Limite Penal

"Limite Penal" na I Michele Taruffo Girona Evidence Week

Autores

  • Janaina Matida

    é professora de Direito Probatório da Universidad Alberto Hurtado (Chile) doutora em Direito pela Universitat de Girona (Espanha) e consultora jurídica em temática da prova penal.

  • Rachel Herdy

    é professora da Universidad Adolfo Ibáñez (UAI) no Chile e co-líder do Grupo de Pesquisa Epistemologia Aplicada aos Tribunais (Great).

  • Marcella Mascarenhas Nardelli

    é doutora em Direito Processual pela Uerj professora de Direito Processual Penal da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e autora do livro "A Prova no Tribunal do Júri" da Editora Lumen Juris.

10 de junho de 2022, 12h19

Entre os dias que foram de 23 a 27 de maio, participamos do I Michele Taruffo Girona Evidence Week (de agora em diante MTGEW), organizado pelo grupo de pesquisa de filosofia do direito da Universitat de Girona, sediado naquela mesma cidade espanhola. Dividiremos com os nossos leitores um pouco do que vivemos naquela semana tão frutífera para a prova penal.

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Em primeiro lugar, cabe registrar a magnitude do evento. Por meio de numerosas atividades, a MTGEW oportunizou o debate dos temas mais importantes em matéria probatória — dos mais tradicionais aos mais atuais. No total, foram cinco plenárias, dois painéis, quatro cursos breves e nada menos do que 30 workshops, os quais foram capazes de reunir pesquisadores e operadores jurídicos das mais diversas partes do mundo. A MTGEW recebeu cerca de 500 estudiosos. Essa composição, vale dizer, contou com a presença de muitos pesquisadores mundialmente conhecidos.

Naturalmente, o entusiasmo com o retorno dos eventos presenciais foi maximizado pela ocasião em que Michele Taruffo recebeu esta merecida homenagem. Como era de se esperar, a abundante oferta debates daquela semana causou-nos proporcional dificuldade na hora de escolher o que assistir. Como as colunistas não estiveram juntas em todas as atividades, optamos por contar individualmente o que cada uma viu, ouviu e falou por lá.

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Workshop Injusticia epistémica en el contexto probatorio
Iniciamos nossa exposição com o workshop organizado por nós (26/5), dedicado a debater os problemas da injustiça epistêmica no contexto probatório. A atividade centrada no conceito elaborado por Miranda Fricker contou com a participação de pesquisadores e operadores jurídicos de diversos sistemas jurídicos. Agradecemos as apresentações de Clarissa Diniz Guedes, Andrés Páez, Migdalia Arcila-Valenzuela, Daniele Takeuchi, Fernando Braga Damasceno, María Pía Molina e María de los Ángeles González. A seguir, publicamos, individualmente, um breve relato sobre os argumentos que apresentamos.

"Injusticia epistémica por exceso de credibilidad: la palabra del policía", por Janaina Matida
Trabalhei sobre a redefinição conceitual que José Medina e Jennifer Lackey propõem ao conceito apresentado por Fricker. É que, além das situações em que sistematicamente a credibilidade de alguém é deflacionada em razão de estereótipos negativos (como os de raça e gênero), não se pode perder de vista o equivalente excesso de credibilidade com o qual outros sujeitos passam a ser injustamente beneficiados. Este é o caso da palavra do policial no sistema de justiça brasileiro, que tem em seu favor a presunção de veracidade, conforme o entendimento da súmula 70 do TJ-RJ (Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro).

Se, por um lado, tal diretiva jurisprudencial carece de fundamento empírico (pois inexiste qualquer dado na realidade do mundo que autorize a concluirmos que os policiais, pelo simples fato de serem policiais, sempre relatam a verdade dos fatos; falei sobre isso aqui), por outro, reflete o racismo estrutural a partir do qual os abordados/investigados/processados têm suas versões dos fatos rapidamente descartadas. Assim, diferente do que Fricker inicialmente afirmou em Epistemic Injustice, a credibilidade é um bem em disputa em determinados contextos, como é o caso do processo penal, e a sua atribuição indevida a um sujeito, em realidade, corresponde à redução apressada da credibilidade de outra pessoa.

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"Injustiça epistêmica no juízo por jurados", por Marcella Mascarenhas Nardelli
O fundamento da participação popular na administração da justiça é o julgamento do acusado por seus pares, compreendidos como aqueles membros da sociedade capazes de analisar os atos que lhe são imputados a partir de seu próprio contexto social. Deste modo, se o júri absolve um acusado por considerar que sua conduta estaria justificada aos olhos da sociedade, estaria exercendo plenamente seu papel democrático e sua função histórica em defesa da liberdade. No entanto, é preciso compreender que esta decisão pode representar uma injustiça epistêmica contra determinada classe/grupo social.

Na medida em que crimes motivados por preconceitos identitários (como o feminicídio) sejam submetidos a julgamento popular, incorre-se no risco de que tais preconceitos sejam reproduzidos pelos jurados no momento de avaliarem a referida conduta, já que se espera que decidam o caso justamente com base nos valores comunitários dominados por estes mesmos estereótipos. Nesse sentido, o argumento principal é de que, caso não se disponha de estrutura e configuração institucional adequadas, o juízo por jurados torna-se ambiente propício à consolidação de injustiças hermenêuticas.

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"Injustiça hermenêutica no contexto judicial", por Rachel Herdy
De acordo com Fricker, a injustiça hermenêutica (IH) ocorre quando o falante carece de conceitos e categorias para dar sentido ou comunicar uma experiência particular. No direito, a IH ocorre quando o juiz não possui ainda uma categoria jurídica para qualificar os fatos de uma experiência que é chamado a adjudicar; ou quando o próprio juiz interpreta muito restritivamente uma categoria jurídica existente. Em termos técnicos, manifesta-se na operação de qualificação de uma situação fática; portanto, envolve um problema relativo à elaboração, por parte do juiz, de uma inferência probatória interpretativa.

O juiz atribui um significado restritivo a um conceito jurídico de modo a não dar conta da realidade. Argumenta-se então que as IH que ocorrem no contexto judicial representam um caso grave quando comparadas com aquelas que ocorrem em outros contextos. Isso porque, o Direito é possivelmente a esfera mais importante quando se trata de dar sentido às experiências negativas que demandam alguma forma de reconhecimento — por meio de indenização ou punição. Os juízes sempre podem decidir um caso adaptando ou fazendo evoluir o significado de um conceito existente. Isso pode nos levar a supor que a IH no direito não é apenas uma questão estrutural, como afirma Fricker — pois o conceito não estaria disponível nos recursos hermenêuticos da comunidade.

A IH no Direito também pode envolver casos de "ignorância hermenêutica intencional". O juiz tem uma margem de atuação grande, podendo expandir significados capazes de responder à complexa realidade (principalmente se for juiz de uma corte suprema).

Workshop Razonamiento probatorio e investigación criminal, por Janaina Matida
Dividi a coordenação desse workshop com Edgar Aguilera, Marianela Delgado e Jesús Gutiérrez. Da mesa coordenada por mim (25/5, período da tarde), destaco as contribuições desenvolvidas a partir da realidade brasileira. É o caso dos trabalhos de Rogerio Schietti, Antonio Vieira e Lívia Moscatelli.

Schietti, professor e ministro do STJ, tratou da prova do reconhecimento de pessoas. A exposição partiu da constatação das condições investigativas que resultam em falsos positivos e aumentam o risco de condenação injustas. A necessidade de se rever a forma de se investigar foi sublinhada, assim como a responsabilidade conjunta de todas as instituições que compõem a justiça criminal. As justificações epistêmicas que fundamentaram as decisões sobre reconhecimento de sua relatoria — HC 598.886/SC e HC 712.781/RJ — também foram apresentadas.

Na sequência, Antonio Vieira expôs sobre os riscos epistêmicos da colaboração premiada. Vieira apresentou as fragilidades que o uso de colaboradores para a determinação dos fatos envolve: a pressão psicológica, o lapso temporal que separa os fatos constantes dos anexos e o momento da investigação, o interesse em se pôr fim à tormentosa situação de investigado/processado são alguns dos fatores que contribuem ao oferecimento de relatos falsos, sendo necessários controles epistêmicos com a sua corroboração e subsequente valoração..

Finalizando a participação dos brasileiros, Lívia Moscatelli defendeu a importância da investigação prévia, e argumentou sobre a necessidade de que os estudiosos da epistemologia jurídica dediquem mais atenção à determinação dos fatos que se inicia naquela etapa. Em sua exposição, Moscatelli apresentou o raciocínio por abdução como técnica adequada à exploração das hipóteses fáticas, servindo a evitar os riscos da visão de túnel.

Enquanto pesquisadora dedicada às mudanças que o sistema de justiça brasileiro precisa e merece, quero partilhar a alegria de ter contado com essas apresentações. Agradeço também as palestras de Ronald Sanabria e Ricardo Elias, que falaram sobre prova ilícita e investigação nos delitos cibernéticos, respectivamente. Por último, registro a satisfação em ter a presença atenta de outra estudiosa da prova penal em nossa plateia. A professora, presidente e ministra do STJ, Maria Thereza Assis Moura, esteve conosco do início ao fim da mesa.

Conferência Plenária de Jennifer Mnookin, por Rachel Herdy
No segundo dia do evento (24/5), ganhou destaque a conferência plenária de Jennifer Mnookin, com o título (traduzido para o português) "Ficções forenses: os caminhos epistemológicos persistentes das provas que provêm das ciências forenses". Além de ser professora e ex-diretora da Faculdade de Direito da Universidade da Califórnia Los Angeles (UCLA), Mnookin integrou o Conselho de Assessores em Ciência e Tecnologia da Presidência dos Estados Unidos (conhecido como PCAST), no governo de Barack Obama. Este órgão foi responsável pela elaboração de um importante relatório sobre a validação científica das ciências forenses baseadas em métodos de comparação de características — como são os casos das amostras de DNA, marcas de ferramentas (microbalística) e impressões digitais.

Logo no início de sua conferência, Mnookin argumentou, em resposta à opinião manifestada por Ronald Allen, na sessão plenária imediatamente anterior, que o precedente do caso Daubert — uma decisão de 1993, da Suprema Corte dos EUA, que estabeleceu um standard de admissibilidade multifatorial para as provas científicas nos tribunais[1] — não teria tornado mais rígido o controle judicial da ciência. Isso ocorreria porque, de acordo com a linguagem do precedente, os elementos que podem ser considerados pelo juiz para decidir a respeito da admissibilidade da prova científica são diversos (e.g., falsificabilidade, publicação em periódico com revisão por pares, taxa de erro e aceitação geral na comunidade científica); e nenhum deles foi considerado necessário ou mesmo suficiente.

Na análise de Mnookin, o precedente Daubert em si, como sugeriu Allen, de fato não nos diz se o controle da ciência que entra no processo, por parte do "juiz-porteiro", deve ser mais intenso ou não. Mas, em sua interpretação, que podemos classificar como sendo realista (no sentido técnico-jurídico), a previsão de um teste multifatorial aberto produziu um resultado ambíguo, pois simplesmente conferiu aos juízes a faculdade de se engajarem em um controle mais rigoroso da prova científica. Se quiserem, podem controlar de forma mais rigorosa a entrada de junk science. "Na prática, o que vimos" — afirmou Mnookin — "é que, no lado civil, Daubert levou a um escrutínio maior; mas, no lado do direito criminal, não muito — e isso é parte da história" (que ela então nos contou).

Não podemos colocar todas as cartas na mesa. Uma análise de toda a riqueza da conferência de Mnookin merece um artigo próprio. Mas podemos adiantar que, segundo ela, 13 anos depois do primeiro relatório oficial norte-americano sobre o estado preocupante das ciências forenses, produzido pela Academia Nacional de Ciências[2], muito pouco se fez para alterar esse quadro. O argumento central de Mnookin é de que um conjunto de "ficções fundacionais" — o que ela define como crenças, pressuposições e abordagens — ajudam a entender por que tivemos poucas mudanças nesta área. 

Workshop Evidential Reasoning and Cognitive Bias, por Marcella Mascarenhas Nardelli
No último dia de trabalhos (27/5), teve lugar a discussão sobre vieses cognitivos no raciocínio probatório, workshop coordenado por Andrés Páez e que contou também com Federico Arena, Moa Lidén, Mauricio Duce e Adam Benforado.

Os vieses cognitivos foram discutidos a partir de seus riscos epistêmicos, destacando-se os prejuízos advindos de determinadas práticas probatórias e regras processuais em seu potencial de maximizar os impactos nocivos. Deste modo, o alerta foi para que os sistemas jurídicos busquem um equilíbrio entre o interesse de preservar certos preceitos como a imediação e a vinculação dos precedentes, e o desejo de se obter decisões verdadeiras não contaminadas por vieses.

Por outro lado, as críticas ao emprego de generalizações com suporte estatístico foram enfrentadas com vistas a destacar seu potencial de suplantar a influência de vieses e outras formas de generalizações espúrias no raciocínio probatório.

As influências de fatores individuais (dos julgadores — relacionados ao seu país de origem, sexo biológico); contextuais (do caso — relacionados ao tipo de crime, país sob investigação, ocorrência de prisão pré-processual); foram exploradas em decisões de juízes do Tribunal Penal Internacional, a fim de estabelecer seu potencial de previsibilidade a partir da identificação dessas variáveis. Resultados preliminares da pesquisa apresentada identificaram algumas tendências a partir do perfil do julgador, além de sugerirem a influência de viés de confirmação — considerando que as chances de condenação eram 2,79 vezes maiores nos casos em que o mesmo juiz que decidiu sobre a prisão era também o que conduzia a etapa principal.

Bastante inusitada, por outro lado, foi a proposta de reorientação radical dos esforços comumente empregados para enfrentar os efeitos perversos dos vieses no processo judicial — considerados ineficazes para solucionar o problema. Ao invés de se persistir com uma abordagem focada em provas para a determinação da culpa e a punição correspondente, a ideia seria deslocar o foco para o uso da prova para a prevenção do crime. A influência dos vieses foi também discutida sob a perspectiva da prova pericial. Os principais fatores responsáveis por enviesar a análise de peritos foram apontados, ao mesmo tempo em que estratégias apresentadas para que os sistemas jurídicos consigam identificá-los e reduzir seus impactos. 

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Em colunas futuras, pretendemos apresentar as discussões de outros workshops, plenárias e cursos do evento. Essas foram apenas algumas das muitas atividades que, durante os últimos dias de maio, alimentaram as provocações teóricas tão necessárias às mudanças práticas que a determinação dos fatos merece. Foi gratificante ver reunidos em torno de um mesmo desafio — a prova — pesquisadores e operadores jurídicos de tantos continentes e realidades, o que também é representativo do enorme legado deixado pelo professor Michele Taruffo. Mais uma vez, a cidade de muralhas mostrou que o melhor estudo da prova não admite fronteiras.


[1] Para uma discussão extensa sobre os precedentes que compõem a chamada “Trilogia Daubert”, v. HERDY, R; DIAS, J. M. Condenados pela ciência: a confiabilidade das provas periciais. In: Antonio Santoro, Diogo Malan, Flávio Mirza. (Org.). Desafiando 80 anos de processo penal autoritário. 1ed.Belo Horizonte: D'Plácido, 2021, pp. 735-768.

[2] "Strengthening the Forensic Sciences in the United States: a Path Forward", 2003.

Autores

  • é professora de Direito Probatório da Universidad Alberto Hurtado (Chile), doutora em Direito pela Universitat de Girona (Espanha) e presta consultoria jurídica na temática da prova penal.

  • é professora de Teoria do Direito na UFRJ, doutora em Sociologia pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Iesp-Uerj) e co-líder do Grupo de Pesquisa Epistemologia Aplicada aos Tribunais (Great).

  • é doutora em Direito Processual pela Uerj, professora de Direito Processual Penal da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e autora do livro "A Prova no Tribunal do Júri", da Editora Lumen Juris.

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