Tribunal do Júri

'Caso Boate Kiss': idoneidade dos jurados e paridade de armas (Parte 1)

Autores

  • Khalil Vieira Proença Aquim

    é advogado criminalista especialista em Direito Penal e em Processo Penal (UniBF) professor de Direito Penal (Faculdade Inspirar) e de Tribunal do Júri (ESA-PR) membro do Núcleo de Pesquisa em Tribunal do Júri (Nupejuri).

  • Rodrigo Faucz Pereira e Silva

    é advogado criminalista habilitado no Tribunal Penal Internacional (em Haia) pós-doutor em Direito (UFPR) doutor pelo Programa Interdisciplinar em Neurociências (UFMG) mestre em Direito (UniBrasil) e coordenador da pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI.

  • Denis Sampaio

    é defensor público titular do 2º Tribunal do Júri do Rio de Janeiro doutor em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Lisboa (Portugal) mestre em Ciências Criminais pela Ucam-RJ investigador do Centro de Investigação em Direito Penal e Ciências Criminais da Faculdade de Lisboa membro consultor da Comissão de Investigação Defensiva da OAB-RJ membro honorário do Instituto dos Advogados Brasileiros professor de Processo Penal e autor de livros e artigos.

11 de dezembro de 2021, 8h00

Nesta sexta-feira (10/12) se findou um dos maiores julgamentos de júri da história do Brasil. A comoção gerada pela tragédia, a repercussão midiática do caso e a transmissão virtual alavancada pelos tempos pandêmicos levaram os olhos de juristas e leigos de todo o país a acompanharem atentamente o julgamento que ocorreu em Porto Alegre. Não iremos comentar a decisão dos jurados, eis que, apesar de soberana, certamente será objeto de análise pelas instâncias superiores.

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Mas algo chamou atenção a todos aqueles que atuam no júri. Ao analisar requerimento preliminar formulado pela defesa de um dos advogados de defesa, o juiz presidente indagou aos representantes do Ministério Público se eles haviam feito consulta ao sistema de consultas integradas da Secretaria de Segurança Pública do Estado para análise dos potenciais jurados. Passada a palavra à representante ministerial, esta assim respondeu:

"Anualmente, quando nós temos a lista de jurados — até por isso que estou me manifestando, porque sou titular nas varas do júri e diretora da promotoria do júri —, o Ministério Público sempre apresenta impugnações à lista de jurados, e verifica a situação se nós temos jurados visitantes de apenados e se temos jurados com condenações criminais, porque a lei fala em idoneidade, todos os jurados que aqui então tem idoneidade, todos os jurados são verificados na questão da idoneidade. Uma das formas de pesquisa diz respeito a gente olhar e observar os sistemas que estão ao alcance do Ministério Público. Então anualmente todos os jurados que vão compor a lista do ano seguinte sempre são verificados para a observância desta idoneidade no ano anterior, e são feitas as impugnações. No ano passado inclusive foram excluídos diversos jurados porque tinham condenações criminais, porque tinham processos criminais em curso, e porque tinham visitas a apenados, ou porque já tinham sido presos, e quando a lei fala em idoneidade nós temos que zelar enquanto fiscais para que essa idoneidade não seja uma norma apenas escrita na lei e sim que ela seja cumprida como de fato ela é cumprida, e essa fiscalização é feita em todas as varas do júri da capital, de Porto Alegre. Então com esta minha resposta eu digo que sim, todos os jurados sempre são analisados anualmente" [1].

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A confirmação pela representante ministerial sobre o acesso a dados de centenas de cidadãos, o conhecimento íntimo sobre o perfil dos jurados e, mais do que isso, o critério de exclusão da lista de jurados de grupos de indivíduos foram alguns dos pontos que emergiram dessa assertiva ministerial, que obrigatoriamente precisam ser amplamente debatidos. Isso porque, desde já, fica clara a violação de diversos dispositivos legais e constitucionais, entre as quais o princípio da presunção de inocência, do contraditório, da imparcialidade pela luz da efetiva representatividade social e, até, em tese, da Lei Geral de Proteção de Dados.

Dessa forma, o artigo será dividido em duas partes. Hoje discutiremos a situação desnudada com a fala da promotora pelo viés da LGPD e da violação da paridade de armas. Na próxima semana, abordaremos pelo aspecto da grave violação do princípio da presunção de inocência e da necessidade da imparcialidade pela representatividade social efetiva.

Inicialmente, sob a ótica do efetivo acesso a dados pessoais, não é demais lembrar que está vigente no ordenamento jurídico brasileiro uma Lei Geral de Proteção de Dados, que regula o acesso e a utilização de dados pessoais, mas que, a despeito de promulgada no ano de 2018, ainda é tão desconhecida e violada por grande parte da sociedade e dos próprios operadores do Direito.

As hipóteses em que é permitido o acesso e o tratamento de dados pessoais estão todas expressas, restritivamente, no artigo 7° da lei. No caso de tratamento de dados pelo poder público, há de se observar ainda as regras previstas no artigo 23, devendo haver "claras informações sobre a previsão legal, a finalidade, os procedimentos e as práticas utilizadas para tal, informações disponibilizadas em veículo de fácil acesso, preferencialmente sítio eletrônico".

Em seu artigo 4°, III, a LGPD prevê exceção às restrições impostas pela lei no tratamento de dados pessoais "realizado para fins exclusivos de: a) segurança pública; b) defesa nacional; c) segurança do Estado; ou d) atividades de investigação e repressão de infrações penais". Na sequência, prevê o §1° do mesmo dispositivo que "o tratamento de dados pessoais previsto no inciso III será regido por legislação específica, que deverá prever medidas proporcionais e estritamente necessárias ao atendimento do interesse público, observados o devido processo legal, os princípios gerais de proteção e os direitos do titular previstos nesta Lei".

É dizer, portanto, que os dados pessoais somente podem ser acessados ou nos termos da LGPD, com respeito à finalidade específica do acesso e com indicação expressa e clara quando o poder público acessar tais dados, ou sem a necessidade de observar a LGPD nas hipóteses específicas, e na forma de legislação específica.

Na ausência de legislação específica, a lacuna gerada pelo artigo 4°, III, da LGPD é objeto de grande discussão e debate [2]. Para tanto, inclusive, foi instituída comissão pela Câmara dos Deputados para a elaboração de anteprojeto de lei da chamada LGPD Penal. O anteprojeto de lei, por sua vez, aborda os requisitos para o tratamento de dados pessoais nessas hipóteses:

"Artigo 9° — O tratamento de dados pessoais para atividades de segurança pública e de persecução penal somente poderá ser realizado nas seguintes hipóteses: I – quando necessário para o cumprimento de atribuição legal de autoridade competente, na persecução do interesse público, na forma de lei ou regulamento, observados os princípios gerais de proteção, os direitos do titular e os requisitos do Capítulo VI desta Lei; II – para execução de políticas públicas previstas em lei, na forma de regulamento, observados os princípios gerais de proteção, os direitos do titular e os requisitos do Capítulo VI desta Lei; III – para a proteção da vida ou da incolumidade física do titular ou de terceiro, contra perigo concreto e iminente".

Salienta-se, porém, que tanto o anteprojeto quanto a própria LGPD apontam como exceção às normas de tratamento de dados os fins de segurança pública, defesa nacional, defesa do Estado ou atividades de investigação e repressão de infrações penais.

A representante ministerial que se manifestou em plenário afirmando ter acesso aos dados pessoais (inclusive a dados sensíveis, nos termos da LGPD) afirmou que o acesso tem por finalidade verificar a "idoneidade" dos jurados. Não há, portanto, relação específica com nenhuma hipótese de exceção à aplicabilidade da lei, e nem mesmo à luz do anteprojeto regulamentador das exceções à LGPD. Ainda que houvesse, vale dizer, violaria o disposto no artigo 23, LGPD, pela ausência de informação clara aos cidadãos que têm sua intimidade devassada pelo Parquet. A ilegalidade resta absolutamente evidenciada!

Mas o problema vai além, eis que mitiga outro importante princípio conectado ao contraditório (e o próprio sistema acusatório): o da paridade de armas.

Todo profissional que atua perante o Tribunal do Júri sabe da importância de conhecer o jurado antes do julgamento. Cada um de nós tem vieses subjetivos que refletem nossa história, nossas experiências de vida, nossas opiniões, nossa forma de ver o mundo. Tais vieses são substanciais para conferir possibilidade de comunicação efetiva e, mais do que isso, influenciam na formação da tomada de decisão a partir do caso apresentado (e pouco muda para as tomadas de decisão dos juízes togados, diga-se de passagem). Por isso que seria fundamental ter aqui no sistema brasileiro o voir dire norte-americano [3], em que se possibilita conhecer — às claras e para ambas as partes — as eventuais predisposições subjetivas e fáticas, com vistas a buscar os jurados considerados imparciais para o julgamento de cada caso concreto.

Se um potencial jurado trabalha em um hospital e outro trabalha na construção civil, a forma de abordagem de temas de medicina legal ou laudo de local de morte são absolutamente distintas, e é crucial para o profissional ter o conhecimento a isso. Esse exemplo pode ser ampliado para diversas questões pessoais e sociais que são apresentadas em plenário.

No entanto, para embasar e preparar suas recusas imotivadas (ou peremptórias), também são relevantes os contatos e experiências pretéritas dos jurados. Um jurado que se envolveu em acidente, ou que foi vítima de crime, tem viés subjetivo potencialmente diferente daquele que apenas ouviu casos assim pela televisão.

Nesse sentido, ainda que se possa arguir que o trabalho de pesquisa e identificação do perfil de jurados seja de responsabilidade das partes, conferir acesso irrestrito ao órgão acusador a bancos de dados sigilosos aos quais a defesa não poderá chegar de forma lícita é uma forma de violação substancial à paridade de armas e ao efetivo contraditório.

É dizer: o mais dedicado defensor, ainda que empenhe todos os esforços possíveis, com acesso a plenos recursos, ainda teria preparação aquém do agente ministerial que igualmente zelasse pela busca, pelo fato de conseguir acesso a bancos de dados distintos.

Sobre esse ponto, o Superior Tribunal de Justiça se manifestou em 2017 justamente sobre a atuação do MP-RS e seu acesso a dados pessoais da lista anual de jurados [4]. Apesar de não conhecer do Habeas Corpus, assentou que o Parquet exerceria função de custos legis, e que não haveria óbice que a Defensoria Pública firmasse convênio nos mesmos moldes.

Sabemos, no entanto, que o referido entendimento não se mostra viável na prática. A extrema diferença estrutural entre Ministério Público e Defensoria Pública é notória em todo o território nacional. Há comarcas, inclusive, que sequer possuem órgãos da Defensoria Pública implementados, o que já indica a impossibilidade de firmar o referido convênio. Ademais, o que vem sendo identificado é a infeliz promoção de ações para minimizar o poder requisitório da Defensoria Pública, conforme pode ser observada pela ADI 6.852 proposta pela Procuradoria-Geral da República.

Nessa linha, o entendimento no julgado referido precisa ser revisto. Primeiramente à luz da paridade de armas, com atenção à garantia constitucional da plenitude de defesa no rito do júri, e à inalcançável equiparação por defensores públicos e privados (eis que, ainda que os(as) advogados(as) possuíssem os mesmos poderes conferidos à Defensoria, os defensores constituídos ainda estariam sem acesso à informação). Porém, ressalta-se que a decisão exarada foi anterior à vigência da LGPD que, como já apontado, não permite a possibilidade de tratamento de dados com essa finalidade.

Enfim, acusação e defesa precisam ter acesso às mesmas bases de dados sobre os jurados e demais envolvidos (testemunhas, acusados, vítimas). E, de qualquer forma, tais bases precisam estar de acordo às regras trazidas pela LGPD.

Na semana que vem versaremos sobre questões ainda mais sensíveis: a idoneidade do jurado e sua relação com o princípio da presunção de inocência e com a adequada representatividade social na lista geral dos jurados.


[1] Disponível pelo link https://www.youtube.com/watch?v=0VOdFiLLWLU&t=10596s, do minuto 2:55:30 ao minuto 2:57:25.

[3] Já escrevemos sobre esta fase do júri norte-americano em 3 de julho de 2021 em "O voir dire como ferramenta para a seleção de jurados imparciais".

[4] HC 342.390/RS, rel. ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, 5ª TURMA, julgado em 04/05/2017, DJe 10/05/2017.

Autores

  • é advogado criminalista, professor de direito penal na Faculdade Inspirar, especialista em Direito Penal e Processo Penal, membro do Conselho Estadual da Associação Paranaense dos Advogados Criminalistas (Apacrimi) e ex-presidente da Comissão de Advogados Iniciantes da OAB/PR.

  • é advogado criminalista, pós-doutorando em Direito (UFPR), doutor pelo Programa Interdisciplinar em Neurociências (UFMG), mestre em Direito (UniBrasil), professor de Processo Penal (FAE) e de Tribunal do Júri em pós-graduações (AbdConst, Curso Jurídico, UniCuritiba, FAE, Curso CEI) e coordenador do Núcleo de Pesquisa em Tribunal do Júri (Nupejuri).

  • é defensor público, titular do 2º Tribunal do Júri do Rio de Janeiro, doutor em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Lisboa, Portugal, mestre em Ciências Criminais pela Ucam-RJ e professor de Processo Penal.

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