Opinião

As mudanças na Lei de Improbidade e o aguardado movimento reacionário

Autores

  • José Gutembergue de Sousa Rodrigues Júnior

    é advogado associado do escritório Gonçalves Santos Advogados mestre em Ciência Política pela Universidade Federal de Campina Grande doutorando em Ciências Jurídicas pela Universidade Federal da Paraíba especialista em Direito Público membro do Grupo de Pesquisa Sistema de Justiça e Estado de Exceção da PUC-SP e pesquisador do Núcleo de Pesquisa de Interpretação e Decisão Judicial (Nupid).

  • Clara Skarlleth Lopes de Araújo

    é advogada juíza leiga do TJ-PB mestre em Ciência Política pela Universidade Federal de Campina Grande pós-graduada em Direito Constitucional pela Universidade Regional do Cariri ex-professora de Direito e Processo Penal da Universidade Regional do Cariri e membra do Grupo de Pesquisa Sistema de Justiça e Estado de Exceção da PUC-SP.

20 de janeiro de 2022, 19h13

Conforme já trabalhado em artigo pretérito [1], no que tange à aplicabilidade das normas de natureza material, modificadas pela nova Lei de Improbidade (Lei 14.230/2021), cumpre ressaltar que, por serem mais benéficas ao agente em comparação com a disciplina legal anterior, devem ser aplicadas de maneira retroativa.

Isso se justifica pelo fato de que a LIA, enquanto produto do poder punitivo estatal, integra o chamado Direito Administrativo Sancionador, devendo submeter-se ao mesmo núcleo básico de direitos individuais consagrados na Constituição Federal que fundamentam o Direito Penal (artigo 5º, XL, da CF/88), apresentando-se, portanto, como uma barreira de proteção do cidadão em face do ius puniendi estatal. Portanto, até aqui, não há nada novo debaixo do sol.

Esse entendimento, ademais, vem sendo adotado, em certa medida, pelo Superior Tribunal de Justiça (Recurso Especial nº 1.712.153/MG), bem como, por outros tribunais, como o Tribunal de Justiça de São Paulo [2], o Tribunal de Justiça da Paraíba e o Tribunal Regional Federal da 5º Região, entre outros.

Não obstante, para surpresa de ninguém, o movimento reacionário surgiu. Isso porque, conforme já noticiado por esta revista eletrônica, a 5ª Câmara de Coordenação e Revisão do MPF emitiu orientação e nota técnica abordando uma pretensa irretroatividade dos efeitos benéficos da Lei 14.230/2021. Segundo a orientação, a norma incluiu o dolo como requisito para configuração de um ato de improbidade. E, ao fazê-lo, teria limitado a atuação do MP na tutela do bem jurídico ao bom governo. Assim, o MPF afirma que as novas regras não podem ser aplicadas a atos de improbidade ocorridos antes do início da sua vigência [3]. Eis, portanto, o primeiro ponto.

Em artigo específico, assinado por, entre outros ilustres advogados, Alberto Zacharias Toron, Gustavo Badaró e Pierpaolo Cruz Bottini, argumentou-se que a recomendação do Ministério Público Federal para que a reforma da Lei de Improbidade Administrativa (Lei 8.429/1992), promovida pela Lei 14.230/2021, seja aplicada apenas a casos novos, e não aos que já estão em tramitação, afronta a Constituição e busca manter estratégia de expor os acusados na imprensa [4].

Usar a imprensa contra autoridades políticas, aliás, caracteriza-se como caso claro de uso político do Direito, podendo caracterizar, a depender da situação, lawfare [5]. Tais movimentos são perigosos para a democracia. Lenio Streck é sempre cirúrgico ao afirmar que, em um Estado democrático de Direito, a política paga pedágio ao Direito, e não o contrário. Isso porque, conforme já mencionava Nietzsche, o abismo sempre olha de volta para você, e o efeito backlash nunca falha em aparecer.

Pois bem. Vamos ao segundo ponto. Isso porque, seguindo orientação ligeiramente semelhante, parcela dos membros do MPF vem entendendo que "as alterações da lei não se mostram aptas a descaracterizar a imputação de ato ímprobo à demandada. Isto porque, o acusado se defenderá dos fatos, e não da norma que os qualifica. A sua condenação com base em eventual norma diversa da apontada na inicial não lhe prepara qualquer prejuízo, nomeadamente, diante dos princípios do contraditório e da ampla defesa".

Vemos aqui, pois, mutatis mutandis, o que Aury Lopes Jr e Alexandre Morais da Rosa chamaram de Movimento Sabotagem Inquisitória (MSI) [6], que podemos chamar de movimento contrarreforma, ou reacionários da improbidade. Busca-se evitar a reforma. É o constante medo do novo, ou pelo menos daquilo que modifica substancialmente o status quo.

Filosoficamente, reacionários não são conservadores. Mark Lilla (2018) nos ensina que, em termos políticos, a "mente náufraga" representa os extremos dos espectros ideológicos hoje dominantes: pela direita, seria o "reacionário", e pela esquerda, o "revolucionário". Os reacionários, imunes às "mentiras modernas", veem o passado em todo seu esplendor, julgando-se guardião de tudo de bom que já aconteceu. A mudança abalou o equilíbrio perfeito que existia antigamente. No caso, a possibilidade de condenação por princípios à la carte [7], com base em dolo genérico [8], ou ainda o famigerado in dubio pro societa [9].

Ademais, ao não aplicar a lei por não gostar ou não concordar pessoalmente com ela, estar-se-ia cometendo claro ativismo judicial, sendo uma clara troca do Direito por política, ideologia, religião, ou qualquer outra visão do mundo na formação da decisão judicial (Abboud, 2019, p. 1310). Juízes aplicam a lei e promotores de Justiça são fiscais dela. Nenhum destes são donos da lei, e muito menos, consequentemente, de sua ilimitada interpretação. Ora, a dignidade da legislação exige seu cumprimento, ainda que não concordemos com seu conteúdo.

Em verdade, não há nada mais verdadeiramente conservador do que isso, pelo menos, caso levemos em consideração um conservadorismo clássico Burkeano, com seu admirável respeito e submissão ao Estado de Direito.

Ademais, rebatendo o último ponto, o princípio da continuidade normativa típica, conforme posição do Superior Tribunal de Justiça, ocorre quando uma norma penal é revogada, porém a mesma conduta continua tipificada em outro dispositivo, ainda que topologicamente diverso do originário. A intenção do legislador, nesse caso, é que a conduta permaneça criminosa, não que haja a abolitio criminis.

Em nenhum momento nada ao menos semelhante a isso aparece na Lei de Improbidade. Até porque o artigo 11, que antes era aberto, agora é numerus clausus. Ainda, deveria o ministério público, agora único legitimado para propor a ação de improbidade, demonstrar especificamente em que artigo e inciso a conduta em tese se adequaria. Essa carga é exclusiva da acusação. É seu dever, legal e institucional.

Precisamos levar não apenas os direitos a sério, mas também o fato de que os atos de improbidade administrativa não se confundem com a mera ilegalidade ou irregularidade, pelo contrário, devem se configurar pela má-fé, o dolo, a vontade indiscriminada do gestor de ferir a coisa pública. As acusações que pesam sobre os gestores devem estar cientes dessa responsabilidade. É preciso saber acusar com dignidade e integridade. Transformar gestores, de maneira leviana ou descuidada, em inimigos públicos, ou acusadores em justiceiros sociais não é saudável e/ou recomendado para nenhuma democracia constitucional.

 

Referências bibliográficas
ABBOUD, Georges. Processo Constitucional Brasileiro. 3ª. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019.

LILLA, Mark. A mente naufragada: Sobre o espírito reacionário. Tradução Clóvis Marques. 1ª. ed. São Paulo: Record, 2018.

 


[8] REsp 1.275.469/SP, relator ministro Sérgio Kukina, DJe 9/3/2015.

Autores

  • é advogado no escritório Nobel Vita Advogados Associados, juiz Leigo do TJCE, mestrando em Ciência Política pela Universidade Federal de Campina Grande e pesquisador do Núcleo de Pesquisa de Interpretação e Decisão Judicial (Nupid).

  • é advogada no escritório Nobel Vita Advogados Associados, mestranda em Ciência Política pela Universidade Federal de Campina Grande (UFCG), pós-graduada em Direito Constitucional pela Universidade Regional do Cariri (URCA), pós-Graduanda em Ciências Criminais pelo Cers e ex-professora de Direito e Processo Penal da Universidade Regional do Cariri (URCA).

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