade nacional e internacional dos direitos dos consumidores, o Brasilcon mantém no "quadro-diretor" e no "espaço-associado" juristas, professores, estudantes, profissionais e operadores vocacionados ao âmbito da projeção dos interesses fundamentais da pessoa humana inserida no ambiente de mercado.

Breve balanço da gestão de 2020-2022 revela o alcance das metas propostas. Conseguimos, com a ajuda de tantos envolvidos, a movimentação do PL 3.515/15 sobre crédito responsável e tratamento do superendividamento, até então paralisado na Câmara dos Deputados. A aprovação naquela casa e remessa da proposição legislativa novamente ao Senado garantiram posterior sanção presidencial (mesmo com vetos indevidos) [2], o que sustentou a primeira e satisfatória atualização do microssistema. Temos hoje a Lei 14.181/21, verdadeira conquista do povo brasileiro frente a inúmeros descasos já vivenciados nos últimos anos.

Também reposicionamos o Brasilcon dentre as entidades civis mais combativas e ativas na defesa do consumidor. Muito embora não estivéssemos oficialmente com direito a voz e voto nos principais conselhos federais e deliberativos, paralelamente promovíamos e estimulávamos discussões sobre assuntos respeitantes ao consumidor.

Assim posições assertivas quanto à saúde suplementar; pretensão resistida e acesso à justiça; home equity, expansão do crédito ao consumidor com riscos à moradia e habitação; plataformização digital do serviço de atendimento ao consumidor; modificação do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor; empréstimo consignado, cartão consignado em detrimento a programas de transferência de renda [3]; foram corajosamente desenvolvidas e expostas, sem que de nossa parte houvesse o recuo de único passo.

Vale o exemplo da inconstitucionalidade e ilegalidade do Decreto 11.150/22 que "regulamentou" insuficientemente o mínimo existencial de que trata a Lei 14.181/21. Houve exitosa parceria do Brasilcon junto à Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (Conamp), inclusive com minuta de peça em ADPF, que após aprovada no conselho deliberativo daquela agremiação, foi proposta junto ao STF (ver ADPF 1050) [4]. Nos autos digitais, aquele expediente já conta parecer da PGR pela inconstitucionalidade.

A participação, no biênio 2020-2022, como "amicus curiae" junto aos tribunais superiores reafirma o compromisso institucional com as questões dos precedentes na promoção dos vulneráveis.

No Supremo Tribunal Federal o enfrentamento ao Tema 1.075 quanto à coisa julgada coletiva espancou de inconstitucionalidade o disposto no artigo 16 da Lacp, posição afirmada pelo instituto. Ainda em trâmite o tema 1.141 representativo da discussão quanto à "responsabilidade civil por disponibilização na internet de informações processuais publicadas nos órgãos oficiais do Poder Judiciário" com manifestação já protocolada. Já as ADPFs 1.005 e 1.006 (mínimo existencial), nas quais o Brasilcon se inscreveu, aguarda-se tão somente a deliberação do relator.

Perante o STJ a decisão quanto ao Tema 1.085 (ampliação do limite de 30% de desconto para empréstimos pessoais) não foi nos favorável, mas já é objeto recursal. Em trâmite na mesma corte os temas 1.156 e 1.116 que, respectivamente, versam sobre a valorização do tempo do consumidor e a contratação de empréstimo consignado por pessoa analfabeta. Ambos contarão com nossa efetiva participação.

A retomada das Jornadas do Brasilcon também marcou o biênio. No início, seguindo os protocolos de segurança para saúde coletiva, foram realizadas remotamente. Entretanto, posteriormente avançamos para modelo híbrido. Todas com significativo apoio de reconhecidas instituições de ensino superior no propósito de estimular a pesquisa e cultura do direito do consumidor, principalmente às novas gerações.

Com o advento da Lei 14.181/21, o Brasilcon, liderando a dogmática respeitante ao superendividamento, proporcionou à comunidade jurídica a realização de dois grandes cursos de capacitação. O primeiro destinado aos Procons e o segundo aos mediadores.

Tornando-se clara referência a respeito do tema, a projeção é a de que até o julgamento das mencionadas ADPFs sobre o mínimo existencial esses cursos sejam expandidos pelo Brasil, compartilhando conteúdos em duas frentes diferentes: 1) diversas inserções sobre o tema o ‘crédito responsável’ e sua grande possibilidade de prevenção ao superendividamento (com desdobramentos em medidas inibitórias, responsabilidade civil, revisão contratual obrigatória, práticas abusivas, conexidade contratual, sanções administrativas, objeção de pré-executividade nos processos de execução etc.); 2) formulando múltiplas propostas coordenadas ao tratamento ao superendividamento, inclusive com planos de repactuação plausíveis à realidade dos superendividados, sem prejuízo em adotar eventual possibilidade de aplicação de "fresh start" [5], bem como incentivando os Procons a tomarem o protagonismo na desjudicialização das discussões, tornando factível os acordos e sanções extrajudiciais, a fim de que ao Poder Judiciário concorra apenas a ação por superendividamento de que o artigo 104-B.

A realização do 15º Congresso Brasileiro de Direito do Consumidor na modalidade remota (em 2021), assim como agora ao final de 2022 o sucesso do 21º Congresso Brasileiro de Direito do Consumidor promovido em São Paulo, totalmente presencial, evidentemente, a despeito das hercúleas tarefas, tiveram o mérito de unir ainda mais o instituto e associados, despertando a noção de que o direito do consumidor ainda tem muito a servir os vulneráveis brasileiros, porque verdadeiro instrumento de mobilização, resistência e emancipação.

Por fim, concretizamos a abertura de espaços discursivos, possibilitando aos associados e acadêmicos que, semanalmente, discorressem sobre os flagelos e falhas de mercado e, daí, as externalidades aos consumidores. Justamente aqui na ConJur, em nossa gestão, foram quase uma centena de artigos, os quais, além de fomentar necessária crítica ao estado da arte do direito do consumidor (e respectivas políticas públicas), ainda encaminhavam propostas de melhoria do sistema. Diga-se de passagem, daqueles textos houve importante coletânea publicada já neste final de ano [6].

De outro lado, não podemos esquecer que os últimos quatro anos (2019-2022) foram totalmente desfavoráveis e desconstrutivos às políticas públicas consumeristas. Há nítida percepção que no âmbito da vinculação aos direitos fundamentais dos consumidores a gestão governamental federal preocupou-se em demasia com as empresas, desfalcando as diretrizes valorativamente positivadas na legalidade constitucional.

Podemos, como observadores externos, registrar as seguintes circunstâncias encetadas pela gestão política que agora se encerra: banalização do direito do consumidor como direito fundamental; relativização dos deveres fundamentais do Estado de proteção ao consumidor; enfraquecimento dos Procons, especialmente durante a situação pandêmica quando necessário poder de polícia e fiscalização mais assertivos; autorização de crédito e cartão de crédito consignados sobre programas de transferência de renda.

Igualmente as edições de atos normativos secundários são clara demonstração de retrocessos. O Decreto nº 10.417/20 que recriou o Conselho Nacional de Defesa do Consumidor, entretanto sem paridade na representação. O Decreto 10.887/21 que modifica o Decreto 2.181/91, reafirmando a avocação de expedientes administrativos e indo bem além da noção de federação. O Decreto 11.034/22 que reformulou para pior o serviço de atendimento ao consumidor, o que já traz efeitos sentidos pela população, especialmente os vulneráveis digitais, dado o modo de atendimento. E, em derradeiro, o Decreto 11.150/22 que fixou, preconceituosamente, o mínimo existencial em valor abaixo da cesta básica. Nada pior.

À gestão que tomará posse fica o alerta e a advertência da constante fiscalização institucional que o Brasilcon encetará quanto aos rumos do direito do consumidor no país, sendo certo que tornaremos claros todos os retrocessos impostos e descumprimentos das falas em campanha eleitoral. Não fosse essa preocupação inicial, apresentamos nossa pauta através das seguintes reivindicações:

1) Revogação imediata do Decreto 11.150/22, que no STF já conta com parecer de inconstitucionalidade pela PGR, ainda mais considerando que no Brasil são 40 milhões de superendividados (abaixo da linha dos direitos fundamentais);

2) Edição de novo decreto quanto ao mínimo existencial nos termos da Lei 14.181/21 adotando como parâmetro, tanto para prevenção como tratamento ao superendividamento, a preservação de 70% da renda mensal do consumidor para garantia e acesso aos direitos fundamentais sociais, permanecendo os restantes 30% dirigidos ao pagamento e comprometimento das dívidas de consumo;

3) Revogação imediata do Decreto 10.417/20, oportunizando rediscussão sobre o CNDC, com paridade representativa;

4) Orientação à futura gestão da Senacon para rediscutir os demais decretos acima mencionados ouvindo toda sociedade e as entidades civis para melhor atendimento ao consumidor e a defesa administrativa de seus direitos;

5) Indicação de gestor (a) à Senacon, ouvidas as entidades civis de proteção ao consumidor, desde que o (a) agente a ser indicado: reúna experiência na tutela do consumidor e conhecimento do SNDC; esteja caracterizado (a) pela aderência de conteúdo; não tenha patrocinado fornecedores;

6) Aprovação e sanção sem vetos do PL 3.514/15 que dispõe sobre o comércio eletrônico e plataformas digitais, estagnado há sete anos na Câmara dos Deputados;

7) Criação urgente no âmbito da Senacon de departamento para acompanhamento das fraudes bancárias e tutela de hipervulneráveis, especialmente em que são vítimas idosos, aposentados e pensionistas, já que houve compartilhamento ilícito de dados pessoais;

8) Alteração das normas que regem os fundos de direitos difusos e coletivos para possibilitar a capacitação de servidores dos Procons no acompanhamento de congressos, seminários, encontros profissionais etc.;

9) Referendo pelo Congresso do Acordo Mercosul sobre contratos internacionais de consumo e a aplicação da lei mais favorável ao consumidor, assinado em Brasília, em 2017;

10) Veto a qualquer PL ou iniciativa administrativa que impeça o imediato acesso à justiça e ao Poder Judiciário pelo consumidor, especialmente aqueles que tratam da pretensão resistida;

11) Melhoria imediata do sistema "consumidor.gov" que não possui condições, como plataforma digital, de realizar o necessário e suficiente dever fundamental de proteção ao qual o Estado está vinculado.


[2] MARTINS, Fernando Rodrigues; MARTINS, Guilherme Magalhães; VIAL, Sophia Martini. Os vetos parciais sobre a Lei 14.181/21 e a promoção suficiente dos superendividados: uma ode às quatro culturas desperdiçadas do direito do consumidor. RDC. v. 138. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2021, p. 17-47.

[3] Veja: As novas regras do crédito consignado e o direito fundamental à previdência social: riscos, vulnerabilidade e superendividamento. In: www.migalhas.com.br/depeso/373958/as-novas-regras-do-credito-consignado-e-o-direito-a-previdencia-social..

[4] Decreto que fixou R$ 303 como mínimo existencial é questionado no STF. www.migalhas.com.br/quentes/372703/decreto-que-fixou-r-303-como-minimo-existencial-e-questionado-no-stf

[5] Veja que no Brasil o "fresh start" está previsto no inciso III, do artigo 158 da Lei de Recuperação Judicial de Empresas, assim expresso: Artigo 158. Extingue a obrigação do falido: V – o decurso do prazo de três anos, contado da decretação da falência, ressalvada a utilização dos bens arrecadados anteriormente, que serão destinados à liquidação para a satisfação dos credores habilitados ou com pedido de reserva realizado

[6] Ver MARQUES, Claudia Lima; MARTINS, Fernando Rodrigues; MARTINS, Guilherme Magalhães; CAVALLAZZI, Rosângela Lunardelli. Direito do consumidor aplicado: garantias do consumo. Jonas Sales (org.). São Paulo: Foco, 2022. Aqui expressamente (e novamente) agradecemos nossa diretora Professora Doutora Roberta Densa pelo imenso apoio e dedicação à publicação.

Autores

  • é presidente do Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (Brasilcon), doutor e mestre em Direito das Relações Sociais pela PUC-SP, professor nos cursos de graduação e pós-graduação da Faculdade de Direito da UFU e promotor de Justiça em Minas Gerais.

  • é doutora pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, juíza de Direito em Porto Alegre, ex-presidente e atual primeira vice-presidente do Brasilcon.

  • é promotor de Justiça do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, professor de Direito Civil da UFRJ e diretor do Instituto Brasilcon.

  • é assessora legislativa do Senado Federal, doutora em Direito pela UFRGS, ex-presidente da Associação Brasileira de Procons e ex-diretora-executiva do Procon Municipal de Porto Alegre.

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