Diário de Classe

Não devemos deixar a literatura em paz!

Autor

  • Luísa Giuliani Bernsts

    é doutoranda e mestre em Direito Público (Unisinos) bolsista Capes/Proex membro do Dasein — Núcleo de Estudos Hermenêuticos (Unisinos) e do grupo de pesquisa Bildung — Direito e Humanidades (Unesa) e professora da Faculdade São Judas Tadeu (SJT-RS).

7 de novembro de 2020, 8h01

As incursões possíveis entre o Direito e outras áreas do saber são muitas e não são novidade. Acreditar que o outro pode contribuir com a nossa formação é uma postura que transcende o labor acadêmico. Essa, também, é uma premissa dos estudos que apostam na interdisciplinaridade. Escolhi seguir meus estudos nessa área desde que percebi que na literatura encontramos a mais complexa e clara expressão do sujeito e essa, talvez, seja sua grande contribuição para o mundo.

Lemos e ouvimos relatos desde jovens. Conhecemos o mundo a partir das histórias que nos contam. Quando crianças, vivemos em uma caverna, como no mito do Platão. No segundo passo, ao crescermos um pouco, aprendemos a literalidade das coisas. Somos como o canário do Machado de Assis. Essa construção não é minha. Aprendi com um dos meus orientadores, que provavelmente aprendeu com o seu orientador. E assim fui conhecendo o Direito. Pelas histórias.

Poderia abordar essa premissa a partir dos escritos de inúmeros autores estrangeiros, afinal o movimento denominado Direito e Literatura surgiu nos Estados Unidos e teve amplo impacto nas produções europeias. Contudo, tenho tentado reforçar a ideia de que temos, desde muito, uma produção nacional consistente em Direito e literatura no Brasil. Publiquei com o professor doutor André Karam Trindade o resultado de sua pesquisa na qual participei como bolsista e que se estruturou no sentido de comprovar esta hipótese [1].

É por isso que pretendo, com Warat e Lenio Streck, talvez a mais robusta das linhagens que promovem esses estudos interdisciplinares em solo brasileiro, responder à provocação de Rodrigo Diez Gargari [2], que assume o postulado de devemos deixar em paz à literatura. Do Dasein (Núcleo de Estudos Hermenêuticos), coordenado pelo professor Streck, saíram alguns dos grandes nomes que hoje promovem essa intersecção explorada por Warat nos anos 70. Entre eles, André Karam Trindade e Nelson Camatta Moreira, presidentes da RDL, com os quais tive o prazer de trabalhar.

No texto "Dejemos em paz a la literatura", que é de 2008, publicado na revista do Instituto Autónomo de México, Gargari alerta para o que chama de perigos de crermos que a literatura pode nos fazer melhores e aponta que, apesar de ser uma abordagem interessante, dadas as formalidades do Direito, a imaginação talvez não possa ser ensinada e, nem mesmo, um caminho adequado para aprimorar questões deficientes em órgãos públicos [3].

Nesse ponto em especial, trago como trunfo os ensinamentos da obra "A ciência jurídica e seus dois maridos". É um livro do Warat, genial e fundamental para quem quer estudar Direito e literatura no Brasil. Foi publicado em 1985 e aborda a questão da necessária consideração e superação do cartesianismo e dos dogmas racionalistas, representados em Teodoro, pelas contribuições da marginalidade reflexiva de Vadinho. Sendo a ciência jurídica resultante deste processo de (re)conhecimento e diálogo profundo dessas duas construções.

Volto às questões trazidas por Gargari. Ele não nega a falência de um modelo lógico de aplicação do Direito, muito pelo contrário. Assume que as teorias da argumentação e a sua variante da ponderação, seriam uma boa solução. Admite que, neste sentido, Direito e literatura se assemelham. Mas exclusivamente neste âmbito, em que ambas são formas dos homens narrarem os fatos. Defende, ainda, que a Constituição "contém mais princípios do que regras", mas que muitos juristas erram ao dar um salto da "hermenêutica e da argumentação jurídica" à literatura [4].

Acredito, sobre isso, contudo, no que ensina o professor Lenio Streck, que afirma que a literatura é capaz de existencializar o Direito, pela ficção ou pelo realismo, fazendo com que nossas certezas caiam por terra. Assim como com a crítica hermenêutica do Direito. Pois, ainda que o Direito trate de nossa relação com o mundo, a exemplo, a democracia, os direitos sociais, a cidadania: isso ocorre como uma conquista intermediada, também, pela literatura [5].

Essas são breves razões, das inúmeras possíveis, para que nós não deixemos a literatura em paz! Muito antes pelo contrário. Usemo-na, assim como a arte, com sabedoria, para construirmos uma comunidade de intérpretes críticos capazes de analisar e transformar o mundo e, com isso, o Direito. Menciono, aqui, por fim, o brilhante professor José Calvo González, que nos deixou neste ano. Por sua grandeza e produção em Direito e literatura, já foi homenageado aqui na ConJur [6] pelo professor Arnaldo de Moraes Godoy. E está sendo, pela RDL, no IX Colóquio Internacional de Direito e Literatura [7], que será realizado nos dias 6, 7, 13 e 14 de novembro.

Serão as contribuições e provocações de Calvo González que guiarão o evento que, neste ano, será virtual e gratuito [8]. Os contornos de sua produção acerca da narratividade do Direito, dada a impossibilidade de o Direito ser extraficcional, darão escopo a essa homenagem. Estudiosos, pesquisadores e interessados nas discussões e reflexões sobre Direito e literatura, em torno da temática "As narrativas de um Direito curvo: uma homenagem a José Calvo González", vão se encontrar. Estaremos todos lá, reforçando o ideal de que podemos transformar a teoria do Direito a partir de reflexões propostas pela literatura e, por isso, não devemos deixá-la em paz!

 


[1] TRINDADE, André; BERNSTS, Luísa. O estudo do “direito e literatura no Brasil: surgimento, evolução, expansão. In: ANAMORPHOSIS – Revista Internacional de Direito e Literatura. V.3, n.1, 2017. Disponível em: < http://rdl.org.br/seer/index.php/anamps/article/view/326/0>

[2] GARGARI, Rodrigo Díez. (2008). Dejemos en paz a la literatura In: Isonomía – Revista de Teoría y Filosofía del Derecho, n. 29, 2008. Disponível em: < http://isonomia.itam.mx/index.php/revista-cientifica/article/view/241>

[3] GARGARI, Rodrigo Díez. (2008). Dejemos en paz a la literatura In: Isonomía – Revista de Teoría y Filosofía del Derecho, n. 29, 2008. Disponível em: < http://isonomia.itam.mx/index.php/revista-cientifica/article/view/241> p. 164.

[4] GARGARI, Rodrigo Díez. (2008). Dejemos en paz a la literatura In: Isonomía – Revista de Teoría y Filosofía del Derecho, n. 29, 2008. Disponível em: < http://isonomia.itam.mx/index.php/revista-cientifica/article/view/241> p. 172.

[5] STRECK, Lenio Luiz. A Literatura ajuda a existencializar o Direito. Entrevista cedida a Henriete Karam. : ANAMORPHOSIS – Revista Internacional de Direito e Literatura. V. 4, n. 2, jul-dez, 2018. Disponível em <http://rdl.org.br/seer/index.php/anamps/article/view/525>. 

[8] Acompanhe neste link: https://bit.ly/CIDIL.

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    é doutoranda e mestre em Direito Público (Unisinos/RS), membro do Dasein (Núcleo de Estudos Hermenêuticos), bolsista Capes PROEX e secretária administrativa da Rede Brasileira Direito e Literatura-RDL.

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