Diário de Classe

Seja antropofágico, seja herói!

Autores

  • Luísa Giuliani Bernsts

    é doutoranda e mestre em Direito Público (Unisinos) bolsista Capes/Proex membro do Dasein — Núcleo de Estudos Hermenêuticos (Unisinos) e do grupo de pesquisa Bildung — Direito e Humanidades (Unesa) e professora da Faculdade São Judas Tadeu (SJT-RS).

  • Luã Nogueira Jung

    é doutor e mestre em Filosofia pela PUC-RS pós-doutorando em Direito Público (Unisinos) professor do PPGD Unedsa-RJ e membro do Dasein — Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

28 de maio de 2022, 8h03

Esta coluna é uma homenagem aos movimentos de vanguarda que tiveram suas manifestações nas artes — pintura, escultura, literatura, música, dança, teatro, cinema, fotografia, história em quadrinhos, jogos e arte digital — e, em especial, à Semana de Arte Moderna de 1922. E, apesar do título, com o qual pretendemos apontar a dimensão e relevância que determinados movimentos sócio-culturais tomam, ela não é sobre Hélio Oiticica. Contudo, é pertinente mencionarmos a sua obra. Afinal, dela também se originou um dos movimentos mais antropofágicos que vivenciamos nos últimos cem anos. Lembremos que um pouco antes de Caetano e Gil, veio a Tropicália de Hélio (1967). Também o trazemos no título porque ser antropofágico, no sentido que tentaremos apresentar nessa coluna, é ser marginal. E ser marginal, como ficou "iconizado" por ele, é uma atitude de herói [1].

Contudo — e sobretudo — essa também é uma coluna que fala sobre teoria do Direito, especialmente centrada numa perspectiva waratiana. De tempos em tempos homenageamos o professor Luis Alberto Warat neste espaço como um "herói" da luta contra o senso comum teórico [2] e, se pensarmos sobre a repercussão do movimento antropofágico na ciência jurídica, precisamos falar de dois temas abordados por ele, que são o direito e literatura e também sua proposta metodológica. Cumpre salientar os esforços de Warat em pavimentar a via dos estudos transdisciplinares para a construção do pensamento crítico, sendo ele um dos precursores deste movimento em solo brasileiro [3]. Conhecer o percurso e os pressupostos da transdisciplinaridade a partir do professor argentino é esclarecedor aos argumentos levantados em prol da antropofagia.

Isso fica mais claro a partir da leitura do paradigmático "A Ciência Jurídica e seus Dois Maridos" [4]. Quando percebemos que, desde sua estruturação, o tema é revolucionário, passamos a compreender que a própria forma como seus pensamentos são apresentados já combate a dogmática jurídica tradicional. Não lemos somente provocações a partir de uma obra literária/cinematográfica, mas sim uma espécie de articulação de ideias como que em um sedutor diário transformado em obra literária ou, no caso, jurídica. Com base na obra de Jorge Amado, Warat metaforiza as duas faces da ciência jurídica. De um lado, Teodoro, enclausurado em dogmas racionais, e, de outro, Vadinho, símbolo do desejo marginal (sic). Sua questão é uma: seria impossível que um resistisse sem a projeção do outro neste eterno movimento de ambiguidade promovido pela interrelação entre dois "modelos de desejo".

Em nenhum momento da obra o termo "antropofagia" foi utilizado, mas é de forma muito semelhante às reivindicações desse movimento que nos parecem ecoar os escritos waratianos. Para afirmar isso, primeiro, como bons hermeneutas, precisamos (re)conhecer o projeto antropofágico, que é bandeira e justificação do movimento modernista no Brasil. Bandeira porque os artistas que vocalizavam os princípios deste movimento defendiam a possibilidade da construção de um nacionalismo crítico a partir da ideia de liberdade fundada nas experiências europeias da época. Justificativa, no sentido de que somente a partir da devolução de algo inteiramente brasileiro é que se construiria esse nacionalismo. Esse foi um período frutífero de produção literária e artística e representa uma ruptura paradigmática com a forma de se conceber e expressar a arte e, também por isso, pode-se dizer, com o formalismo no mais amplo sentido.

A arte liberta dos padrões e institucionalidades como é concebida hoje e referida, por exemplo, nos estudos em direito e literatura, é herdeira desse movimento. É esclarecedor o discurso de abertura da Semana de Arte Moderna proferido por Graça Aranha [5] acerca do tema. Ele, ao apresentar os ideais modernistas, desvincula a arte da beleza, visto que o belo está fundado em convenções forjadas acerca de conceitos sobre os quais não se pode ter uma noção definitiva e, por isso, não é a arte. A arte, para ele, é "É a realização da nossa integração no Cosmos pelas emoções derivadas dos nossos sentidos, vagos e indefiníveis sentimentos que nos vêm das formas, dos sons, das cores, dos tatos, dos sabores e nos levam à unidade suprema com o Todo Universal".

Essa é somente uma de tantas concepções de arte possíveis e pode ser utilizada no contexto destas reflexões — nas quais procuramos brevemente apresentar o modernismo e suas possíveis relações com o direito — como referencial da própria atividade antropofágica, ou, nas palavras de Warat, transdisciplinar. Justamente porque arte é a representação do sentir humano e a concessão à vagueza e imprecisão, é que ela pode contribuir no processo de existencializar o Direito [6], cotidianamente institucionalizado e objetificado. Seja pela ficção, seja pelo realismo, é por enxergarmos na arte uma parcela daquilo que nós somos, e do o que o direito também é, que se concebe esse processo — a antropofagia — a partir do qual algo é engolido e é devolvida dialeticamente uma síntese, ou, na linguagem hegeliana, suprassunção (Aufhebung): o movimento de superar guardando.

Sem receber esse nome, contudo, a metodologia waratiana é antropofágica. Porque é prenhe de arte, psicanálise e demais áreas do saber. Tão inovadora que de suas incursões por territórios desconhecidos muitos outros impulsos surgiram. E, assim como o modernismo transformou a cena para inspirar a antropofagia do tropicalismo, com a qual iniciamos este texto, Warat insuflou o senso crítico que permitiu a antropofagia operada pela Crítica Hermenêutica do Direito de Lenio Streck, que articula Gadamer, Heidegger e Dworkin na construção de uma teoria brasileira, para problemas do Brasil. Este é só um exemplo. Tantas outras dimensões do mundo da vida devem ser antropofágicas, principalmente quando falamos do Direito. No potencial desses processos reflexivos acerca da ciência jurídica é que acreditamos.

Por outro lado, cuidado: antropofagia não pode ser autofagia. O ímpeto transdisciplinar no Direito não pode implicar a ruptura de sua autonomia institucional e teórica. Contemporaneamente, como aponta Streck em diversos textos, constatamos a crescente predação do discurso jurídico por diferentes agentes: a moral, a economia, a política e, pasmem, a religião. Nesse sentido, temos muito o que aprender com a arte. Afinal, o ideal antropofágico do modernismo e a assimilação de múltiplas correntes tinham como objetivo a formação de uma identidade cultural autônoma. Basta levar em consideração, nesse sentido, que os maiores expoentes do movimento dão primazia às formas de vida regionais, apesar de tantas influências externas que alimentaram a sua produção.

Para dialogar acerca dos reflexos do modernismo e da antropofagia da arte pelo discurso jurídico, convidamos todos e todas que também acreditam nas possíveis contribuições da arte ao direito a participar do I SEMINÁRIO INTERNACIONAL DE DIREITO E LITERATURA DA UNESA: O CENTENÁRIO DA SEMANA DE ARTE MODERNA E A ANTROPOFAGIA ARTÍSTICA DO DIREITO. O evento ocorrerá entre os dias 14 e 15 de junho de forma virtual e contará com a presença de ilustres professores, dentre eles professor doutor Marcílio Franca Filho, professor doutor Ricardo Timm, professor doutor Lenio Streck, professor doutor Marcelo Cattoni, professora doutora Clarissa Tassinari, professor doutor Eduardo Val, professora doutora Mariana Weigert, professora doutora Hilda Bentes, professor doutor Luis Rosenfield, professora doutora Eliane Costa e professor doutor Juan Carlos Balerdi. Maiores informações, bem como inscrições gratuitas na modalidade apresentação de trabalhos e ouvintes, podem ser realizadas aqui.

 


[1] Vale mencionar que a primeira geração do modernismo (1922 – 1930) recebe a alcunha de a fase heróica.

[2] Para entender melhor o conceito de senso comum teórico sugerimos: https://www.conjur.com.br/2021-nov-06/diario-classe-senso-comum-teorico-estimulo-pensamento-critico

[3] TRINDADE, André; BERNSTS, Luísa. O estudo do direito e literatura no Brasil: surgimento, evolução e expansão. In: Anamorphosis, v. 3, nº 1, 2017. Disponível em https://periodicos.rdl.org.br/anamps/article/view/326.

[4] WARAT, Luis Alberto. A ciência jurídica e seus dois maridos. Santa Cruz do Sul: Fisc, 1985.

Nota inconfidencial: a obra foi datilografada e traduzida do portunhol para o português pelo professor Lenio Streck — então seu orientando —, a maior parte na casa da rua Luís Pasteur, no bairro Trindade, em Florianópolis. Parte do livro foi escrita em pequenos pedaços de papel de pão e folhas de bloquinhos. Datilografados em uma velha Triumph.

Autores

  • é doutoranda e mestra em Direito pela Unisinos (RS), bolsista Capes/Proex e membro do Dasein — Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

  • é professor do programa de pós-graduação em Direito da UNESA; mestre e doutor em Filosofia (PUC-RS); pós-doutorando em Direito Público (UNISINOS); membro do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos; e advogado.

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