Limite Penal

Como inverter a linearidade acusatória: o plot point na interação narrativa

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17 de março de 2017, 8h00

Spacca
Quem é o protagonista do processo-crime? A resposta intuitiva à primeira pergunta é a de que é o acusado. Nem sempre. Em alguns casos, o foco principal pode estar na vítima, em suas qualidades ou defeitos, bem assim em jogadores processuais externos, dentre eles a mídia. Na leitura que se deve fazer do jogo processual singularizado[1], a saber, a partir do julgador, do acusador, defensor, acusado e vítima, será necessário estabelecer os que detêm poderes processuais e qual o foco de atuação: a narrativa da conduta se dirige a quem?

Em princípio, é o julgador que deve ser convencido. A questão a seguir é: qual o mapa mental do julgador. Diretamente: como ele pensa, quais seus autores prediletos e quais suas recompensas no contexto proposto — que podem ser da ordem de tempo, prestígio, aprovação de diversos outros atores ou instâncias, ideológicas, e até mesmo religiosas. Trata-se de verdadeiros hábitos mentais, percursos percorridos conforme aquelas premissas conscientes e inconscientes.

A comprovação — no contexto do processo — da conduta narrada na inicial demanda a superação do obstáculo probatório e, no embate entre acusação e defesa, localizam-se regras formais e informais de resolução dos respectivos impasses de sentido.

O processo penal é sinônimo de enfrentamento. Sem enfrentamento, não há processo em contraditório e, por via de consequência, inexiste processo democrático. Nem sempre os jogadores terão as mesmas capacidades e recompensas. Mas, sem um mínimo de luta pela vitória, o processo como procedimento em contraditório (Fazzalari[2]) se transforma em simulacro do que poderia ser.

A postura e a tática argumentativa variam justamente porque a acusação deve expor o trajeto que pretende comprovar, antecipando os passos principais, sem prejuízo de guardar trunfos e cartas probatórias de valor para momentos adequados. A defesa, por sua vez, poderá adotar táticas de enfrentamento bem como poderá, também, flanquear, costurando incertezas na busca da instauração da dúvida razoável.

O resultado de um processo penal não significa a recuperação dos fatos in natura, dado que o discurso sobre os fatos pretéritos acontece no presente, ou seja, lança-se para o contexto atual a narrativa histórica[3], que é sempre eclipsada num viés — o olhar do que narra é construção, porque, além de carregado de subjetividade, é impossível que apreenda o todo. Longe de ser o fim, definitivo, o resultado abre-se para um futuro não sabido, em que a defesa poderá, no caso de condenação, manejar revisão criminal, enquanto a acusação só pode lamentar a perda de uma chance probatória a tempo e modo adequados. A decisão penal é a resolução do caso com estrutura de ficção, estabelecida pelo narrador público (julgador), que estabelecerá a versão oficial do acontecimento, sem que possa alterar o passado — a história do processo[4]. A vida continua e, mesmo que a prova seja convincente, nunca — nunca mesmo — se saberá como — e às vezes nem se — tudo aconteceu. Quem já foi acusado sabe que os deslizamentos probatórios conduzem a debate de questões aparentemente irrelevantes, por exemplo, as qualidades e comportamentos da vítima ou do acusado. Ademais, um detalhe pode modificar o julgamento (efeito borboleta), principalmente num contexto em que a presunção de inocência, garantia constitucional/convencional, é subvertida na intimidade do mapa mental dos jogadores previamente convencidos da culpa.

A narrativa acusatória parte de um conforto probatório advindo da investigação preliminar e da decisão que reconhece as condições para o exercício da ação, especificamente a justa causa (confirmation bias). Logo, para a acusação, a corroboração linear da investigação é a tática dominante. Junte-se a esse benefício da linearidade da corroboração o do viés cognitivo dos jogadores, que tende a se inclinar para a presunção da culpa. Diz-se desse estado de mentalidade inquisitório e, mesmo, toda a estrutura é montada para que o produto do serviço a ser entregue, o produto bem-sucedido, seja a condenação; a absolvição parece ter sido um insucesso dos operadores do sistema — um dia ruim de expediente, uma falha da engrenagem, quando justamente o contrário é o significado de se pagar o preço para que um inocente não esteja preso. É esse o contexto em que a defesa procura proporcionar um ponto de virada (plot point), a partir do qual a narrativa acusatória se perde na coerência. É justamente aí, no momento em que a narrativa desalinha, ou seja, separa-se da linha da coerência e do provável, que opera o mecanismo de giro cognitivo. A defesa precisa de um evento que transforme a corroboração convergente em divergente. O evento precisa abalar as coordenadas capazes de manter a captura cognitiva do julgador.

A forma com que a defesa tende a operar demanda o preenchimento de conteúdo, no qual o protagonismo do jogador deve — e precisa — fazer a diferença. Jogadores profissionais precisam dominar as fórmulas de montagem dos discursos, sob pena de perderem o momento em que a narrativa pode proporcionar reviravoltas. A preclusão do momento certo de rompimento da narrativa acusatória faz com que a consonância cognitiva prevaleça[5]. O que conta em uma condenação/absolvição é o efeito cognitivo da narrativa coesa. A argumentação jurídica, nesse pensar, deve operar pela estrutura lógica do discurso capaz de (des)arrumar a linearidade, a ordem e a coesão aparentes da narrativa acusatória. Sem uma estratégia bem definida, com início, meio e fim pretendidos, opera-se com a sorte. É possível preparar-se melhor e antecipar as expectativas de comportamento dos jogadores processuais singulares, prevendo o que pode convencer o julgador singularizado (o juiz do caso), e não o juiz que queremos/imaginamos. Saber quem você deve convencer e como ele pensa, portanto, deve ser o ponto de partida da estratégia processual, ciente, ainda, de que outros jogadores podem roubar a cena.


[1] MORAIS DA ROSA, Alexandre. Guia do Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos. Florianópolis: Empório do Direito, 2017.
[2] FAZZALARI, Elio. Istituzioni di Diritto Processuale. Padova: CEDAM, 1994, p. 85-86. Consultar: GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica Processual e Teoria do Processo. Rio de Janeiro: AIDE, 2001, p. 102-132; CATTONI, Marcelo. Direito Constitucional. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002; LEAL, André Cordeiro. O contraditório e a fundamentação das decisões. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002; LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria processual da decisão jurídica. São Paulo: Landy, 2002; ZANETI JÚNIOR, Hermes. Processo Constitucional: o modelo constitucional do processo civil brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007; REZENDE, Marcos. A contribuição da teoria estruturalista para o processo constitucional no Estado Democrático de Direito brasileiro – Reflexões sobre a crítica de Hermes Zaneti Júnior à teoria de Fazzalari. Revista Brasileira de Direito Processual: RBDPro. – ano 22, n. 87, p. 31-59, jul/set 2014; BARROS, Flaviane de Magalhães. O processo, a jurisdição e a ação sob a ótica de Elio Fazzalari. Virtuajus, a. 2, n. 1, agosto 2003.
[3] LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal. São Paulo: Saraiva, 2017; MARTINS, Rui Cunha. O paradoxo da demarcação emancipatória. Revista Crítica de Ciências Sociais, n. 59, fev. 2001, p. 37-63. A reinvenção da ideia de fronteira é fundamental para que a crítica possa ser realizada na fronteira e sua mobilidade constitutiva, isto é, como uma questão de heteronímia posicionar. Conferir: MARTINS, Rui Cunha. O Método da Fronteira. Coimbra: Almedina, 2008.
[4] STRECK, Lenio. O que é isto – decido conforme minha consciência? Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015; TRINDADE, André Karam. “A ‘doutrina’ de Paolla Oliveira e a lição de Julia Roberts. In: MORAIS DA ROSA, Alexandre; TRINDADE, André Karam. Precisamos falar sobre Direito, Literatura e Psicanálise. Lisboa/Florianópolis: Rei dos Livros/Empório do Direito, 2015, p. 81-84.
[5] CALLEGARO, Marco Montarroyos. O novo inconsciente. Porto Alegre: Artmed, 2011, p. 93; GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. lPrisões cautelares, confirmation bias e o direito fundamental à devida cognição no processo penal. Revista Brasileira de Ciências Criminais, vol. 117, ano 23, p. 263-286, São Paulo: RT, nov-dez, 2015, p. 276: "Basicamente, a teoria da dissonância cognitiva trata com relações entre objetos e preferências, a partir do quadro de experiência acumulado pelo intérprete. Um evento que confirma as pressuposições e que faz parte, assim, do conjunto de expectativas do intérprete produz um sentimento de consonância. Quando alguém, por exemplo, encosta sua mão no fogo e queima, ocorre uma relação de consonância entre o intérprete e aquela situação vivida. Entretanto, quando, por exemplo, encosta a mão no fogo e por algum motivo não se queima, ocorre uma situação de dissonância, geradora de intenso mal-estar, uma vez que o evento acaba fraturando o conjunto de experiências acumuladas pelo sujeito, que pressuporiam um acontecimento diverso. Tem-se então uma relação dissonante".

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    é juiz em Santa Catarina, doutor em Direito pela UFPR e professor de Processo Penal na UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) e na Univali (Universidade do Vale do Itajaí).

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