Tribunal do Júri

O testemunho indireto (hearsay) e sua complexa utilização no Tribunal do Júri

Autores

  • Daniel Diamantaras de Figueiredo

    é defensor público do estado do Rio de Janeiro titular do 3º Tribunal do Júri-RJ coordenador do Núcleo do Sistema Penitenciário da Defensoria Pública-RJ (Nuspen) mestre em ciências criminais pela Universidade de Lisboa membro do Conselho Penitenciário do Estado do Rio de Janeiro e Professor de Direito Processual Penal.

  • Denis Sampaio

    é defensor público titular do 2º Tribunal do Júri do Rio de Janeiro doutor em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Lisboa (Portugal) mestre em Ciências Criminais pela Ucam-RJ investigador do Centro de Investigação em Direito Penal e Ciências Criminais da Faculdade de Lisboa membro consultor da Comissão de Investigação Defensiva da OAB-RJ membro honorário do Instituto dos Advogados Brasileiros professor de Processo Penal e autor de livros e artigos.

  • Rodrigo Faucz Pereira e Silva

    é advogado criminalista habilitado no Tribunal Penal Internacional (em Haia) pós-doutor em Direito (UFPR) doutor pelo Programa Interdisciplinar em Neurociências (UFMG) mestre em Direito (UniBrasil) e coordenador da pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI.

  • Daniel Ribeiro Surdi de Avelar

    é juiz de Direito mestre e doutorando em Direitos Fundamentais e Democracia (UniBrasil) professor de Processo Penal (UTP EJUD-PR e Emap) e professor da pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI.

12 de novembro de 2022, 8h00

Uma das questões mais problemáticas e necessárias no processo penal relaciona-se com o tema prova, sobretudo a produção e valoração da prova oral.

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Ao mesmo tempo em que o processo penal é o instrumento estatal pelo qual, legitimamente, será adjudicada a culpa diante de uma conduta instituída como injusto penal, seu propósito, a par de limitar o jus puniendi estatal em prol da liberdade das pessoas (e, mais obviamente, na qualidade de proteção de inocentes com a identificação prática de todas as garantias), será o campo de apuração da comprovação (ou não) da hipótese fática trazida na acusação, o que ocorrerá por meio da produção e valoração da prova.

Porém, a questão não se resume na simplicidade postulação — produção — valoração. Há questões em que a ausência de maior controle normativo resulta em problemas práticos com soluções complexas ao justo processo. Um dos delicados exemplos diz respeito à testemunha de ouvir dizer e a sua consequente ocorrência, em especial, no tribunal do júri.

Tradicionalmente no sistema do common law, a testemunha de ouvir dizer era denominado hearsay, no entanto, nos dias atuais, esse termo não se refere exclusivamente a esse testemunho indireto.

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Hearsay é definido em codificação federal norte-americana (Federal Rules of Evidence) como uma declaração distinta daquela que é dada por uma testemunha no momento do julgamento ou numa audiência para provar a veracidade de uma questão narrada [1]. Através de uma tradução literal, o hearsay é o ouvir-dizer.

Nos países cujos sistemas derivaram-se do romano-germânico (adotados em grande parte pelos países da Europa continental e também pelo Brasil), o testemunho de ouvir dizer associa-se com a prova decorrente de fonte pessoal que nada mais é do que um depoimento indireto, no qual aquele que faz a declaração não presenciou os fatos, mas tomou conhecimento deles por outra pessoa.

Por outro lado, não é este o significado utilizado no sistema anglo-saxão [2]. Neste, o termo hearsay refere-se a todos os elementos produzidos fora do processo, seja decorrente de fonte pessoal (declarações anteriores), seja de prova documental (declarações constantes em documentos inscritos, suportes mecânicos ou registros) [3]. Também inclui-se nesse conceito as testemunhas de "ouvir-dizer" já que declara, não a sua observação direta dos fatos, mas de terceiros que não comparecem ao julgamento e que, portanto, não são submetidos ao exame cruzado.

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Spencer indica que o que conhecemos hoje como "rule against hearsay" refere-se a quatro elementos, sendo apenas um deles que se relaciona com o termo original da palavra: (1) uma declaração escrita (gravada ou filmada) não é admissível como substituto de um depoimento oral prestado no julgamento, (2) um depoimento oral prestado no julgamento de uma testemunha sobre o que ela ouviu de outro declarante, (3) o depoimento dado em julgamento de uma certa testemunha não pode ser complementado por suas declarações anteriores e (4) a prova dos fatos objeto do processo não pode se dar por uma prova escrita [4].

A doutrina da hearsay tem como objetivo principal vedar a utilização dos elementos produzidos extrajudicialmente ou anterior ao julgamento ("hearsay evidence"), como uma forma de permitir que apenas aqueles produzidos durante o processo ou na fase de julgamento sejam submetidos à análise do julgador.

Desta forma, resta claro que o termo "hearsay testimony" não se limita apenas ao testemunho por ouvir dizer, como comumente indicado na jurisprudência brasileira, tendo, na verdade, outros sentidos.

Antes de adentrar no exame do tratamento dado pela legislação brasileira, importante registrar como se consolidou a doutrina da hearsay no sistema do common law.

Num primeiro período de desenvolvimento, esse sistema probatório determinava a exclusão do testemunho indireto diante da ausência do compromisso de dizer a verdade (juramento), haja vista que este funcionaria como uma ferramenta gnosiológica de descoberta da verdade [5].

Num segundo momento, o critério do juramento vai sendo desvinculado como "aferidor gnosiológico", ao passo que a realização do exame cruzado (cross-examination) passa a ser o suporte central da doutrina da hearsay, na esteira dos estudos de Wigmore [6].

A consolidação de normas proibindo o uso do testemunho indireto está intimamente relacionada à formação do modelo de processo adversarial [7]. Isso porque, com a proibição de admissão desta espécie de depoimento, mais se incentivou que a prova fosse produzida em julgamento ("live testimony"), razão pela qual aumentou a oportunidade do escrutínio da prova sob o prisma adversarial (perante um juiz neutro e passivo e com a realização do "cross-examination" pelas partes).

Logo, firma-se o pensamento de que todas as declarações para serem usadas como prova devem ser submetidas ao "cross-examination", a fim de que as partes possam testar a credibilidade através das técnicas de inquirição, tema que vem sendo estudado e aprimorado no sistema processual brasileiro.

Um exemplo interessante ocorre em Portugal. Na legislação processual penal, há vedação de utilização no processo criminal do testemunho indireto se a pessoa, fonte da informação, não for chamada para depor. Aliás, se a testemunha ouvida se recusar ou não estiver em condições de indicar a pessoa ou a fonte através da qual tomou conhecimento dos fatos seu depoimento também não poderá ser valorado. Trata-se de uma proibição de valoração da prova (artigo 129, CPP português).

Feitos tais esclarecimentos sobre o que pode ser considerado hearsay, o foco no presente artigo será a análise da utilização da testemunha de ouvir dizer no processo penal, ou seja, aquela que não presenciou os fatos, mas ouviu sobre eles de outra pessoa, especialmente no procedimento do Tribunal do Júri.

No Brasil não há uma norma específica no Código de Processo Penal que regulamente detalhadamente esse testemunho indireto ou oriente sobre a admissibilidade desse tipo de prova. O artigo 209, §1º, do CPP apenas autoriza o juiz, se lhe parecer conveniente, ouvir as pessoas referidas pelas testemunhas inquiridas, contudo nada diz sobre as consequências processuais acerca do uso do testemunho indireto se essas pessoas não forem chamadas a depor.

Diante desse silêncio na legislação brasileira, a jurisprudência do STJ e STF vem definindo contornos possíveis para valoração de elementos de prova nas decisões judiciais, valendo-se de standards probatórios para cada momento processual.

Nesse sentido, o STJ já reconheceu a impossibilidade de admissão da pronúncia fundada apenas em depoimentos de ouvir dizer, sem que haja indicação das fontes originárias da informação e outros elementos que corroborem a versão apresentada (HC 673.138-PE, 5ª Turma, relator ministro Reynaldo Soares da Fonseca, j. 14/9/2021, DJe 20/9/2021; AgRg no HC 644.971/RS, 5ª Turma, relator ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, j. em 23/3/2021, DJe 29/3/2021; REsp 1.649.663/MG, 6ª Turma, relator ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, j. em 14/9/2021, DJe 21/9/2021; REsp 1.674.198/MG, 6ª Turma, relator ministro Rogério Schiettu Cruz, j. 5/12/2017, DJe 12/12/2017) [8].

Em outro julgamento, o STJ entendeu que o testemunho indireto não é válido para demonstrar a ocorrência de nenhum elemento do crime e que, portanto, a sentença condenatória não poderá se fundar apenas nesse tipo de testemunho. Concluiu, pois, a 5ª Turma do STJ no sentido de que a utilidade do testemunho de ouvir dizer restringe-se apenas à indicação de pessoas que são fontes da informação trazida, na forma do artigo 209, §1ª, do CPP (AREsp 1.940.381/AL, 5ª Turma, relator ministro Ribeiro Dantas, j. 14/12/2021, DJe 16/12/2021).

As razões para proibição de valoração do depoimento indireto são fundadas no contraditório, ampla defesa, princípio da imediação e direito ao confronto. Note-se que as declarações da fonte originária da informação estão sendo apenas relatadas pela testemunha indireta, não havendo uma produção dialética da prova, mas mera transposição de um relato anterior ao julgamento, em que o acusado não participou e não teve a possibilidade de confrontar a testemunha direta (artigo 212, CPP; artigo 8º, n. 2, f, CADH).

Como o acusado, por meio de sua defesa, não terá oportunidade de poder alterar o curso e conteúdo do depoimento com as perguntas feitas, demonstrar eventuais inconsistências e contradições e confrontar a fonte originária de informação pela sua ausência, de forma a testar a sua credibilidade, a coerência narrativa e a força probatória de suas declarações, ficar-se-á inviabilizado o cumprimento dos imperativos dos princípios fundamentais acima mencionados. E, no caso do júri, pode-se acrescentar mais um: o princípio da plenitude da defesa (artigo 5º, inciso XXXVIII, a, CF/88).

No júri, a situação é ainda mais dramática. A utilização de investigações preliminares e múltiplas informações advindas das testemunhas, inclusive policiais que presidiram e realizaram colheita de depoimentos, são utilizadas em plenário pelas partes, em especial pela acusação. O que se tem é a argumentação sobre um meio de prova (testemunha) que expõe fatos sem ter contato com os mesmos. E mais, um argumento de autoridade (imagine a exposição de informações secundárias advindas de um delegado ou inspetor de polícia em plenário) sugestiona, indiscutivelmente, os tomadores de decisão.

Para ampliar a delicadeza da discussão, tem-se a dificuldade de impugnação face a soberania dos veredictos. É dizer, tomada uma decisão pelo Conselho de Sentença com base em testemunhas de ouvi dizer ocorrerá a formação do conteúdo decisório sem uma justificação expressa sobre sua utilização e, portanto, um verdadeiro bloqueio impugnativo por parte da defesa. Mais uma rusga ao princípio da plenitude da defesa.

E já adiantamos ao leitor que eventuais erros decisórios não poderão ficar a cargo apenas dos juízes leigos. O problema está muito mais no aspecto dos limites/filtros processuais de admissibilidade e produção do que, efetivamente, de valoração dessa prova indireta pelo Conselho de Sentença.

Dessa forma, entende-se que o caminho adequado é a edificação de normas e controle judicial — especialmente no momento decisório divisor das fases do procedimento (pronúncia) — a vedação da utilização do testemunho de ouvir dizer ou testemunho indireto, caso a fonte originária não compareça e não seja inquirida pelas partes, possibilitando ao réu exercer seu direito ao confronto, plenitude de defesa, contraditório e imediação em plenário do júri.

 


[1] Artigo 801 (c) da Federal Rules of Evidence. "hearsay is a statement, other than one made by the declarant while testifying at the trial or hearing, offered in evidence to prove the truth of matter asserted". Cf. também MORGAN, EDMUND M. Hearsay and non-hearsay. Harvard Law Review, vol. 48, 1934-1935, pp. 1138-1160. WALTZ, Jon R.; PARK, Roger C.; FRIEDMAN, Richard D. Evidence: cases and materials. 11th ed. New York: Thomson Reuters/ Foundation Press, 2009, p. 186.

[2] É importante assinalar, porém, que no século XVIII, "hearsay" significa exatamente o sentido literal de sua palavra (ouvir-dizer), ou seja, o que uma pessoa ouvir outra dizer. No entanto, este sentido foi ampliado após o início do século XIX, provavelmente, em razão do crescimento do papel dos advogados criminais que enfatizavam a falta de oportunidade de "cross-examination" de elementos produzidos anteriormente ao processo (FRIEDMAN, Richard. Face to Face: rediscovering the right to confront prosecution witness”. The International Journal of Evidence and Proof, vol. 08, 2004, p. 12).

[3] MESQUITA, Paulo Dá. A prova do crime e o que se disse antes do julgamento: estudo sobre a prova no processo penal português, à luz do sistema norte-americano, Coimbra: Coimbra Editora, 2011, pp. 387-388.

[4] SPENCER, John R. Hearsay evidence in criminal proceedings. 2nd ed. Oxford and Portland: Hart Publishing, 2014, pp. 5-6. Idem. Evidence. In DELMAS-MARTY, Mireille; SPENCER, John R. (eds.). European criminal procedures. New York: Cambrige University Press, 2002, p. 616-617.

[5] MESQUITA, Paulo Dá. A prova do crime e o que se disse antes do julgamento: estudo sobre a prova no processo penal português, à luz do sistema norte-americano, Coimbra: Coimbra Editora, 2011, p. 381 e nota 28 da mesma página.

[6] WIGMORE, John Henry. The history of hearsay rule. Harvard Law Review, vol. 17, nº 7, 1904, p. 448-457.

[7] WIGMORE, John Henry. Evidence. James H. Chadbourn rev., vol. 5, Boston: Little, Brown & Company, 1974, § 1364, p. 20-28.

Autores

  • é mestre em Ciências Jurídico-Criminais pela Universidade de Lisboa e defensor público do Rio de Janeiro.

  • é defensor público, titular do 2º Tribunal do Júri do Rio de Janeiro, doutor em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Lisboa (Portugal), mestre em Ciências Criminais pela Ucam-RJ, investigador do Centro de Investigação em Direito Penal e Ciências Criminais da Faculdade de Lisboa, membro Honorário do Instituto dos Advogados Brasileiros e professor de Processo Penal.

  • é advogado criminalista, pós-doutor em Direito (UFPR), doutor pelo Programa Interdisciplinar em Neurociências (UFMG), mestre em Direito (UniBrasil), coordenador da pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI, professor de Processo Penal da FAE e do programa de mestrado em Psicologia Forense da UTP.

  • é juiz de Direito, presidente do 2º Tribunal do Júri de Curitiba desde 2008, mestre em Direitos Fundamentais e Democracia (UniBrasil), professor de Processo Penal (FAE Centro Universitário, UTP e Emap), professor da pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI e coordenador do Núcleo de Pesquisa em Tribunal do Júri (Nupejuri).

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