Tribunal do Júri

O Tribunal do Júri e os casos midiáticos: Sheppard v. Maxwell (parte 1)

Autores

  • Daniel Ribeiro Surdi de Avelar

    é juiz de Direito mestre e doutorando em Direitos Fundamentais e Democracia (UniBrasil) professor de Processo Penal (UTP EJUD-PR e Emap) e professor da pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI.

  • Rodrigo Faucz Pereira e Silva

    é advogado criminalista habilitado no Tribunal Penal Internacional (em Haia) pós-doutor em Direito (UFPR) doutor pelo Programa Interdisciplinar em Neurociências (UFMG) mestre em Direito (UniBrasil) e coordenador da pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI.

  • Denis Sampaio

    é defensor público titular do 2º Tribunal do Júri do Rio de Janeiro doutor em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Lisboa (Portugal) mestre em Ciências Criminais pela Ucam-RJ investigador do Centro de Investigação em Direito Penal e Ciências Criminais da Faculdade de Lisboa membro consultor da Comissão de Investigação Defensiva da OAB-RJ membro honorário do Instituto dos Advogados Brasileiros professor de Processo Penal e autor de livros e artigos.

19 de novembro de 2022, 8h00

"'Assassinato [1] e mistério, sociedade, sexo e suspense foram combinados neste caso de maneira a intrigar e cativar a imaginação do público em um grau talvez sem paralelo nos anais recentes. Ao longo da investigação preliminar, os conflitos legais subsequentes e o julgamento de nove semanas, editores conscientes da circulação atenderam ao insaciável interesse do público Americano pelo bizarro. *** Nesta atmosfera de 'feriado romano [2]' para a mídia, Sam Sheppard foi julgado por sua vida' [3]."

Um dos grandes e eternos temas de discussão envolvendo o júri, está relacionado à publicidade midiática anterior ao julgamento de casos de grande repercussão. Quais são as ferramentas que o sistema de justiça norte-americano fornece ao juiz-presidente para equilibrar a liberdade de imprensa (Emenda I) e o direito a um julgamento justo (Emenda VI)? A presente discussão foi travada no caso Sheppard v Maxwell (384 U.S. 333), julgado em 1966 pela Suprema Corte dos Estados Unidos. Vamos a ele.

Spacca
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No artigo de hoje, trataremos da cronologia dos fatos, explicando os detalhes investigativos e o papel que a mídia desempenhou até a admissão da acusação pelo grand jury. Na sequência, abordaremos as peculiaridades do julgamento e a decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos.

Em data de 4/7/1954, entre 3h e 4h45, a sra. Marilyn Sheppard, grávida de quatro meses, e esposa do médico Samuel H. Sheppard (Sam Sheppard, 30 anos), foi espancada até a morte enquanto dormia no quarto de sua residência, localizada à beira do lago Erie, em Bay Village, Ohio, subúrbio de Cleveland. Seu pijama foi parcialmente removido e seu rosto estava praticamente irreconhecível diante dos mais de vinte cortes curvos que dilaceraram a sua face e o couro cabeludo. Seu sangue contornou o seu corpo manchando as roupas de cama e, nas paredes e portas do armário, havia dezenas de outros vestígios de sangue, evidenciando a brutalidade do crime [4]. Identificado como o possível autor do crime, Sam Sheppard foi preso em 30/7/1954 e denunciado (indicted) em 17/8/1954.

De acordo com o acusado, na noite que antecedeu os fatos, ele e sua esposa convidaram um casal de vizinhos (Don e Nancy Ahern) para jantar em sua residência. Findo o encontro, o acusado ficou com sono e cochilou no sofá enquanto Marilyn foi até o quarto dormir. Ao acordar pela manhã, Sheppard escutou sua esposa gritar e correu em seu auxílio. Subindo as escadas, o acusado visualizou na penumbra do corredor a "figura" de um homem branco e desconhecido, o qual estava postado ao lado da cama da vítima. Ambos entraram em luta corporal, mas Sheppard foi atingido na nuca e restou inconsciente ao lado da cama de sua esposa.

Após recobrar os sentidos, o acusado verificou o pulso da vítima e estimou que ela havia falecido. Então, dirigiu-se até o quarto de seu filho (Chip), de apenas sete anos, e constatou que ele não havia sido agredido. Na sequência, ouviu um barulho que vinha do térreo da residência e, ao descer correndo, encontrou o agressor fugindo do seu interior em direção ao lago Erie. Sheppard o perseguiu e ambos entraram novamente em luta corporal, porém, o acusado foi novamente derrotado, perdendo mais uma vez a consciência.

Ao acordar, Sheppard estava deitado de bruços com a parte inferior do seu corpo na água e não trajava mais a sua camisa. Então retornou para a sua residência, verificou novamente a pulsação da sua esposa e concluiu que ela realmente havia falecido. Às 5h40, ligou para Spencer Houk, então prefeito de Bay Village que, juntamente com sua esposa (Esther), foram até a sua residência. Lá chegando, os Houks encontraram o acusado jogado numa poltrona no andar de baixo, sem camisa e com a mão no pescoço. Ele disse que algo precisaria ser feito para ajudar Marilyn e, mostrando-se confuso, não conseguiu reproduzir maiores detalhes a respeito do que teria acontecido: "(…) ele não sabia quantos intrusos estavam no quarto quando ele foi ferido pela primeira vez, e não podia nem ter certeza do sexo da pessoa ('forma') com quem havia lutado (chamando o intruso de 'bípede' em uma entrevista)" [5]. Ao encontrarem o corpo da vítima, o prefeito acionou a polícia local, o doutor Richard Sheppard (médico e irmão do acusado) e os Aherns. Ao chegar até a residência de seu irmão, doutor Richard examinou a vítima e afirmou que ela estava morta, verificou os ferimentos de Sam Sheppard e o removeu do local dos fatos para uma clínica operada pela família Sheppard.

Por volta das 6h, os primeiros policiais chegaram ao local e descobriram o corpo de Marilyn, rastros de sangue e evidências de um possível crime de roubo [6] [7]. Contudo, outra conclusão foi alcançada pelo legista Sam Gerber, que imediatamente suspeitou que Sheppard havia assassinado a sua esposa, eis que aparentemente nada havia sido subtraído e não foram encontrados vestígios de que alguém teria forçado a sua entrada na residência. Após uma análise sumária, doutor Gerber afirmou para os policiais: "'Bem, é evidente que o médico fez isso, então vamos obter a confissão dele'" [8]. A certeza quanto a hipótese criada pelo legista de Cuyahoga County fez com que ele abdicasse de buscar outras evidências, entre elas, coletar impressões digitais e amostras de sangue.

O primeiro interrogatório de Sam Sheppard ocorreu enquanto ele ainda estava hospitalizado e sob sedação (4/7/1954). Suas roupas e pertences pessoais foram apreendidas pelo legista e o acusado foi questionado se participaria de um teste com o uso de um detector de mentiras. Ao final desse primeiro interrogatório, o policial Robert Schottke disse a Sheppard: "Eu acho que você matou a sua esposa" [9]. E a notícia ganhou as primeiras páginas de todos os jornais de Cleveland, tornando-se uma obsessão midiática.

No dia seguinte (5/7/1954) ao crime, Sheppard é novamente interrogado por policiais e examinado por um neurologista. Após o funeral de Marilyn (7/7/1954), Sheppard é mais uma vez interrogado (8/7/1954)  sem a presença de seu advogado  por detetives de Cleveland e reitera a sua inocência [10]. E, no dia posterior (9/7/1954) [11], participou de uma reprodução simulada do crime, a qual contou com a presença de policiais, do legista e de um grupo de jornalistas, "que aparentemente foram convidados pelo legista" [12].

Cada passo da investigação era divulgado pela mídia de forma detalhada [13], que noticiava que o suspeito havia se negado a participar do lie detector test [14], recusado o uso do truth serum (soro da verdade) e iniciava suas matérias de primeira página afirmando: "alguém estava fugindo impune de um assassinato"; "Por que não há investigação? Faça isso agora Dr. Gerber" [15].

A polícia e a imprensa especulavam um motivo que justificasse o assassinato de Marilyn. Entre as hipóteses, surgiu a informação dada por uma vizinha de que a vítima havia dito que Sheppard teria se tornado estéril em decorrência de sua constante exposição ao equipamento de raio-x e que o crime seria uma retaliação por Marilyn ter engravidado de outro homem. Testes no feto, porém, dissiparam essa teoria [16].

Incitado pela força das matérias publicadas em 21/07/1954, as autoridades designaram um novo interrogatório do acusado, o qual foi realizado (22/07/1954) em um ginásio localizado na Bay Village School, contando com a presença do legista, do promotor do condado e dois detetives. Foi montada uma grande mesa para que os repórteres pudessem acompanhar o ato, o qual foi transmitido ao vivo por rádio e televisão. Ao chegar ao local, Sheppard foi revistado à vista de várias centenas de espectadores e, durante o interrogatório  que durou três dias  o advogado do acusado (Dr. William Corrigan) foi proibido de orientar o seu cliente. "Quando o advogado-chefe de Sheppard tentou colocar alguns documentos no registro, ele foi expulso à força da sala pelo legista, que recebeu aplausos, abraços e beijos das senhoras na plateia" [17].

A vida pessoal do acusado foi exposta em seus mínimos detalhes, inclusive revelando um relacionamento extraconjugal que ele mantinha com a técnica de laboratório Susan Hayes [18], e informações inverídicas eram constantemente veiculadas pela mídia. No dia 26/07/1954, por exemplo, uma reportagem revelava que testes científicos feitos na casa de Sheppard confirmavam que o assassino havia lavado um rastro de sangue que saía do quarto da vítima até o andar inferior da residência, informação que desconstruía a versão dada pelo acusado [19]. Porém, nenhuma prova desse tipo foi produzida no processo [20].

Em 30/7/1954, o jornal "The Cleveland Press" estampou na sua primeira página: "Why Isn’t Sam Sheppard in Jail?". O editorial, mesmo se tratando de um texto opinativo, exerceu significativa influência na atuação policial. O contundente texto (aqui) merece ser lido para que possamos melhor refletir sobre o papel que esperamos da mídia. E não seria surpresa afirmar, como agora fazemos, que Sheppard foi preso no mesmo dia, às 22h30, na casa de seus pais.

Após a sua detenção (30/7/1954), o acusado foi levado para a prefeitura de Bay Village, onde centenas de curiosos e repórteres já aguardavam a sua chegada. No dia seguinte, Sheppard é interrogado durante nove horas por duas equipes de detetives e, nos próximos dois dias, é reinterrogado por mais de 13 horas, sempre negando a prática do crime [21].

Em 16/8/1964, após a realização da preliminar hearing, Sheppard é solto mediante fiança (US$ 50 ml), mas no dia seguinte é preso novamente, após um grand jury admitir uma acusação (indictment) de first-degree murder. Tudo isso, obviamente, sob o forte impacto de manchetes sensivelmente incriminatórias. Em uma delas chegou a constar que Sheppard admitiu a sua culpa ao contratar um proeminente advogado criminal que colocava obstáculos no caminho da acusação.

Fundamentalmente três provas influenciaram a decisão do grand jury. Primeiro, o depoimento do prefeito Houk, que relatou uma conversa que manteve com Marilyn onde ela teria chamado o acusado de Dr. Jekyll e Mr. Hyde (da obra O Médico e O Monstro). Segundo, as informações prestadas por Susan Hayes ao descrever para os jurados a natureza íntima da sua relação com o Sheppard. Por fim, a declaração dada pelo inspetor James McArthur, onde apontava evidências no sentido de que Sam Sheppard queria o divórcio, mas Marilyn se recusava a aceitar [22].

Na próxima semana, detalharemos como foi o julgamento de Sheppard e todos os fatos que fomentarem a discussão perante a Suprema Corte dos Estados Unidos ao sopesar a liberdade de imprensa e o direito a um julgamento justo.

A partir desse histórico instigamos o leitor com a seguinte indagação: o excesso midiático pode chegar a um ponto onde seja possível se declarar a nulidade de um julgamento mesmo sem uma prova objetiva de que os jurados foram influenciados por ele?


[1] LINDER, Douglas O. Dr. Sam Sheppard Trials: An Account. In. Famous Trials. Disponível em https://bit.ly/3UnaVnr com acesso em 11/11/2022.

[2] Entretenimento ou prazer que depende do sofrimento dos outros.

[3] "'Murder and mystery, society, sex and suspense were combined in this case in such a manner as to intrigue and captivate the public fancy to a degree perhaps unparalleled in recent annals. Throughout the preindictment investigation, the subsequent legal skirmishes and the nine-week trial, circulation-conscious editors catered to the insatiable interest of the American public in the bizarre. * * * In this atmosphere of a 'Roman holiday' for the news media, Sam Sheppard stood trial for his life.' 165 Ohio St., at 294, 135 N.E.2d, at 342". (Mister Justice Frankfurter  165 Ohio St., em 294, 135 N.E.2d, em 342).

[4] Fotos da cena do crime podem ser acessadas aqui: https://bit.ly/3O1UIBV

[5] LINDER, Douglas O. Dr. Sam Sheppard Trials: An Account. In. Famous Trials. Disponível em https://bit.ly/3UnaVnr com acesso em 11/11/2022.

[6] The Trials of Dr. Sam Sheppard: A Chronology. Disponível em: https://bit.ly/3NQUD3R.

[7] Ou, talvez, a simulação de um crime, eis que, apesar de algumas gavetas estarem abertas, tudo estava no seu devido lugar e nada parecia estar faltando (LINDER, Douglas O. Dr. Sam Sheppard Trials: An Account. In. Famous Trials. Disponível em https://bit.ly/3UnaVnr com acesso em 11/11/2022). Os únicos objetos que pareciam ter sido mexidos eram a maleta médica preta de Sheppard, que estava em pé no corredor com o conteúdo espalhado no chão e, na sala, um troféu de atletismo do colégio de Sam e um troféu de boliche de Marilyn que estavam arranhados e quebrados no chão.

[8] 384 U. S. p. 337.

[9] 384 U. S. p. 337.

[10] The Trials of Dr. Sam Sheppard: A Chronology. Disponível em: https://bit.ly/3NQUD3R

[11] Um fato importante também ocorre nesse mesmo dia. Adelbert O'Hara, detetive de Cleveland, entrevista Richard Eberling, um homem de 24 anos de idade que lavava as janelas da residência dos Sheppards. (Id).

[12] 384 U. S. p. 338.

[13] Entre as excentricidades do caso, merece destaque o fato da polícia ter permitido que Otto Graham  jogador do Cleveland Browns e maior quarterback da NFL de sua época  ingressasse no interior da residência dos Sheppards enquanto a área ainda não estava isolada. O jogar era amigo da família e estava passando pela frente da residência quanto notou a enorme quantidade de viaturas e policiais. Sua presença foi notada pela mídia (Saturday Evening Post), que não demorou para veicular uma reportagem a respeito do que ele teria dito ao ver o corpo da vítima e o quarto cheio de marcas de sangue.

[14] "Doctor Samuel H. Sheppard declined to submit to a lei detector test for questioning about the slaying of his attractive wife". (LINDER, Douglas O. Dr. Sam Sheppard Trials: An Account. In. Famous Trials. Disponível em https://bit.ly/3UnaVnr com acesso em 11/11/2022)

[15] "Why no inquest? Do it now, Dr. Gerber!". Inquest corresponde a uma investigação feita por um médico legista (ou auxiliar), por vezes ajudada por um júri, objetivando apurar como ocorreu uma morte considerada suspeita.

[16] LINDER, Douglas O. Dr. Sam Sheppard Trials: An Account. In. Famous Trials. Disponível em https://bit.ly/3UnaVnr com acesso em 11/11/2022.

[17] 384 U. S. p. 340.

[18] Quando questionado a respeito desse fato pelos detetives Robert Schottke e Patrick Gareau, Sheppard disse que eles eram apenas bons amigos. Porém, Susan Hayes acabou por admitir para a polícia que teve um affair com o acusado. (The Trials of Dr. Sam Sheppard: A Chronology. Disponível em: https://bit.ly/3NQUD3R). A mentira de Sam quanto ao seu relacionamento com Hayes gerou perante a opinião pública a ideia de que ele era um mentiroso e que agora restava revelado o motivo para matar a sua esposa.

[20] 384 U. S. p. 340.

[21] The Trials of Dr. Sam Sheppard: A Chronology. Disponível em: https://bit.ly/3NQUD3R

[22] LINDER, Douglas O. Dr. Sam Sheppard Trials: An Account. In. Famous Trials. Disponível em https://bit.ly/3UnaVnr com acesso em 11/11/2022.

Autores

  • é juiz de Direito, presidente do 2º Tribunal do Júri de Curitiba desde 2008, mestre em Direitos Fundamentais e Democracia (UniBrasil), professor de Processo Penal (FAE Centro Universitário, UTP e Emap), professor da pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI e coordenador do Núcleo de Pesquisa em Tribunal do Júri (Nupejuri).

  • é advogado criminalista, pós-doutor em Direito (UFPR), doutor pelo Programa Interdisciplinar em Neurociências (UFMG), mestre em Direito (UniBrasil), coordenador da pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI, professor de Processo Penal da FAE e do programa de mestrado em Psicologia Forense da UTP.

  • é defensor público, titular do 2º Tribunal do Júri do Rio de Janeiro, doutor em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Lisboa (Portugal), mestre em Ciências Criminais pela Ucam-RJ, investigador do Centro de Investigação em Direito Penal e Ciências Criminais da Faculdade de Lisboa, membro Honorário do Instituto dos Advogados Brasileiros e professor de Processo Penal.

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