Garantias do Consumo

Gestão 2020/2022 do Brasilcon e a conjunção de dois direitos fundamentais

Autores

  • Fernando Rodrigues Martins

    é professor da graduação e da pós-graduação da Universidade Federal de Uberlândia (UFU) mestre e doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) membro do Ministério Público do Estado de Minas Gerais e presidente do Brasilcon.

  • Clarissa Costa de Lima

    é juíza de Direito do TJ-RS doutora pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul especialista em Direito Europeu dos Contratos pela Universidade de Savoie ex-presidente do Brasilcon (2012-2014) diretora adjunta da Revista de Direito do Consumidor e vice-presidente do Brasilcon (2020-2022).

  • Guilherme Magalhães Martins

    é professor associado de Direito Civil da Faculdade Nacional de Direito/UFRJ professor permanente do programa de doutorado em Direito Instituições e Negócios da UFF pós-doutor em Direito da USP doutor e mestre em Direito Civil pela Uerj procurador de Justiça no MP-RJ segundo vice-presidente do Instituto Brasilcon e diretor do Iberc.

  • Sophia Martini Vial

    é doutora pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul assessora parlamentar no Distrito Federal e diretora secretária-geral do Brasilcon.

16 de dezembro de 2020, 8h01

No dia próximo passado transcorreu sucessão entre diretorias no Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (Brasilcon). Despede-se a gestão 2018/2020, liderada pelos professores Diógenes de Carvalho, Leonardo Roscoe Bessa, Bruno Miragem e Vitor Hugo do Amaral, com frutífero desempenho à causa dos consumidores e com atenção voltada ao trintenário do CDC. Mesmo sendo virtual, a assembleia consolidou o perfil democrático que guia a entidade.

Trata-se de momento raro de união entre todos nós, associados, iluminados pelos valorosos esforços de juristas que não apenas fundaram esta reconhecida agremiação acadêmica, assim como foram coautores do anteprojeto do Código de Defesa Consumidor, microssistema jurídico voltado à harmonia e transparência nas relações jurídicas de consumo e pela compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico [1].

Iniciando novo ciclo administrativo, a composição da diretoria executiva atual, encabeçada pelos autores deste texto, desde já parabeniza os colegas e parceiros componentes da chapa eleita, assim como agradece aos demais associados e professores de direito do consumidor.

Ao ensejo dessa oportunidade e considerando a natureza jurídica do Brasilcon, que é associação civil sem fins lucrativos, valem destacar três princípios [2] jurídicos básicos que informam a respectiva estrutura e funcionalidade. Essa abordagem é relevante, já que descortina o "vir a ser" (o devir heideggeriano) dessa útil aglutinação de professores e operadores do Direito voltados à finalidade jurídico-humanitária de promoção do direito dos vulneráveis.

Solidariedade [3] que, enquanto princípio, encontra fundamento na dignidade humana e expressa a materialização de vínculos entre a entidade e os associados. São os chamados vínculos associativos convergentes ao escopo comum que é "a promoção do desenvolvimento da política e do direito do consumidor, levando em conta os aspectos multidisciplinares de proteção do consumidor" (conforme artigo 2º do estatuto do Brasilcon). Via de consequência, a solidariedade projeta efeitos externos à associação, alcançando Estado, sociedade, grupos vulneráveis e outras associações, bem como assumindo função protagonista na transformação de outros sistemas (político, jurídico, econômico, social etc.). Como já dito em arguta análise: "O indivíduo além da individualidade" [4].

Cooperação [5], no mesmo modal normativo, que permite a integração de esforços entre o Estado e a sociedade, desencadeando atividades conjuntas, ininterruptas e constantes a favor do bem jurídico fundamental tutelado. Trata-se de concurso das "finalidades" perseguidas pelos órgãos públicos das esferas federativas com a coadjuvação dos "objetivos" estatutários das organizações não governamentais. Não à toa que o Decreto 2.181/97 (artigo 2º) e o próprio CDC (artigo 105), para a efetividade [6] das decisões jurídicas do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor (SNDC), designam entre os atores institucionais desse sistema as "entidades civis de defesa do consumidor", o que é perfeitamente cabível ao Brasilcon.

Participação [7], na categoria de princípio, decorre claramente da qualificação democrática de Estado de Direito (CF, artigo 1º, caput), bem como dos fundamentos republicanos referentes à cidadania e pluralismo político (CF, artigo 1º, incisos II e V, respectivamente). A pertinência temática desenvolve-se no processo dialógico de elaboração da decisão jurídica ou da produção normativa para, em corolário, alcançar a legitimidade esperada. Esquadrinhe-se: a condução dos temas públicos afeta real e diretamente "aqueles" justamente que detêm o poder [8] e que, no exercício da cidadania, não apenas escolhem os representantes, mas igualmente o modo de governança.[9] Não fosse isso, é essa a participação que enseja a possibilidade de "controle popular" [10] sobre as instâncias públicas [11].

Fixadas tais premissas propedêuticas, depara-se agora com duas situações jurídicas reveladoras de intensos valores fundamentais pertencentes a dois "sujeitos constitucionais": o Brasilcon e o consumidor. Valem as notas.

O primeiro corporifica direito fundamental de abrangência coletiva. Associações civis sem fins lucrativos, muito embora tratadas pela legislação civil (CC, artigo 53), têm pertencialidade nas Constituições justamente para garantir eventual oposição (ou apoio) às atividades do Estado, dando concretude aos direitos de defesa (resistência e desobediência) [12]. O exercício desse direito fundamental coletivo (CF, artigo 5º, incisos XVII a XXI), posto em prática pelo conjunto de pessoas, tem assento em três direitos básicos: direito de criação pessoa jurídica associativa, direito de associação e direito de desassociação (não continuar associado) [13].

O segundo refere-se a agente constitucionalmente identificado como vulnerável [14]. A Constituição Federal brasileira, diferentemente de outros países, não inseriu a promoção do consumidor apenas como princípio da ordem econômica. Ao contrário, valorizou e diferenciou, tratando-o diretamente como sujeito de direitos fundamentais e atribuindo ao Estado o dever fundamental de proteção. Esse status constitucional, transforma os direitos dos consumidores: "No mínimo, estabelecendo-os como preferenciais em relação a outros direitos de matriz infraconstitucional. No máximo, determinando providências concretas para sua realização" [15].

É justamente na conjugação destes dois direitos fundamentais a perspectiva de que a causa subjacente (proteção ao consumidor) é motivadora da função social coletiva dessa eficiente e propositiva entidade civil de defesa do bem-comum (Brasilcon).

Entretanto e a bem da verdade, há pouco tempo o denso ativo jurídico proporcionado pelo direito do consumidor vem sofrendo ataques múltiplos: leituras infraconstitucionais ou regulatórias da Constituição Federal (enquanto deveríamos ter interpretação conforme a Constituição); mitigação de direitos conquistados; e até a criação "da vulnerabilidade empresarial" em detrimento à sólida compreensão de que vulnerável é a pessoa humana.

A diretoria empossada tem claro objetivo em reforçar e reconquistar, nos limites associativos e comunitários, o protagonismo do "direito dos vulneráveis", ocupando espaços na pauta dos grandes debates nacionais, na incessante busca da realizabilidade das políticas públicas de defesa do consumidor, assim como perseverar na aprovação dos projetos de lei de atualização do CDC, PL 3514/15 (que versa sobre o comércio eletrônico) e 3515/15 (que dispõe sobre a prevenção e o tratamento ao superendividamento).

 


[1] Nas palavras de Cláudia Lima Marques, no primeiro volume da RDC: "A Lei 8.078/90, conhecida como Código de Defesa do Consumidor ou Codecon, entrou em vigor em 11.3.91, representando uma considerável inovação no ordenamento jurídico brasileiro, uma verdadeira mudança na ação protetora do direito. De uma visão liberal e individualista do Direito Civil, passamos a uma visão social, que valoriza a função do direito como ativo garante do equilíbrio, como protetor da confiança e das legítimas expectativas nas relações de consumo no mercado". (Novas regras sobre a proteção do consumidor nas relações contratuais. v. 1. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1992, p. 27-54).

[2] Utilização que deve ser harmônica observadas a segurança jurídica e integridade do direito, na compreensão que, diferentemente das regras (direitos e deveres definidos), está ante realização parcial da norma (direitos e deveres ‘prima facie’). Ver neste sentido: SILVA, Virgílio Afonso da. Direitos fundamentais: conteúdo essencial, restrições e eficácia. 2ª ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 45.

[3] NERY, Rosa Maria Barreto Borriello de Andrade. Apontamentos sobre o princípio da solidariedade no sistema do direito privado. Doutrinas essenciais de Responsabilidade Civil. v. 1. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 25-32. Vale a menção: “no princípio da solidariedade que devemos buscar inspiração para a vocação social do direito, para a identificação do sentido prático do que seja funcionalização dos direitos e para a compreensão do que pode ser considerado parificação e pacificação social”.

[4] Assim está no REsp 171927/SC, sintetizado e relatado pelo Min. Herman Benjamin e com apoio em Léon Bourgeois no clássico Essai d'une Philosophie de la Solidarité. Paris: Félix Alcan, 1902).

[5] PAZZAGLINI FILHO, Marino. Princípios constitucionais e improbidade administrativa ambiental. Doutrinas essenciais de direito ambiental. v. 1. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 517-528.

[6] No âmbito do processo civil a cooperação (artigo 6º CPC) atua para prestigiar a efetividade e justiça da decisão mérito, propiciando a estruturação processual e a dialeticidade entre as partes. (ver por todos CAMBI, Eduardo; Haas, Adriane; SCHMITZ, Nicole. Princípio da cooperação processual e o novo CPC. v. 984. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017, p. 345-384. E assim evoluem: “A colaboração processual pressupõe quatro deveres aos magistrados que visam a salvaguardar a efetividade do processo: deveres de esclarecimento, prevenção, consulta e auxílio”.

[7] SARLET, Ingo Wolfgang; Fensterseifer, Tiago. Democracia participativa e participação pública como princípios do Estado socioambiental de Direito. In: Doutrinas Essenciais de Direito Constitucional. v. 10. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015 p. 709 – 757.

[8] MÜLLER, Friedrich. Quem é o povo? A questão fundamental da democracia. 2. ed. São Paulo: Max Limonad, 2000. Estamos falando aqui do povo destinatário das prestações estatais (âmbito em que ninguém pode ser excluído). Diferentemente do ‘povo icônico’, que tudo pode significar, especialmente as hegemonias; ‘povo ativo’, os que votam e são votados; e ‘povo como instância de atribuição’, caracterizados pela nacionalidade.

[9] Moreira Neto, Diogo de Figueiredo. Legitimidade e discricionariedade. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001.

[10] Entretanto foi editado o Decreto 10.051/19 cujo escopo é justamente limitar os "deveres fundamentais de proteção" do Estado aos direitos fundamentais dos consumidores. Inconfundível que no bojo do decreto dá-se a alcunha de ‘controle social’ quando os componentes permanentes são apenas agentes governamentais e em apenas numa remota posição se enquadram as entidades da sociedade civil na qualidade de convidadas.

[12] DIMOULIS, Dimitri e MARTINS, Leonardo. Teoria geral dos direitos fundamentais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 61.

[13] SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 31ª edição, revista e atualizada, 2008.

[14] MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais. 8ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 410: “O consumidor foi identificado constitucionalmente (artigo 48 do ADCT) como agente a ser necessariamente protegido de forma especial”.

[15] MIRAGEM, Bruno. Direito do consumidor como direito fundamental: consequências jurídicas de um conceito, in Revista de Direito do Consumidor. v. 43 São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 111 e seg.

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