Opinião

Bloqueios de rodovias não tipificam crime contra o Estado democrático de Direito

Autor

  • Carlos Eduardo Ferreira dos Santos

    é doutorando em Direito Público na Universidade de Coimbra (Portugal) mestre em Direito Constitucional pela Universidad de Castilla-La Mancha (Espanha) e membro da International Association of Constitutional Law (IACL) e do Instituto Brasileiro de Direito Constitucional (IBDC).

9 de novembro de 2022, 18h24

É cediço que após o resultado das eleições para o cargo de presidente da República grupos interditaram e bloquearam dezenas de rodovias pelo país. Questão que surge é se tal conduta se amolda a algum dos crimes contra o Estado democrático de Direito.

Reprodução / Twitter
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A Lei nº 14.197, de 1º de setembro de 2021, acrescentou novos delitos ao Código Penal, criando tipos específicos contra o Estado democrático de Direito, prevendo crimes contra a soberania nacional, crimes contra as instituições democráticas, crimes contra o funcionamento das instituições democráticas no processo eleitoral e crimes contra o funcionamento dos serviços essenciais (artigos 359-I a 359-R, do Código Penal) [1].

A seguir, serão analisados sucintamente os diversos tipos penais da lei sob exame, a fim de verificar se o ato de caminhoneiros bloquearem rodovias federais, por si só, tem o condão de se tipificado como algum dos delitos contra o Estado democrático de Direito, decorrentes da Lei nº 14.197 de 2021.

"Atentado à soberania
Art. 359-I. Negociar com governo ou grupo estrangeiro, ou seus agentes, com o fim de provocar atos típicos de guerra contra o País ou invadi-lo:
Pena – reclusão, de 3 (três) a 8 (oito) anos."

O tipo exige a negociação com governo, agentes ou grupo estrangeiro com a intenção de ocasionar atos típicos de guerra contra o Brasil ou invasão ao território pátrio, a que se denomina como "atentado à soberania". Logicamente, os bloqueios e interdições das rodovias federais promovidas pelos caminhoneiros não se amoldam ao tipo penal em apreço.

"Atentado à integridade nacional
Art. 359-J. Praticar violência ou grave ameaça com a finalidade de desmembrar parte do território nacional para constituir país independente:
Pena – reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos, além da pena correspondente à violência."

Nesse caso, o tipo define "atentado à integridade nacional" como o ato de o agente realizar violência ou grave ameaça com o objetivo de desmembrar parte do território brasileiro para em seguida criar uma nação soberana. Da mesma forma, as interdições e bloqueios nas estradas das diversas regiões do país após o resultado das eleições não possuem a finalidade de desintegrar o espaço territorial pátrio, de modo que não se tipifica ao delito em comento.

"Espionagem
Art. 359-K. Entregar a governo estrangeiro, a seus agentes, ou a organização criminosa estrangeira, em desacordo com determinação legal ou regulamentar, documento ou informação classificados como secretos ou ultrassecretos nos termos da lei, cuja revelação possa colocar em perigo a preservação da ordem constitucional ou a soberania nacional:
Pena – reclusão, de 3 (três) a 12 (doze) anos"

O delito de "espionagem" ocorre quando o agente, ilegalmente, disponibiliza a governo estrangeiro, a seus funcionários ou a organização criminosa de outro país objeto informativo ou dados classificados pela lei como secretos ou ultrassecretos, cuja divulgação tenha capacidade de pôr em risco a ordem constitucional ou a soberania brasileira. Igualmente, os bloqueios e interdições nas rodovias praticados pelos caminhoneiros não se amoldam ao tipo penal supramecionado.

"Abolição violenta do Estado democrático de Direito
Art. 359-L. Tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais:
Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, além da pena correspondente à violência."

Merece destaque o delito de "abolição violenta do Estado Democrático de Direito". Essa figura típica ocorre quando o agente envida esforços, mediante o uso de violência ou grave ameaça, para abolir o Estado Democrático de Direito, quer obstando ou dificultando o livre desempenho dos Poderes Executivo, Legislativo ou Judiciário pelas respectivas autoridades competentes. O tipo penal é expresso ao exigir o "emprego de violência ou grave ameaça" como mecanismo vulnerador do Estado Democrático. O vocábulo "violência", do latim violentia, significa o ato de força física ou material, a impetuosidade ou a brutalidade contra o corpo da vítima, ou seja, consiste na ação ou uso da força, praticadas na intenção de um objetivo determinado, o qual não seria alcançado sem ela. Dessa forma, a violência é uma espécie de coação ou de constrangimento posto em prática para vencer a capacidade de resistência de outrem mesmo contra a sua vontade [2]. Já a expressão "grave ameaça" significa intimidar ou atemorizar uma pessoa de maneira séria e preocupante por meio de fato, ação, gesto ou palavras [3]. Nesse caso, a grave ameaça tende a criar no espírito da vítima o fundado receio de sofrer iminente e grave mal, seja de ordem física ou moral, injusto ou não, à sua pessoa ou a terceiros, tornando-se idônea para paralisar a reação contra o agente [4].

Como se vê, a utilização de violência ou grave ameaça pelos agentes constitui meio essencial para a configuração do tipo. Ou seja, não basta a tentativa indireta ou implícita de abolir o Estado democrático de Direito, de impedir ou restringir o exercício dos poderes constitucionais, visto que o meio adotado para tanto deve ser necessariamente a violência ou a grave ameaça, de modo que meios pacíficos não se subsomem ao tipo em análise.

Considerando que os bloqueios e interdições nas rodovias federais se materializaram mediante o estacionamento de veículos em vias públicas, ou seja, obstando-se o trânsito de pessoas e bens, não houve o emprego de violência ou grave ameaça, operando de maneira pacífica. Assim, o fato de obstruir rodovias federais contra o resultado das eleições, por si só, não se ajusta ao tipo penal de "abolição violenta do Estado democrático de Direito".

"Golpe de Estado
Art. 359-M. Tentar depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente constituído:
Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 12 (doze) anos, além da pena correspondente à violência."

O delito de praticar "golpe de Estado" consiste na ação do agente de empenhar ou procurar destituir, mediante violência ou grave ameaça, o governo constituído de maneira válida e regular, transgredindo, por consequência, o ordenamento jurídico. O tipo penal é expresso ao exigir que a tentativa de deposição se materialize "por meio de violência ou grave ameaça". O vocábulo "violência", do latim violentia, traduz-se no ato de força física ou material, a impetuosidade ou brutalidade contra o corpo da vítima, isto é, consiste na ação ou uso da força, praticadas na intenção de um objetivo determinado, o qual não seria alcançado sem ela.

Dessa forma, a violência é uma espécie de coação ou de constrangimento posto em prática para vencer a capacidade de resistência de outrem mesmo contra a sua vontade [5]. Já a expressão "grave ameaça" significa intimidar ou atemorizar uma pessoa de maneira séria e preocupante por meio de fato, ação, gesto ou palavras [6]. Nesse caso, a grave ameaça tende a criar no espírito da vítima o fundado receio de sofrer iminente e grave mal, seja de ordem física ou moral, injusto ou não, à sua pessoa ou a terceiros, tornando-se idônea para paralisar a reação contra o agente [7].

Igualmente, as paralisações e bloqueios nas diversas rodovias do país não se deram por meio de violência ou grave ameaça, uma vez que se limitaram a estacionar caminhões ao longo das vias públicas, impedindo o trânsito dos demais veículos, de modo que a conduta não se ajusta ao crime de "golpe de Estado", figura típica prevista na Lei nº 14.197 de 2021.

"Interrupção do processo eleitoral
Art. 359-N. Impedir ou perturbar a eleição ou a aferição de seu resultado, mediante violação indevida de mecanismos de segurança do sistema eletrônico de votação estabelecido pela Justiça Eleitoral:
Pena – reclusão, de 3 (três) a 6 (seis) anos, e multa."

O delito de "interrupção do processo eleitoral" ocorre quando o agente obsta ou embaraça a eleição ou a verificação do pleito, por meio do desrespeito ou transgressão indevida aos mecanismos de segurança do sistema eletrônico de votação instituído pela Justiça Eleitoral. Logicamente, o bloqueio de rodovias federais como protesto ao resultado da eleição para presidente da República não se amolda ao crime em apreço.

"Violência política
Art. 359-P. Restringir, impedir ou dificultar, com emprego de violência física, sexual ou psicológica, o exercício de direitos políticos a qualquer pessoa em razão de seu sexo, raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional:
Pena – reclusão, de 3 (três) a 6 (seis) anos, e multa, além da pena correspondente à violência."

O crime de "violência política" consiste em coibir, obstar ou opor-se, mediante violência física, sexual ou psicológica, o ato de exercer direitos políticos a qualquer indivíduo em virtude de seu sexo, raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. De igual modo, o bloqueio a estradas federais pelos manifestantes contra o resultado das eleições não configura o delito em comento.

"Sabotagem
Art. 359-R. Destruir ou inutilizar meios de comunicação ao público, estabelecimentos, instalações ou serviços destinados à defesa nacional, com o fim de abolir o Estado Democrático de Direito:
Pena – reclusão, de 2 (dois) a 8 (oito) anos."

Por último, o crime de "sabotagem" consiste em causar a perda ou danificar instrumentos de comunicação coletiva, estabelecimentos, infraestrutura ou serviços destinados à defesa da pátria, tendo por objetivo aniquilar o Estado Democrático de Direito. A sabotagem, do francês sabotage, significa o ato ou efeito de danificar ou impedir o regular funcionamento dos meios de comunicação disponibilizado ao povo [8], estabelecimentos, instalações ou atividades atribuídas à defesa nacional, com a finalidade específica de eliminar o Estado Democrático. Como se vê, os protestos ilegais dos caminheiros contra o resultado das eleições não se subsomem ao delito em comento, porquanto ausente os seus pressupostos legais.

Considerando que os tipos penais requerem o atendimento de requisitos objetivos e subjetivos, o ato de os caminhoneiros bloquearem rodovias federais não configura crime contra o Estado Democrático de Direito, visto que as paralisações são pacíficas, destituídas de violência ou grave ameaça, de modo que as condutas não se subsomem aos delitos constantes na Lei nº 14.197 de 2021.

Todavia, os bloqueios e obstruções das rodovias federais podem configurar, em tese, delito contra a incolumidade pública, previsto no artigo 262 do Código Penal, com a rubrica de "atentado contra a segurança de outro meio de transporte". O texto possui a seguinte redação[9]:

"Art. 262 – Expor a perigo outro meio de transporte público, impedir-lhe ou dificultar-lhe o funcionamento:
Pena – detenção, de um a dois anos.
§ 1º – Se do fato resulta desastre, a pena é de reclusão, de dois a cinco anos.
§ 2º – No caso de culpa, se ocorre desastre:
Pena – detenção, de três meses a um ano.”

Segundo Heleno Cláudio Fragoso, os crimes contra a incolumidade pública são infrações penais em que a ação delitiva atinge diretamente um bem ou interesse coletivo, isto é, a segurança de todos os indivíduos ou de um número indeterminado de pessoas. A repressão penal tem por escopo garantir a segurança dos cidadãos contra danos físicos pessoais (vida e saúde), patrimoniais (bens provenientes por obra do ser humano) [10] e prestacionais (direitos decorrentes da prestação dos serviços públicos, de essencial importância geral).

No crime de "atentando contra a segurança de outro meio de transporte", o bem jurídico tutelado é a incolumidade pública, especialmente a segurança dos meios de transportes, sejam eles de natureza pública ou explorados por concessionarias desse serviço público. A conduta incriminada abarca tanto "expor a perigo" quanto "impedir ou dificultar o funcionamento" de meio de transporte público terrestre [11] (artigo 262 c/c artigos 260 e 261, do Código Penal).

Assim, a despeito de os bloqueios ou interdições de rodovias federais como protesto ao resultado das eleições, por si sós, não se ajustar a nenhum dos "crimes contra o Estado Democrático de Direito" — oriundos da Lei nº 14.197 de 2021 — a conduta pode, em tese, configurar o delito de "atentado contra a segurança de outro meio de transporte", previsto no artigo 262 do Código Penal.


[1] BRASIL. Lei nº 14.197, de 1º de setembro de 2021. Acrescenta o Título XII na Parte Especial do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), relativo aos crimes contra o Estado Democrático de Direito; e revoga a Lei nº 7.170, de 14 de dezembro de 1983 (Lei de Segurança Nacional), e dispositivo do Decreto-Lei nº 3.688, de 3 de outubro de 1941 (Lei das Contravenções Penais). Acesso em 01-11-2022. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2021/Lei/L14197.htm#art2

[2] SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico. 26ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 1489.

[3] HOUAISS. Dicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009, p. 113.

[4] HUNGRIA, NÉLSON; FRAGOSO, Heleno Cláudio. Comentários ao Código Penal. Volume VII. 4ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1980, p. 54-55.

[5] SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico. 26ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 1489.

[6] HOUAISS. Dicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009, p. 113.

[7] HUNGRIA, NÉLSON; FRAGOSO, Heleno Cláudio. Comentários ao Código Penal. Volume VII. 4ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1980, p. 54-55.

[8] FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário da língua portuguesa. 1ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1975, p. 1256.

[9] BRASIL. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Acesso em 02-11-2022. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm

[10] FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de Direito Penal. Parte Especial. Volume II. 5ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1986, p. 149-150.

[11] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. Parte Especial 4. 9ª ed. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 303

Autores

  • é doutorando em Direito Público na Universidade de Coimbra (Portugal), mestre em Direito Constitucional pela Universidad de Castilla-La Mancha (Espanha) e membro da International Association of Constitutional Law (IACL) e do Instituto Brasileiro de Direito Constitucional (IBDC).

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