Opinião

A integridade do direito sancionador único e o artigo 337-F do Código Penal

Autores

  • José Gutembergue de Sousa Rodrigues Júnior

    é advogado associado do escritório Gonçalves Santos Advogados mestre em Ciência Política pela Universidade Federal de Campina Grande doutorando em Ciências Jurídicas pela Universidade Federal da Paraíba especialista em Direito Público membro do Grupo de Pesquisa Sistema de Justiça e Estado de Exceção da PUC-SP e pesquisador do Núcleo de Pesquisa de Interpretação e Decisão Judicial (Nupid).

  • Clara Skarlleth Lopes de Araújo

    é advogada juíza leiga do TJ-PB mestre em Ciência Política pela Universidade Federal de Campina Grande pós-graduada em Direito Constitucional pela Universidade Regional do Cariri ex-professora de Direito e Processo Penal da Universidade Regional do Cariri e membra do Grupo de Pesquisa Sistema de Justiça e Estado de Exceção da PUC-SP.

15 de maio de 2022, 11h14

Conforme mencionado recentemente pelo ilustre ministro aposentado do Superior Tribunal de Justiça Napoleão Maia Filho, a ideia de que a lei mais benigna opera efeitos sobre os fatos pretéritos (retroatividade), associada à de que a lei mais favorável tem eficácia mesmo depois de revogada (ultratividade) é um dos mais antigos dogmas do Direito Sancionador e está expletivamente inscrito como direito individual no artigo 5º, XL, da Constituição, segundo o qual a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu. Continua o ministro, neste sentido, que a expressão lei penal não deve ser, nesse contexto, indicativo de que em matéria não penal a retroatividade mais gravosa poderia atuar livremente [1].

O texto em alude faz parte de uma série de discussões que se criou sobre os reflexos do Direito administrativo sancionador, agora contido expressamente na Lei de Improbidade (artigo 1º, §4º), aos processos de Improbidade em curso. Sobre o tema, ademais, já nos manifestamos em diversas oportunidades [2][3].

Assim, muito se tem falado sobre a aplicação das garantias penais aos processos de improbidade administrativa, vez que estas fazem parte de um gênero maior, qual seja, o direito sancionador. Assim, poder-se-ia afirmar que o direito sancionador seria o gênero, das quais o Direito Penal, o Direito Administrativo Sancionador e o Direito Tributário, portanto, seriam espécies.

Portanto, neste artigo defender-se-á a tese de que deve haver um diálogo entre estas duas espécies, de modo a garantir a integridade e coerência do Direito Sancionador. Portanto, indo direto ao ponto: a nova lei de Improbidade Administrativa pode (e deve, ao nosso entender) gerar reflexos também no Direito Penal, conforme argumentaremos.
Neste sentido, focar-se-á em duas grandes mudanças trazidas pela nova Lei de Improbidade: a exigência do dolo específico (artigo 1º, §2º, da LIA) e a exigência de perda patrimonial efetiva e comprovada nos casos do artigo 10 (dano ao erário), da LIA. Isso porque, no âmbito criminal, o artigo 337-F do Código Penal tipifica o crime de fraude à licitação (antigo artigo 90, da Lei 8.666/93) com a seguinte redação:
"337-F: Frustrar ou fraudar, com o intuito de obter para si ou para outrem vantagem decorrente da adjudicação do objeto da licitação, o caráter competitivo do processo licitatório."

Consuma-se o delito com a prática de qualquer ato voltado à frustração ou à fraude do caráter competitivo de uma licitação. Não se exige, pois, a efetiva obtenção da vantagem decorrente da adjudicação, nem tampouco que se demonstre o prejuízo ao erário. É a orientação do STJ:

"Nos termos da jurisprudência deste Superior Tribunal, diversamente do que ocorre com o delito previsto no art. 89 da Lei n. 8.666/1993, o art. 90 desta lei não demanda a ocorrência de prejuízo econômico para o poder público, haja vista que o dano se revela pela simples quebra do caráter competitivo entre os licitantes interessados em contratar, ocasionada com a frustração ou com a fraude no procedimento licitatório. De fato, a ideia de vinculação de prejuízo à Administração Pública é irrelevante, na medida em que o crime pode se perfectibilizar mesmo que haja benefício financeiro da Administração Pública. (REsp nº 1.484.415/DF, min. Rogerio Schietti Cruz, 6ª Turma, DJe 22/2/2016), não havendo falar em necessidade de comprovação de prejuízo à Administração ou mesmo em obtenção de lucro pelos agentes (AgRg no REsp 1.824.310/MG, rel. min. Sebastião Reis Júnior, j. 9/6/2020)."

A súmula 645 do STJ, nesse sentido, consolida essa orientação. Vejamos:

Súmula 645 do STJ: "O crime de fraude à licitação é formal, e sua consumação prescinde da comprovação do prejuízo ou da obtenção de vantagem."

Com a definição da natureza formal, o delito em alude pode ocorrer mesmo sem que se realize qualquer tipo de dano ao erário, ou seja, mesmo que não haja condenação na esfera administrativa. O tipo penal incriminador descreve uma conduta que tem por objetivo a distorção do regular processo competitivo mediante fraude ou mesmo a frustração de um processo licitatório e a finalidade de obter vantagem (para si ou para outrem) está atrelada ao êxito em vencer o processo licitatório em detrimento dos demais concorrentes, porém, independentemente de ser ou não o vencedor, caso reste configurada fraude ou frustração por parte de um dos concorrentes, este responde pelo delito. Não há previsão de aferição de vantagem pecuniária, de modo direto, ou mesmo a possibilidade de causar prejuízos ao erário. A tutela recai sobre o processo licitatório em si, visa a proteção de princípios como a legalidade e a moralidade.

Não obstante, em sede de Improbidade Administrativa, mesmo antes da mudança legal, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça já parecia mudar de direção. Isso porque, a 1ª Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) afetou dois recursos especiais para — sob o rito dos recursos repetitivos — dirimir controvérsia sobre dano presumido ao erário e atos de improbidade violadores das regras da licitação. Assim, cadastrada como Tema 1.096, a questão submetida a julgamento é a seguinte: "Definir se a conduta de frustrar a licitude de processo licitatório ou dispensá-lo indevidamente configura ato de improbidade que causa dano presumido ao erário (in re ipsa)".

Neste sentido, o entendimento até então dominante era o de que, quanto ao tipo previsto no artigo 10, VIII, da lei 8.429/1992, o seu descumprimento implicava não somente ofensa ao princípio da isonomia, mas verdadeiro dano in re ipsa ao erário, vez que a Administração Pública perde a oportunidade de escolha da proposta mais vantajosa.

Ademais, destaca-se que, no RE 696.533/SC, o Supremo Tribunal Federal, cuja matéria de fundo compreendia os crimes previstos nos artigos 89 e 90 da lei 8.666/1993, que guarda estrita relação de simbiose com a improbidade administrativa prevista no art. 10, VIII, da lei 8.429/1992, conforme estamos a defender, assentou-se no sentido de que para a configuração dos crimes previstos nos artigos 89 e 90 da lei 8.666/1992 não se exige a demonstração de dano ao erário quantificado, com mais razão na seara da improbidade administrativa deve ser afastada tal exigência, vez que o bem jurídico tutelado, é a própria moralidade administrativa e o interesse público.

O dano in re ipsa, pois, é um dano vinculado a própria existência do fato ilícito, sendo um dano presumido, desnecessitando de comprovação. No caso das licitações, a aplicação análoga do princípio acima citado, resultam, não obstante, muitas vezes, na devolução de todos os valores recebidos a título de prestação de serviços, cujos custos foram, muitas vezes, devidamente arcados pelo contratado, e este, sequer teve participação na ação ou omissão causadora do ilícito, não podendo ser punido em vias pedagógicas, pela simples participação em processo licitatório.

Voltando para a Lei de Improbidade Administrativa, note-se que o novel caput do artigo 10, agora, é expresso ao exigir o chamado dano efetivo e comprovado, senão vejamos:

"Art. 10. Constitui ato de improbidade administrativa que causa lesão ao erário qualquer ação ou omissão dolosa, que enseje, efetiva e comprovadamente, perda patrimonial, desvio, apropriação, malbaratamento ou dilapidação dos bens ou haveres das entidades referidas no art. 1º desta Lei, e notadamente:"

Ademais, de modo a evitar qualquer dúvida, o legislador mencionou novamente que o dano deve ser comprovado nos casos do artigo 10, VIII, da LIA, senão vejamos:

"VIII- frustrar a licitude de processo licitatório ou de processo seletivo para celebração de parcerias com entidades sem fins lucrativos, ou dispensá-los indevidamente, acarretando perda patrimonial efetiva (Redação dada pela Lei nº 14.230, de 2021)."

Essa perda patrimonial, efetivamente comprovada, ainda, deve vir acompanhado do necessário dolo específico (artigo 1º, §2º, da LIA), uma vez que, conforme aduz expressamente o novo dispositivo legal, "deve estar devidamente demonstrado a vontade livre e consciente de alcançar o resultado ilícito tipificado nos artigos 9º, 10 e 11 desta Lei, não bastando a voluntariedade do agente". Este entendimento, ademais, já era aplicado para a configuração do delito tipificado no artigo 89 da Lei 8.666/1993, no sentido de ser indispensável a comprovação do dolo específico do agente em causar dano ao erário, bem como do prejuízo à administração pública [4].

Neste sentido, resumindo, tem-se que: para configurar improbidade administrativa, a fraude ao processo licitatório deve vir acompanhado do dolo específico e do efetivo e comprovado dano ao erário. Para configurar ilícito penal, contudo, depende: no caso do artigo 337-E do Código Penal, exige-se a comprovação do dolo específico do agente em causar dano ao erário, bem como do prejuízo à administração pública. Não obstante, no caso do artigo 337-F, ambos são dispensados, sendo necessário apenas o dolo geral, enquanto o dano, por sua vez, é presumido.

Assim, urge a necessidade de se pensar um regime jurídico de núcleo comum à potestade sancionatória da Administração Pública e à potestade penal do Poder Judiciário, entendendo assim pela integridade do Direito Sancionador, à luz dos princípios gerais que fundamentem o ramo do Direito Punitivo único. Neste sentido, conforme menciona Xavier (2018, p.44), a doutrina da unidade do Direito Sancionador é argumento em favor da racionalização de um sistema de princípios, conciliados os fundamentos e limites para aplicações de sanções administrativas e penais, especialmente, à luz dos fenômenos da administrativização do Direito Penal e/ou aumento do poder administrativo sancionador

A estrutura geral do Estado, no que diz respeito ao poder punitivo, está disposta na Constituição da República, que delimita a organização dos poderes públicos e define os direitos e garantias fundamentais dos indivíduos. É na Constituição, pois, que deve ter início a sistematização do Direito Sancionador. Portanto, é da Constituição que se deve buscar os princípios e garantias aplicáveis ao Direito Sancionador único, de forma a manter a integridade e coerência deste sistema.

Coerência e integridade são conceitos, por sua vez, respectivamente ligados à consistência lógica que cada decisão deve manter com casos semelhantes e à exigência de que os juízes construam seus argumentos de modo integrado ao Direito como um todo, numa perspectiva ajuste de substância (STRECK, 2017, p. 34). Didier assim, salienta que deve se "compreender o Direito como um sistema de normas, e não um amontoado de normas. O dever de integridade é nesse sentido uma concretização do postulado da unidade do ordenamento jurídico" (2015, p. 395).

Conforme Dworkin (2014), à luz do princípio da integridade, o governo deve ter uma voz única, agindo de forma coerente, fundamentada e baseada em princípios com todos os cidadãos, buscando que os padrões de justiça e equidade utilizados para algumas pessoas sejam estendidos a todas as outras que estiverem em situação análoga.

O autor subdivide, pois, a exigência de integridade em dois princípios: integridade na legislação e integridade no julgamento. O primeiro constitui a tarefa imposta ao legislativo de, com a produção de normas jurídicas, tornar o conjunto de leis do Estado coerentes quanto aos princípios. Quanto ao segundo, "impõe aos magistrados que vejam o corpo do direito como um todo, de maneira uniforme, não como uma série de decisões distintas e esparsas em relação as quais são livres para considerar ou emendar, considerando-as apenas com interesse estratégico para o caso concreto" (DWORKIN, 2014, p. 203).

Assim, percebe-se que o modelo de integridade visa a uma coerência entre princípios, de modo que o magistrado, na integridade do julgamento, analise as decisões pretéritas, bem como as demais fontes jurídicas, e identifique quais são os princípios que fundamentaram as decisões e os diplomas normativos. A identificação desses princípios subjacentes permite que se chegue o direito aplicável ao caso, que já existia previamente, pois aplicado em situações anteriores, ainda que não estivesse declarado de forma explícita na legislação e nos precedentes das decisões do passado.

Portanto, não faz sentido, ao nosso entender, falar-se em princípio da ultima ratio como princípio norteador do Direito Penal, no sentido de que a lei penal se aplica quando somente ela é capaz de evitar a ocorrência de atos ilícitos ou de puni-los à altura da lesão ou do perigo a que submeteram determinado bem jurídico, bem como, do caráter fragmentário e subsidiário do Direito Penal, quando a conduta sequer é punida no âmbito do Direito Administrativo Sancionador.

Assim, ante todo o exposto, parece-se nos claro que, atualmente, partindo de uma leitura sistêmica, íntegra e coerente dos crimes previstos nos arts. 337-E e 337-F, do Código Penal, e das alterações realizadas pela 14.230/21 a Lei de Improbidade Administrativa, que guardam estrita relação de simbiose com a improbidade administrativa prevista no art. 10, VIII, da lei 8.429/1992, bem como, à luz do Direito Sancionador único, a jurisprudência deveria escrever o próximo capítulo deste romance em cadeia no sentido de que, no caso do artigo 337-F, do Código Penal, para ser caracterizado o mencionado ilícito, o dolo também deve ser o específico, e o dano efetivamente comprovado, devendo restar superado, portanto, a tese do dano presumido (in re ipsa).

 

Referências
DIDIER JÚNIOR, Fredie. Sistema brasileiro de precedentes judiciais obrigatórios e os deveres institucionais dos tribunais: uniformidade, estabilidade, integridade e coerência da jurisprudência. Coleção grandes temas do novo CPC. v.3. Salvador: JusPodvm, 2015, p.395.
DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. Trad. Jefferson Luiz Camargo. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2014.
STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de hermenêutica: quarenta temas fundamentais da teoria do direito à luz da crítica hermenêutica do Direito. Belo Horizonte: Letramento: Casa do Direito, 2017, p. 34.
XAVIER, Marília de Araújo Barros et al. Direito sancionador: estudos no direito tributário. 2018.

Autores

  • é advogado no escritório Nobel Vita Advogados Associados, juiz leigo do TJ-CE, mestrando em Ciência Política pela Universidade Federal de Campina Grande e pesquisador do Núcleo de Pesquisa de Interpretação e Decisão Judicial (Nupid).

  • é advogada no escritório Nobel Vita Advogados Associados, mestranda em Ciência Política pela Universidade Federal de Campina Grande, pós-graduada em Direito Constitucional pela Universidade Regional do Cariri e pós-graduanda em Ciências Criminais pelo Cers.

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