Tribunal do Júri

Tribunal do Júri na Argentina como inspiração para o Brasil (parte 1)

Autores

  • Lisandra Panzoldo

    é pós-graduanda em Direito Processual Penal pela Faculdade Damásio e em Direito Probatório no Processo Penal pela Escola da Magistratura Federal (Esmafe) estagiária da Defensoria Pública de São Paulo - Unidade Júri (DPESP) e autora do livro O Tribunal do Júri no Brasil e na Argentina. Estudo Comparado" (também publicado na Argentina).

  • Rodrigo Faucz Pereira e Silva

    é advogado criminalista habilitado no Tribunal Penal Internacional (em Haia) pós-doutor em Direito (UFPR) doutor pelo Programa Interdisciplinar em Neurociências (UFMG) mestre em Direito (UniBrasil) e coordenador da pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI.

30 de julho de 2022, 8h05

Na Argentina, a província de Neuquén, em 2014, e a de Buenos Aires, em 2015, implementaram o modelo clássico de júri anglo-saxão. Desde então, todas das onze províncias que já têm lei de júri adotaram esse modelo com sucesso naquele país.

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Entretanto, a Constituição Argentina prevê, desde 1853, que todos os julgamentos criminais deveriam ser julgados por um juízo de jurados, sendo a implementação bastante tardia, em 2005, com um modelo escabinado, em que juízes leigos e profissionais decidiam o caso conjuntamente.

Essa evolução não linear do júri argentino, somado ao fato de que a recente implementação é considerada uma experiência de excelência, levanta a questão de como é possível um país de civil law executar com tanto êxito um modelo de júri da common law.

Para isso, a realidade do júri argentino vem sendo objeto de estudo e análise de diversos pesquisadores da América Latina e deve servir de inspiração para a nossa possível reforma processual penal.

Nas palavras do professor argentino Alberto Binder, o veredicto dos jurados "significa um momento solene da proclamação da verdade de um fato" [1] e, por isso, é importante que as devidas garantias estejam presentes em todo procedimento, desde o momento que nasce uma acusação até a presença de controles até a decisão final.

Assim, necessário entender algumas das principais garantias que o modelo argentino oferece — todos intrinsecamente vinculados ao sistema acusatório — e que auxilia na reflexão do modelo de júri no Brasil. As diferenças podem ser sentidas desde a etapa de investigação policial [2].

Na Argentina, a etapa pré-processual é diferente de como acontece por aqui, devido, também, ao modelo acusatório real já vigente em diversas províncias, e à consequente figura do juiz de garantias que confere ao processo maior imparcialidade e o direito a um julgamento justo.

Contribuindo para a celeridade dos processos, na fase de investigação há previsão de um prazo fatal — que realmente é fatal — para a conclusão das investigações, fase conhecida como Investigación Penal Preparatoria (IPP). Em Buenos Aires, por exemplo, ela não pode durar mais de quatro meses e o processo todo não pode ultrapassar dois anos caso o investigado esteja preso, conforme disposto nos artigos 141 e 282 do Código Procesal Penal de Buenos Aires (CPP-BA). Não se concluindo a investigação neste prazo e não havendo indícios para mandar o caso a julga­mento, o feito deve ser sobrestado, conforme artigo 323.6, CPP-BA.

Outro aspecto relevante do sistema processual argentino é a proibição da confissão do investigado em sede policial. Para que uma declaração seja tida como válida, o acusado deve poder conversar com um defensor. Na sequência, tal declaração precisa ser realizada na presença do promotor e após a leitura dos diretos que lhe assiste.

Essa questão conduz a outro fator de extrema pertinência: se ao acusado é conferido o direito de conversar com um defensor, por óbvio que, caso não tenha recursos, será disponibilizado um defensor público já nesta etapa, em pelo menos duas horas após ter sido detido. Com isso, também diminui a desigualdade de representação entre aqueles que possuem condição financeira para contratar um defensor particular e os que não possuem.

Mas não se trata de uma fase em que o contraditório e a ampla defesa estejam presentes em sua integralidade. Binder explica que, embora esta não seja uma etapa eminentemente contraditória, já é necessário proporcionar uma defesa ampla, eis que quanto mais precoce é o grau de formalização da culpa, maior a necessidade de defesa — até mesmo porque é este direito de defesa que assegurará todos os outros [3].

Sobre este tema, no precedente Escobedo v. Illinois, julgado pela Corte Suprema dos Estados Unidos, destacou-se que a partir do momento em que o averiguado passa a ser foco de investigação, o direito de contar com um advogado para assisti-lo se torna uma exigência constitucional, e que, na ausência do defen­sor, nenhuma declaração obtida em sede policial pode ser usada durante o processo criminal [4].

Passando para a fase do julgamento do caso, tem-se início com a audiência de seleção dos jurados, conhecida como voir dire, que em francês significa "dizer a verdade". É uma etapa de extrema importância em que são feitas perguntas aos potenciais jurados com o objetivo de descobrir se algum deles traz em sua bagagem algum viés ou preconceito que o impeça de julgar o caso com imparcialidade.

Andrés Harfuch, vice-presidente da Asociación Argentina de Juicio por Jurados (AAJJ) [5], renomado jurista argentino e de atuação destacada na implementação do júri em seu país, ensina que o voir dire é um dos dispositivos de controle necessário para chegar a um veredicto válido.

Permite-se perguntar os potenciais jurados sobre seus conhecimentos, experiências, valores, crenças, opiniões, ou seja, tudo exceto sobre o caso específico que será julgado. O objetivo é que que em cada processo seja garantido um tribunal competente, independente e imparcial [6]. Se as partes avaliarem que, por intermédio das respostas dos jurados, alguns deles possam ser parciais, elas (des)selecionam (recusam) aqueles jurados. Diz-se que os jurados são (des)selecionados, pois a seleção final não fica a cargo das partes, sendo ela realizada por sorteio eletrônico.

No caso Skilling v. United States 561 U.S. 358 (2010) [7] a Suprema Corte norte-americana enfrentou e ressaltou o enorme controle que as partes têm no voir dire em relação à verificação de imparcialidade daqueles que vão julgar o caso, especialmente em casos midiáticos.

Atualmente no Brasil a lei contempla apenas a possibilidade de recusas imotivadas (artigo 468 do CPP), as quais, por conta de sua sistemática, são insuficientes para filtragem dos potenciais jurados que sejam parciais. Esta coluna já abordou sobre o tema em diversos artigos [8], chamando atenção de como o voir dire poderia ser utilizado para o aprimoramento do júri, aumento da qualidade das decisões e para a diminuição do erro judicial. Trata-se de um ponto que não pode ser deixada de lado nas discussões sobre o novo Código de Processo Penal, pois se caracteriza como importante ferramenta para garantir um julgamento justo ao acusado.

Na próxima semana, a Parte 2 do artigo abordará a fase de instrução aos jurados, a quantidade de membros do Conselho de Sentença, bem como a forma de tomada de decisão. Mas, desde já, resta evidente que o Brasil — que neste ano comemora o bicentenário da instituição do Tribunal do Júri —, precisa urgentemente adotar um modelo verdadeiramente acusatório e democrático de júri. O exemplo argentino demonstra que sim, é possível.

 


[1] Conferência: "El juicio por jurados vino a salvar al juicio oral y público de su decadencia". Disponível em: http://www.juicioporjurados.org/2021/03/conferencia-magistral-de-alberto-binder.html. Acesso em: 11 jul. 2022.

[2] Os detalhes de cada ponto abordado aqui podem ser obtidos em: PANZOLDO, Lisandra. O Tribunal do Júri no Brasil e na Argentina. Estudo Comparado. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2022. (Esta obra também está disponível em espanhol: El Juicio por Jurados en Brasil y en la Argentina. Estudio Comparado. Ad-Hoc, Buenos Aires, 2022)

[3] BINDER, Alberto M. Introducción al derecho procesal penal — 2ª edición. Ad-Hoc – Buenos Aires 1999, p. 156.

[4] Escobedo v. Illinois, 378 U.S. 478 (1964) – U.S. Supreme Court.

[5] A AAJJ é uma associação civil sem fins lucrativos que visa a divulgar e promover o Tribunal do Júri na Argentina e América Latina. No site da Associação encontramos um vasto e rico material sobre o tema, doutrinas, legislação, vídeos, sentenças importantes de diversos tribunais do mundo, atualidades etc. Acessar: http://www.juicioporjurados.org/

[6] NICORA, Guillermo. Selección de jurados desde cero. Una primera mirada sobre las nuevas destrezas de litigio. Revista Pensamiento Penal, ed. 165, 2014.

[7] Neste caso a Suprema Corte entendeu que o voir dire foi realizado de maneira adequada, reconhecendo que o direito de ser julgado por um júri imparcial não foi violado. Acessar: https://www.supremecourt.gov/opinions/09pdf/08-1394.pdf

[8] Sugere-se a leitura dos artigos: "O voir dire como ferramenta para a seleção de jurados imparciais", "Peremptory challenges: as recusas imotivadas nos Estados Unidos", "Caso Boate Kiss': idoneidade dos jurados e paridade de armas (Parte 1)" e "Caso Boate Kiss': idoneidade dos jurados e paridade de armas (Parte 2)". Importante também a leitura do texto "Sistema de Escolha e de Recusa de Jurados: um paralelo entre o júri brasileiro e o júri estadunidense", de autoria de José Laurindo de Souza Netto e Ronaldo de Paula Mion, na obra "Estudos em Homenagem aos 200 anos do Tribunal do Júri no Brasil", publicado recentemente pela Revista dos Tribunais – Thomson Reuters Brasil.

Autores

  • é bacharelanda em Direito pela Universidade São Judas Tadeu (USJT), estagiária da Defensoria Pública de São Paulo - Unidade Júri e autora do livro "O Tribunal do Júri no Brasil e na Argentina. Estudo Comparado" (publicado também na Argentina).

  • é advogado criminalista, pós-doutor em Direito (UFPR), doutor pelo Programa Interdisciplinar em Neurociências (UFMG), mestre em Direito (UniBrasil), coordenador da pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI, professor de Processo Penal da FAE e do programa de mestrado em Psicologia Forense da UTP.

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