Opinião

Garantia da lei e da ordem: que história é essa do artigo 142?

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  • Herick Feijó Mendes

    é advogado mestrando em Segurança Pública Cidadania e Direitos Humanos (UERR) especialista em Direito Público e ex-membro da Comissão Nacional de Estudos Constitucionais (CFOAB).

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21 de novembro de 2022, 11h05

Desde o resultado final das eleições que manifestantes se reúnem com o objetivo de externar o seu descontentamento com a derrota do atual presidente da República, Jair Messias Bolsonaro. Da estratégia inicial de fechamento das rodovias, passou-se a alardar a convocação das Forças Armadas como a última trincheira contra os resultados das urnas, invocando a Constituição de 1988 para que os militares se utilizem do artigo 142.

Divulgação
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As manifestações passaram a se concentrar em frente aos quartéis justamente com esta finalidade: que as Forças Armadas garantam a lei e a ordem do país. Intervenção militar já! Uma típica insurreição, que em certa medida pode ser comparada, embrionariamente, com ações graves ocorridas nos Estados Unidos, que ocasionaram a invasão do Capitólio, ou ainda mais desastrosas, como a situação de Mianmar (2020), em que militares do país alegaram fraude eleitoral e decretaram estado de emergência por um ano, fechando, assim, o Senado e o Parlamento.

Tenho refletido bastante sobre o assunto e concluído que a externalização contra o resultado das eleições é algo tão natural quanto à perda de uma partida de futebol, aliás, a eleição não deixa de ser um jogo democrático. E por se assemelhar muito com um "jogo", os ânimos com a derrota, pelo menos de uma parcela mais radical, pode levar a cenas lamentáveis (agressões, xingamentos e variados tipos de insurgência violenta). Por isso que essa parcela citada, que se intitulou atualmente de "resistência civil", buscou, estranhamente, refúgio na "força armada". Eis o lado radical daqueles que não aceitam o resultado das urnas, pelo menos para o cargo de presidente.

É aqui que precisamos relembrar as enfáticas palavras de John Adams — segundo presidente dos EUA, já que "a democracia é um regime que garante a manutenção de suas balizas mesmo na inconstância do povo e da vontade de um presidente". "A inconstância do povo se refere ao revés eleitoral que sofreu nas urnas." (SOUTO, SUPREMA CORTE DOS EUA. 2019, p. 100).

E sob essa perspectiva que a força armada de um país deve se afastar do partidarismo político ou de insurreições golpistas. É preciso que a política fique, como está, fora dos portões dos quartéis, até porque "o militarismo é a inserção de militares de alta patente no jogo dos partidos políticos devido à fragilidade essencial do sistema representativo, o que leva os grupos políticos a utilizarem a força militar para alcançar seus objetivos". (SERRANO, 2021)

Foi com base no dever de informar — pujante na atual conjuntura — que resolvi pesquisar um pouco mais a fundo sobre a origem do artigo 142, especialmente porque passou a ser objeto de culto nas manifestações como sinônimo da vontade dos constituintes, de modo que este dispositivo estaria apto a ser usado para tais momentos. Ou seja, embainhados com a Constituição levantou-se o brado de legitimidade da utilização do artigo 142 para a garantia da lei e da ordem, como se estivesse claramente dito em seu texto que serviria de artilharia contra o resultado eleitoral.

O dispositivo constitucional entrelaça a missão das Forças Armadas, indicando-se que "são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem".

Compreender a operação de garantia da lei e da ordem é uma premissa básica à sua legítima utilização, seja pelos documentos atuais de manualização, seja pelo ideal originário colocado e debatido na Constituinte de 1988.

O Manual de garantia da lei e da ordem do Ministério da Defesa "MANUAL GLO (33 – MANUAL 2ª ED -10, 2014)", destaca que "o emprego das Forças Armadas em Operação de GLO tem por objetivo a preservação da ordem pública, da incolumidade das pessoas e do patrimônio em situações de esgotamento dos instrumentos a isso previstos no art. 144 da Constituição ou em outras em que se presuma ser possível a perturbação da ordem".

Percebe-se que a "garantia da lei e da ordem", contida na CF/88, está intimamente ligada ao aspecto da segurança pública, por isso que essa medida só será adotada específica e excepcionalmente quando os demais órgãos de segurança pública — indicados no artigo 144 —, não forem capazes de executar suas missões constitucionais. É como se fosse um reforço, até porque o Exército, por exemplo, é uma entidade operacional e não um Poder Constituído.

José Afonso da Silva, um memorável assessor jurídico da Constituinte de 1988 e um dos membros que elaborou o anteprojeto da CF/88 (Afonso Arinos), ratifica essa perspectiva no sentido de que "só subsidiária e eventualmente lhes incumbe a defesa da lei e da ordem, porque essa defesa é de competência primária das forças de segurança pública, que compreende a polícia federal e as policiais civil e militar dos Estados/DF" (Curso de Direito Constitucional Positivo, 25ª Ed, Editora Malheiros, p. 772, 2005)

Fazendo-se uma interpretação histórica, utilizo-me da fala do general Euler Bentes Monteiro, ao se manifestar na subcomissão de Defesa do Estado, da Sociedade e de sua Segurança, ao relatar que as Forças Armadas "podem ser chamadas para um complemento de defesa, mas não é uma iniciativa delas, elas têm que defender os poderes constitucionais". "Esses é que determinam, em determinado momento, se a policia num determinado Estado ou numa determinada região, não está sendo suficientemente capaz de manter a ordem ou está mal orientada dentro da organização do Estado, e, então, a Federação, a União ou Estado federal lança mão deste poder que é dele, mas por ordem dele. (ASSEMBLEIA NACIONAL CONSTITUINTE, ATAS DE COMISSÕES. 1987, p. 139).

O general Andrada Serpa sedimente a premissa da atuação das Forças Armadas na segurança interna, ao dizer que "agora, quanto à redação é evidente que eu julgaria que os senhores não poderiam, de forma alguma, excluir a segurança interna da missão das Forças Armadas, porque quando a Polícia, o Corpo de Bombeiros, a Polícia Militar entrar em greve é evidente". "Agora, como ela não é deliberante, é evidente que é o poder constitucional que tem que atuar sobre elas.(ASSEMBLEIA NACIONAL CONSTITUINTE, ATAS DE COMISSÕES. 1987, p. 140).

É hora de parar de incitar publicamente a hostilidade entre as Forças Armadas, ou delas contra os poderes constitucionais, as instituições civis ou a sociedade, eis que já representa uma afronta ao Estado democrático o simples fato de estarem em "aquartelamento" e da enxurrada de comentários golpistas nas redes sociais das Forças Armadas e Ministério da Defesa. Rememoremos o professor Ulysses Guimarães, que em 1988 já nos alertava sobre como "conhecemos o caminho maldito".

Portanto, o artigo 142 da Constituição, ao tratar da GLO, não se traduz como fundamento jurídico-constitucional ao emprego das Forças Armadas na atual conjuntura, seja pelo não preenchimento dos requisitos de ordem constitucional, legal e interpretativa, seja pela própria impropriedade da utilização do mecanismo à finalidade que se propõe.

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Referências
SERRANO, Carlos Ceso. Critia de Libros. Militarismo y civilismo en la España Contemporánea. (Madri, Instituto de Estudios Econonómicos, 1984), disponível em: < http://reis.cis.es/REIS/PDF/REIS_036_14.pdf >. Acessado em 17 de agosto de 2021.

SOUTO, João Carlos. Suprema Corte dos Estados Unidos: principais decisões — 3. ed. — São Paulo: Atlas, 2019.

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  • é advogado, mestrando em Segurança Pública, Cidadania e Direitos Humanos (UERR), especialista em Direito Público, ex-membro da Comissão Nacional de Estudos Constitucionais (CFOAB).

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