Opinião

O princípio da retroatividade da lei sancionadora mais benigna

Autor

4 de maio de 2022, 10h08

Com a entrada em vigor da Lei 14.230/2021, que implementou algumas alterações na Lei 8.429/1992, chamada de Lei da Improbidade Administrativa, surgiu inesperada discussão, felizmente restrita a certos e conhecidos enclaves punitivistas, sobre se as alterações benéficas aos acusados e réus teriam — ou não — efeitos retroativos.

Spacca
A ideia de que a lei mais benigna opera efeitos sobre os fatos pretéritos (retroatividade), associada à de que a lei mais favorável tem eficácia mesmo depois de revogada (ultratividade) é um dos mais antigos dogmas do Direito Sancionador e está expletivamente inscrito como direito individual no artigo 5o., XL da Constituição, segundo o qual a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu. A expressão lei penal, como se verá mais adiante, não deve ser, nesse contexto, indicativo de que em matéria não penal a retroatividade mais gravosa poderia atuar livremente, como pareceu a uns poucos leitores menos reflexivos sobre o tema.

O artigo 2º, parág. único do Código Penal, por seu turno, assevera que a lei posterior, que de qualquer modo favorecer o agente, aplica-se aos fatos anteriores, ainda que decididos por sentença condenatória transitada em julgado. A súmula 611 do colendo STF assevera que, transitada em julgado a sentença condenatória, compete ao juízo das execuções a aplicação de lei mais benigna. Esse dispositivo legal do CPB e o enunciado do verbete 611-STF dão perfeita e exata concreção ao artigo, 5o., XL da Constituição e devem ser interpretados em consonância com ele. Na verdade, as regras benévolas devem aplicadas de forma ampliativa, segundo o velho preceito do Direito Romano benevola amplianda, odiosa restringenda.

Diante dessas disposições tão claras e decisivas, por qual razão ainda se discute se a Lei 14.230/2021 tem — ou não — aplicação retroativa, relativamente aos seus dispositivos que instituem condições mais favoráveis aos acusados e réus? Esta é uma pergunta inquietante e deve a cada dia ser enfrentada, cabendo aos aplicadores da nova Lei de Improbidade Administrativa decidir as causas pertinentes com a cabeça nos ares do mundo.

A grande matriz geradora das resistências à ideia da retroatividade dos dispositivos mais benévolos da Lei 14.230/2021 é, sem dúvida alguma, o pensamento punitivista que tomou conta da jurisdição penal no Brasil. Tomou conta e se espraiou para todas as instâncias sancionadoras, inclusive para as instâncias cíveis, em cujo âmbito se inscrevem as leis e as regras repressoras dos atos de improbidade administrativa. No pensar de alguns doutores, as leis sancionadoras civis, ainda que mais gravosas aos acusados ou réus, poderiam retroagir livremente. Esse é um pensamento estranho e injurídico, pois o Código Tributário Nacional traz disposição em contrário (artigo 106, II, a) e nunca se ouviu dizer que fosse inconstitucional.

Mas o pensamento punitivista é como uma mancha de óleo derramado numa lagoa, que se alastra envenenando as suas águas calmas. Ou uma afirmação deslastreada de elementos consistentes, que à custa de tanta repetição vai assumindo ares de verdade. 

A concepção punitivista dá suporte às condutas radicais da atuação estatal sancionadora. Por essa concepção, a jurisdição sancionadora deve ser estimada como simples e puro gerencialismo dos resultados dos atos ilícitos, que podem ser identificados segundo a metodologia mais rasa e sem apoios doutrinários. Essa administrativização do poder estatal de punir gera a banalização das atividades que lhe correspondem, que ficam sendo vistas apenas como coisas práticas, como uma atividade de mera aplicação silenciosa das regras sancionadoras.

No entanto, o pensamento jus-punitivista não é o único produtor da apontada resistência. Há outro fator igualmente poderoso e propulsor dessa mesma ideia, qual seja, o ponto de vista que afirma que somente a lei penal mais benéfica é que pode retroagir, isso por causa da expressão lei penal no artigo 5o., XL da Constituição, e na sua interpretação magra a mais não poder. Segundo esse raciocínio restritivo, como a Lei de Improbidade não é de natureza penal, estaria excluída de operar efeitos quanto a fatos que lhe são anteriores. É gritante o artificialismo desse argumento e se pode afirmar que se trata apenas de esforço, certamente inútil, para doutrinarizar o punitivismo, dando-lhe ares de nobreza de teoria jurídica.

Quem analisar com um mínimo de isenção intelectual o que dispõe o artigo 5º, LV da Constituição — aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes – certamente concluirá que a retroação da lei penal mais benigna (artigo 5º., XL da Constituição) contém direito subjetivo que se aplica a todos os acusados ou réus, em quaisquer processos, inclusive administrativos e cíveis, desde que visem à aplicação de sanção, seja qual for a sua natureza.

Essa diretriz já foi assentada por um dos mais cultos juristas do país, o eminente ministro Luiz Fux, quando ainda judicava no egrégio STJ. Julgando o Recurso Especial 190.721/CE, teve o doutrinador ensejo de afirmar ser uníssona a doutrina no sentido de que, quanto aos aspectos sancionatórios da Lei de Improbidade, impõe-se exegese idêntica a que se empreende com relação às figuras típicas penais, quanto à necessidade de a improbidade colorir-se de atuar imoral com feição de corrupção de natureza econômica.

E arrematou a sua preciosa lição dizendo que tratando-se de ação cível com cunho penal, a atipicidade da conduta assemelha-se à impossibilidade jurídica do pedido, mercê da falta notória do interesse de agir quer por repressão quer por inibição, impondo o indeferimento da inicial e a consequente extinção do processo sem análise do mérito, por isso que ausente a violação do artigo 267 do CPC.

Deve-se pontuar que a benignidade de uma lei afluente mais favorável não se revela somente quando promove, por exemplo, a abolição da figura típica ou, a eliminação ou a redução da pena, embora esses sejam talvez os casos mais frisantes, mas também quando implanta qualquer modalidade de benefício. Na hipótese em estudo, o benefício que advém da lei nova é a retroatividade dos seus dispositivos mais benévolos aos acusados ou aos réus, incidindo sobre a relação jurídica de Direito Sancionador, quando esta se acha em trâmite no curso de processo judicial ou administrativo ou mesmo em processo de qualquer natureza e já encerrado.

A retroatividade da lei sancionadora mais benigna acha-se entre os institutos jurídicos criados para limitar os poderes estatais punitivos, sendo um dos mais relevantes. A eficácia da retroatividade da lex mitior paralisa definitivamente o poder estatal sancionador, qualquer que ele seja. Já se vê que se trata de um instituto que se cerca de ampla aceitação, o que leva a minimizar o insistente pensamento jurídico punitivista que se esmera em dar preponderância ao interesse punitivo, nas relações do processo administrativo ou judicial sancionador.

Pode-se ter a retroatividade da lei mais benigna na conta dos princípios reitores do Direito Sancionador e os princípios jurídicos, como já o disse o eminente professor Miguel Reale (1910-2006), são enunciações normativas de valor genérico, que condicionam e orientam a compreensão do ordenamento jurídico, quer para sua aplicação e integração, quer para a elaboração de novas normas (Lições Preliminares de Direito. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 305). Peço de empréstimo as palavras do dramaturgo alemão Berthold Brecht (1898-1956), para dizer que vivemos tão tempos difíceis, que até o óbvio precisa ser demonstrado. No caso, precisa-se demonstrar que os princípios jurídicos e constitucionais se aplicam a todas as searas e a todos os ramos do Direito;

A inserção da retroatividade da lex mitior na categoria de princípio jurídico constitucional leva, portanto, a que a sua aplicabilidade seja ampla, isto é, que seja reconhecida e praticada em qualquer relação jurídica em que se cogite de impor qualquer gravame a qualquer direito subjetivo, seja em qual área jurídica for. O douto professor José Afonso da Silva acha que a retroativdiade se funda em requisito de justiça, certamente o maior de todos os princípios. Para ele, se o Estado reconhece, pela lei nova, não mais necessária à defesa social a definição penal do fato, não seria justo nem jurídico alguém ser punido e continuar executando a pena cominada em relação a alguém, só por haver praticado o fato anteriormente (Comentário Contextual à Constituição. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 138).

É uma coisa exótica pôr-se ainda em discussão a retroatividade de qualquer lei sancionadora mais benéfica ao acusado ou ao réu, porque o colendo STF, no julgamento do MS 23.262/DF, sob a condução do douto ministro Dias Toffoli, já assentou que o princípio da presunção da inocência (artigo 5º, LVII da Constituição), nascido e crescido no Direito Penal, se aplica aos processos administrativos sancionadores, apesar de o dispositivo magno aludir à lei penal. Diante dessa hiperlúcida expansão garantística, não há razão jurídica alguma para se questionar a retroação da Lei 14.230/2021, cujo conteúdo é induvidosamente sancionador. Por essa razão, a oposição à retroatividade de seus dispositivos mais benéficos cai na vala das reações apenas punitivistas, ainda que reivindicantes de pressupostos científicos.    

No egrégio STJ, há exemplares julgados de sua Primeira Turma em que se firmou a aplicabilidade da retroação da lei mais benigna, em julgamentos de matéria cível: no RMS 37.031/SP, sob a relatoria da douta ministra Regina Helena Costa, o colegiado decidiu que a retroação da lei mais benéfica é um princípio geral do Direito Sancionatório, e não apenas do Direito Penal. Quando uma lei é alterada, significa que o Direito está aperfeiçoando-se, evoluindo, em busca de soluções mais próximas do pensamento e anseios da sociedade. Desse modo, se a lei superveniente deixa de considerar como infração um fato anteriormente assim considerado, ou minimiza uma sanção aplicada a uma conduta infracional já prevista, entendo que tal norma deva retroagir para beneficiar o infrator.

E acresceu a eminente julgadora que constato, portanto, ser possível extrair do artigo 5º, XL, da Constituição da República princípio implícito do Direito Sancionatório, qual seja: a lei mais benéfica retroage. Isso porque, se até no caso de sanção penal, que é a mais grave das punições, a Lei Maior determina a retroação da lei mais benéfica, com razão é cabível a retroatividade da lei no caso de sanções menos graves, como a administrativa.

No julgamento do Recurso Especial 1.153.083/MT, sob esclarecida relatoria do eminente ministro Sérgio Kukina, seguiu-se caminho idêntico, ao se definir de maneira claríssima que o artigo 5º, XL, da Constituição da República prevê a possibilidade de retroatividade da lei penal, sendo cabível extrair-se do dispositivo constitucional princípio implícito do Direito Sancionatório, segundo o qual a lei mais benéfica retroage.

Esse contexto deveria levar à conclusão que todos os institutos garantísticos do processo penal contemporâneo deveriam ser aplicados de logo e imediatamente no processo sancionar administrativo e judicial. Será preciso sempre relembrar que a retroação da lei mais benéfica é um instituto que deve ser apreendido em favor do imputado ou réu, ou seja, é um instituto pro reo. Não se deve esquecer, porém, que essa expressão — pro reo — provoca arrepios nos juristas punitivistas, pois o pensamento geral, dominante entre eles, é o de que os direitos subjetivos e as garantias jurídicas e processuais servem apenas para empecer a atividade estatal sancionadora, favorecer a impunidade dos infratores e retardar — ou mesmo eliminar — a eficiência do sistema repressivo.

Esse discurso eficientista ou gerencialista da função punitiva é sempre carregado de valores anti-democráticos, de autoritarismos e repressões e mesmo de sentimentos excludentistas ou vinditas institucionais. Isso se pode facilmente ver, por exemplo, no livro do jurista alemão professor Günther Jakobs, que em 1985 iniciou a teoria da técnica punitivista que sustenta que o Direito Penal — e o Direito Sancionador em geral — serve a propósitos somente repressivos.

Nunca será demasiado pontuar e repontuar que não é lícito às autoridades incumbidas da repressão estatal — sejam elas administrativas, policiais ou judiciais — atuar com as mesmas armas que os agentes das ilicitudes geralmente empregam. Essa é a advertência de outro jurista alemão, o professor Winfried Hassemer (1940-2014) que se manifesta dizendo que, também nos tempos da ameaça flagrante à segurança interna, nós precisamos de esferas rígidas, de ponderação e indisponíveis da liberdade dos cidadãos.

O pensamento punitivista quer que todo mundo creia no mito de que as sanções fortalecem o poder e que as absolvições, ao revés, o enfraquecem. A voz retroação benéfica, além de assustar, provoca reações tão adversas nos punitivistas, que chegam ao paroxismo. No entanto, o ilustre mestre argentino professor Eugênio Raúl Zaffaroni, hoje integrante da Corte Interamericana de Direitos Humanos, discorda frontalmente das propostas do Direito Penal do Inimigo. Ele levanta a voz para dizer que a cisão entre cidadãos e inimigos serve ao propósito de criar, artificialmente, a condição primá­ria que justificaria a tendência para radicalizar a supressão de direitos aos inimigos.  

E explica didaticamente o professor Zaffaroni o seu ponto de vista, observando o seguinte, a propósito deste tema, sublinhando que este conceito bem preciso de inimigo remonta à distinção romana entre o inimicus e o hostis, mediante o qual o inimicus era o inimigo pessoal, ao passo que o verdadeiro inimigo político seria o hostis, em relação ao qual é sempre colocada a possibilidade de guerra como negação absoluta do outro ser ou realização extrema da hostilidade. O estrangeiro, o estranho, o inimigo, o hostis era quem carecia de direitos em termos absolutos, quem estava fora da comunidade (op. cit., p. 21).    

Pode-se identificar na ideologia sancionadora eficientis­ta a mesma concepção que orienta as escolas jurídicas agrupadas sob o rótulo de funcionalistas, cujos integrantes costumam apontar o con­traste, que imaginam existente, entre a eficiência do sistema de repressão dos ilícitos e o sistema assegurador de garantias subjetivas. Esses escolásticos parecem acreditar que há um autêntico dilema entre a necessidade de efetivar o combate aos ilícitos e a preservação dos direitos subjetivos das pessoas. Esse dilema é falso, mas se afigura muito forte à percepção dos ideólogos do punitivismo.   

Este é o cenário em que medrou e se desenvolveu a adversidade ao instituto da retroatividade da lei mais benigna, que atua na mente dos julgadores como se fosse um sinal — ou mesmo uma prova — de que sistema repressivo não funcionou a contento, porque funcionar a contento significaria condenar. É a mesma coisa que se passa com a acusação, quando se admite que a toda acusação deve corresponder um processo e a todo processo deve corresponde uma condenação. E a retroação benévola caminha, segundo essa visão punitivista do Direito Sancionador, na contra-mão da ideologia garantística.

Deve ser posto em alto destaque que a retroatividade — como também a ultratividade — da lei mais benigna nasceram efetivamente na seara penal, mas ambas se acham estabelecidas como princípios de Direito, nos sistemas jurídicos do Ocidente. No Brasil, estão elevadas à dignidade de regra constitucional explícita (artigo 5º, XL), que expressamente repercutiu no campo tributário (artigo 106 do CTN), por exemplo, mas também em todos os outros em que há obrigações legais. Pode-se dizer, aliás, que os princípios jurídicos na pertencem à exclusividade de alguma seara do Direito, mas podem ser aplicados em todas elas, sempre em atenção às suas peculiaridades.

A outra face da retroatividade da lei mais benigna, tão relevante quanto ela própria, é a ultratividade da regra mais favorável, ou seja, a sua plena eficácia, mesmo depois de revogada, se dela resulta situação mais favorável ao imputado ou réu. A esse respeito o ilustre ministro Celso de Mello elaborou lapidar conceituação, dizendo que o sistema constitucional brasileiro impede que se apliquem leis penais supervenientes mais gravosas, como aquelas que afastam a incidência de causas extintivas da punibilidade sobre fatos delituosos cometidos em momento anterior ao da edição da lex gravior.

Disse, ainda, o douto ministro que a eficácia ultrativa da norma penal mais benéfica — sob cuja égide foi praticado o fato delituoso — deve prevalecer por efeito do que prescreve o artigo 5º, XL, da Constituição, sempre que, ocorrendo sucessão de leis penais no tempo, constatar-se que o diploma legislativo anterior qualificava-se como estatuto legal mais favorável ao agente. Doutrina. Precedentes do Supremo Tribunal Federal (HC 90.140/GO. DJe 16.10.2008).

A leitura do artigo 5º, XL da Constituição, segundo o qual a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu, deve levar à inevitável conclusão de que o termo penal abrange todas as regras sancionadoras, seja qual for a sua natureza, e que o benefício que proporciona também pode ser de qualquer espécie, seja material ou processual. Representa uma acintosa fraude à Constituição dizer que lei penal, no contexto desse item normativo da Constituição, significaria somente a lei penal incriminadora.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!