Prática Trabalhista

Jornada de trabalho, faltas e justa causa na Copa do Mundo

Autores

  • Ricardo Calcini

    é professor advogado parecerista e consultor trabalhista. Atuação estratégica e especializada nos Tribunais (TRTs TST e STF). Coordenador trabalhista da Editora Mizuno. Membro do Comitê Técnico da Revista Síntese Trabalhista e Previdenciária. Membro e Pesquisador do Grupo de Estudos de Direito Contemporâneo do Trabalho e da Seguridade Social da Universidade de São Paulo (Getrab-USP) do Gedtrab-FDRP/USP e da Cielo Laboral.

  • Leandro Bocchi de Moraes

    é pós-graduado lato sensu em Direito do Trabalho e Processual do Trabalho pela Escola Paulista de Direito (EPD) pós-graduado lato sensu em Direito Contratual pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) pós-graduado em Diretos Humanos e Governança Econômica pela Universidade de Castilla-La Mancha pós-graduando em Direitos Humanos pelo Centro de Direitos Humanos (IGC/Ius Gentium Coninbrigae) da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra membro da Comissão Especial da Advocacia Trabalhista da OAB-SP auditor do Tribunal de Justiça Desportiva da Federação Paulista de Judô e pesquisador do núcleo O Trabalho Além do Direito do Trabalho da Universidade de São Paulo (NTADT/USP).

17 de novembro de 2022, 8h00

Já se iniciou a contagem regressiva para a abertura da Copa do Mundo, torneio de futebol tido como um dos maiores eventos esportivos do planeta, organizado a cada quatro anos pela Fifa (Federação Internacional de Futebol). E, claro, tendo em vista que as partidas sobretudo da primeira fase da seleção brasileira acontecerão durante os dias úteis de semana em horários comerciais, surgem dúvidas de como lidar com os jogos durante o expediente no ambiente laboral.

Afinal, as empresas podem obrigar o(a) empregado(a) a laborar no dia e em horário do jogo do Brasil? Neste dia, a propósito, o(a) funcionário(a) poderá faltar ao serviço? E se faltar, poderá ser dispensado por justa causa? E, por fim, como ficam as questões relacionadas à jornada de trabalho?

O assunto não é tão simples e, por isso, necessita de um olhar mais apurado pautado nas regras hoje existentes na legislação trabalhista. 

Spacca
Com efeito, não se põe em discussão que o futebol é uma das maiores paixões dos brasileiros e das brasileiras[1], de modo que já faz parte da cultura e tradição de nosso país. Não por outra razão que o Brasil está entre os dez países que mais compraram ingressos para a Copa do Mundo, segundo o Comitê Organizador do evento[2].

De início, é importante destacar que os dias de jogo da seleção brasileira não são considerados feriados nacionais, ou, ainda, dias de folga, cabendo ao empregador decidir se o(a) empregado(a) deverá trabalhar ou não naquele dia e no horário da partida. Nesse sentido, oportunas são as palavras da professora Fabíola Marques, e também colunista aqui na ConJur:

"Os dias de jogo da seleção não são considerados feriados e, consequentemente, se o empregado faltar ou se recusar a trabalhar poderá ser advertido; ter o dia de trabalho descontado; além de perder o direito à remuneração do descanso semanal.
Assim, a dispensa total ou parcial do trabalho dos empregados varia, pois as empresas têm autonomia total para decidir quanto à exigência ou não da prestação de serviços[3]."

Frise-se, a título de exemplo, que alguns órgãos do próprio Poder Judiciário, como o Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região[4] e o Tribunal de Justiça de São Paulo[5], já informaram que nos dias de jogos da seleção brasileira os horários de expediente e atendimento serão diferenciados. Tal procedimento poderá ser utilizado para as empresas como parâmetro a ser seguido na falta de uma normatização. Logo, nos dias de jogos da seleção brasileira, o empregador terá algumas opções para lidar com esta ocasião.

Entrementes, antes de adotar qualquer medida, o empregador deverá verificar se existe algum instrumento normativo, qual seja, Convenção Coletiva de Trabalho ou Acordo Coletivo de Trabalho prevendo tal situação. Em sua ausência, uma das alternativas seria a empresa dispensar os seus funcionários nos dias e/ou horários dos jogos da seleção brasileira, sem realizar qualquer desconto prévio, mas exigindo compensação futura.

Para tanto, basta que haja uma negociação individual com o empregador para que haja a compensação das horas de tais dias, por meio de um mero sistema do acordo de compensação da jornada de trabalho. Nesse sentido, inclusive, é a previsão do artigo 59, §6º, da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), ao preceituar que "é lícito o regime de compensação de jornada estabelecido por acordo individual, tácito ou escrito, para a compensação no mesmo mês". Uma vez que o(a) trabalhador(a) for liberado(a) nos dias e/ou horários dos jogos, haverá a compensação futura, desde que dentro do mesmo mês de trabalho.

De mais a mais, outra medida que pode ser adotada pela empresa é o banco de horas individual, caso não haja previsão em norma coletiva em sentido contrário, cujo critério de compensação se dará no prazo de até seis meses, na forma do §5º do artigo 59 da CLT: "O banco de horas de que trata o § 2o deste artigo poderá ser pactuado por acordo individual escrito, desde que a compensação ocorra no período máximo de seis meses". Aqui é importante lembrar que as jornadas de trabalho futuras, para fins de compensação, não poderão ultrapassar os limites de 10 horas diárias e de 44 horas semanais.

Além disso, mesmo após a vigência de cinco anos da Lei da Reforma Trabalhista, a redação do §2º dada ao artigo 4º celetário[6] ainda traz para algumas vozes a defesa de que os períodos dos jogos, caso o(a) empregado(a) não esteja efetivamente prestando serviço, não podem ser objetos de futura compensação, por representar uma mera liberalidade empresarial, equiparando-se a um verdadeiro benefício concedido ao(à) trabalhador(a), entendimento com o qual não nos perfilhamos.

Destarte, vale lembrar que como o empregador detém o poder diretivo, tanto que assume integralmente o risco da atividade empresarial, o(a) colaborador(a) deverá seguir as suas orientações para evitar que sejam aplicadas quaisquer penalidades. Por isso que a ausência ao posto de trabalho, nos dias de jogos da copa do mundo, acarretará o desconto no salário e no descanso semanal remunerado, além de ensejar a aplicação de punições que podem ser da ordem de uma simples advertência (verbal ou formal), passando pela suspensão contratual e, em casos mais graves cujas atividades sejam essenciais, até a aplicação de uma justa causa.

E neste tema, no ano de 2018, o TRT-SP da 2ª Região foi provocado a emitir um juízo de valor referente a um caso, envolvendo uma justa causa aplicada, em razão de o trabalhador ter saído para assistir ao jogo da Copa do Mundo e ter retornado ao estabelecimento empresarial após o horário ajustado. No caso sub judice, aproximadamente 25 trabalhadores da empresa teriam sido dispensados pelo mesmo motivo. Contudo, o tribunal regional considerou a penalidade excessiva, afastando a justa causa.

De se citar, para tanto, as palavras do desembargador relator[7],

"[…] na seara trabalhista, como ressaltado pelo magistrado singular, não se pode falar em desídia, vez que não se provou se tratar de faltas reiteradas do trabalhador, caracterizando sua negligência e descaso no cumprimento das tarefas diárias.
Ademais, é certo que o Reclamante não pode ser responsabilizado integralmente pelos efeitos da conduta coletiva, ainda que se mostre ilícita (princípio da razoabilidade). É necessário individualizar da conduta de cada empregado envolvido. Desta forma, a punição aplicada ao empregado se mostrou excessiva e incompatível com a falta cometida (máximas experiências e princípio da razoabilidade)."

Se é verdade que o(a) empregado(a) deve seguir as diretrizes e ordens do empregador; de igual modo a empresa deve ser cautelosa na hipótese de aplicação das penalidades gravíssimas, como a justa causa, sob pena de ser invalidada perante o Poder Judiciário Trabalhista.

Noutro giro, importante pontuar que o empregador pode ainda exigir que todos os empregados trabalhem no dia e em horário do jogo da seleção brasileira, seja porque a atividade empresarial não possibilita a dispensa dos trabalhadores, seja porque a atividade é essencial à própria coletividade.

Na prática, para os dias de jogos da Copa do Mundo, se o(a) funcionário(a) assistir aos jogos dentro do seu expediente e nas dependências da empresa, isso representa jornada de trabalho, estando vedada sua futura compensação. Ao revés, se a empresa adotar em tais dias a redução do expediente, aí sim nasce o direito de o empregador exigir a compensação futura, na medida em que o(a) funcionário(a) já foi remunerado(a) por um dia inteiro de trabalho, quando lhe é feito o pagamento de seu salário mensal.

À vista de todo o exposto, é imprescindível que sejam estabelecidas regras claras e transparentes de como a empresa e os empregados deverão exercer as suas atividades durante este período da Copa do Mundo, sobretudo para se evitar desentendimentos e litígios futuros. Não se está aqui a privar os trabalhadores de assistirem aos jogos da seleção brasileira, até porque se trata de um dos maiores eventos do mundo que acontece a cada quatro anos, cuja tradição já enraizada em nosso país exige certa empatia e colaboração nas relações de trabalho. Logo, se for o caso, o empregador poderá disponibilizar uma televisão em um local comum para viabilizar que seus empregados assistam aos jogos no próprio estabelecimento comercial.

Em arremate, em tais circunstâncias extraordinárias, e visando propiciar um meio ambiente do trabalho sobretudo saudável, deve prevalecer o bom senso, a razoabilidade e o equilíbrio das relações trabalhistas.


[6] Art. 4º – Considera-se como de serviço efetivo o período em que o empregado esteja à disposição do empregador, aguardando ou executando ordens, salvo disposição especial expressamente consignada. […] § 2o Por não se considerar tempo à disposição do empregador, não será computado como período extraordinário o que exceder a jornada normal, ainda que ultrapasse o limite de cinco minutos previsto no § 1o do art. 58 desta Consolidação, quando o empregado, por escolha própria, buscar proteção pessoal, em caso de insegurança nas vias públicas ou más condições climáticas, bem como adentrar ou permanecer nas dependências da empresa para exercer atividades particulares, entre outras: I – práticas religiosas; II – descanso; III – lazer; IV – estudo; V – alimentação; VI – atividades de relacionamento social; VII – higiene pessoal; VIII – troca de roupa ou uniforme, quando não houver obrigatoriedade de realizar a troca na empresa.

Autores

  • é mestre em Direito do Trabalho pela PUC-SP, professor de Direito do Trabalho da FMU, coordenador trabalhista da Editora Mizuno, membro do Comitê Técnico da revista Síntese Trabalhista e Previdenciária, coordenador acadêmico do projeto "Prática Trabalhista" (ConJur), membro e pesquisador do Grupo de Estudos de Direito Contemporâneo do Trabalho e da Seguridade Social, da Universidade de São Paulo (Getrab-USP), do Gedtrab-FDRP/USP e da Cielo Laboral.

  • é pós-graduado lato sensu em Direito do Trabalho e Processual do Trabalho pela Escola Paulista de Direito, pós-graduado lato sensu em Direito Contratual pela PUC-SP, pós-graduando em Direitos Humanos pelo Centro de Direitos Humanos da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, membro da Comissão Especial da Advocacia Trabalhista da OAB-SP, auditor do Tribunal de Justiça Desportiva da Federação Paulista de Judô e pesquisador do núcleo O Trabalho Além do Direito do Trabalho, da USP.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!