Limite Penal

Quando o defensor e a tecnologia viram o jogo no flagrante

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4 de novembro de 2022, 13h19

1) Dominar o Contexto. Em um final de tarde ameno da primavera de Santa Catarina, o advogado criminal André B. recebeu a ligação de sua antiga aluna chamada Joana que, aos prantos, disse ter seu pai (Carlos) sido preso sob a acusação de roubo (dinheiro e celular) quando a vítima Bruna adentrava em seu veículo estacionado na via pública. Após conversar e acalmar Joana (a filha de Carlos, o conduzido), obteve a informação de que, em seguida, a Polícia Militar montou barreiras, parando diversos veículos com as mesmas características do utilizado pelo assaltante. Cada ocupante dos veículos com características similares tinha a foto enviada ao policial que estava com a vítima. A foto de Carlos foi reconhecida por Bruna, motivo pelo qual estava na Delegacia para lavratura do flagrante por roubo qualificado (a vítima foi rendida com uma arma). Antes de sair do escritório, André B. consultou quem era o Delegado de Polícia de Plantão na Central de Flagrantes, preparando os documentos necessários à intervenção imediata. Você pode imaginar qual documento, além da Procuração, André B. preparou? Veremos em seguida.

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2) Abordagem Diferenciada. Ao chegar à Delegacia, após se apresenta à autoridade policial, foi se entrevistar reservadamente com Carlos (o conduzido), que chorava copiosamente e bradava por "inocência". Disse que nunca havia se envolvido em nenhuma ocorrência policial. Exercendo o papel de advogado, pediu para o cliente respirar, tomar um copo d'água e narrar o acontecido (estava voltando do trabalho, vindo de outro ponto da cidade; nada sabe do ocorrido), André B., então, perguntou sobre o celular de Carlos que, atônito, disse: "Doutor, estou sendo acusado de roubo! O que o meu celular tem a ver com isso?". André B. explicou que era importante, no que Carlos respondeu que o aparelho fora apreendido pelos policiais. Seguindo a sua estratégia, André B. pediu que Carlos assinasse a procuração e a autorização para que o fosse extraída a "Linha do Tempo" do seu aparelho, já que o registro havia sido feito com um e-mail "google". Ainda sem entender muito bem o que pretendia o advogado, Carlos lançou as assinaturas nos documentos. André B. informou ao conduzido que retornaria.

3) Virando o Jogo, com Tecnologia. André B. dirigiu-se ao delegado Leonardo, cujo perfil já conhecia, isto é, um profissional preocupado em estabelecer os fatos e não em encontrar um culpado qualquer, tendo exposto o pedido para que a autoridade policial extraísse os dados da linha de tempo do celular apreendido com o conduzido. Para encurtar o desfecho, de posse da autorização, subscrita pelo conduzido e por André B. (o advogado), o delegado Leonardo identificou a localização do aparelho no momento do crime. Realmente o aparelho estava noutro lugar da cidade. Como a linha de tempo pode ser editada, o delegado Leonardo verificou a localização no horário do roubo, determinando diligência de constatação nas câmeras de segurança dos condomínios próximos à avenida que, ao tempo do fato, o smartphone estava. O resultado foi a aquisição de imagens do veículo e do condutor Carlos, excluindo a responsabilidade penal. As imagens demonstraram que Carlos estava noutro ponto da cidade. O que seria um flagrante, transformou-se em um Boletim de Ocorrência.

4) Vantagem Competitiva. O diferencial do advogado André B. situa-se na aquisição de habilidades digitais aptas a conferir "vantagem competitiva" no Mercado da Defesa (a advocacia privada criminal é um "mercado" no qual os fornecedores advogados disputam consumidores arguidos), em face da incorporação, em sua atuação cotidiana, das "novidades tecnológicas" que, no fundo, deveriam ser o dever de qualquer defensor atuante no contexto digital atual. Se fosse um advogado analógico, pensando linearmente, talvez estivesse focado na preparação da Audiência de Custódia ou, então, tentaria impugnar o dito reconhecimento que, embora ilegal (STJ, HC 772.253, ministro Antonio Saldanha Palheiro. Ação impetrada pela Defensoria do Estado do Rio de Janeiro; defensor Eduardo Newton), ainda conta com poucas chances de êxito quando do flagrante. O desfecho do caso somente foi possível porque André B. dominava habilidades (skills) e ferramentas tecnológicas disponíveis e, também, o Delegado Leonardo adotou postura democrática. Este é um relato baseado em "fatos reais" apto à demonstração da urgente e necessária atualização do contexto tecnológico que estamos inseridos e dos riscos à reputação e à liberdade decorrentes da desatualização digital ainda prevalecente da maioria dos agentes procedimentais. Há um último desdobramento.

5. Quanto vale o desfecho? Ao apresentar o "valor", dos honorários ao cliente, o "conduzido já liberto" achou a "conta salgada", dizendo que "nem processo teve Doutor"! Talvez por desconhecer as práticas de flagrante delito, do risco a que estava exposto e da performance vencedora, Carlos (o conduzido liberto) não tenha percebido a magnitude da atuação de André B (um Game-Changer, conforme apontamos com Aury Lopes Jr e Daniel Kessler de Oliveira aqui). Por sorte, Joana, a filha de Carlos e formada em Direito, soube valorizar a estratégia digital "vencedora" de André B., verdadeiro "plot point" (ponto de virada aqui) rumo ao desfecho favorável obtido. Ficou a lição de assinar o contrato de honorários junto com a procuração, evitando discussões posteriores. Contrato sempre reduz a incerteza e controvérsias futuras.

Consulte sua linha do tempo e bom final de semana.

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