Democracia e constitucionalidade

Relatoria de ADIs que questionam EC 123 está nas mãos de André Mendonça

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23 de julho de 2022, 9h50

Está nas mãos do ministro André Mendonça, do Supremo Tribunal Federal, a relatoria de duas ações diretas de inconstitucionalidade que questionam a Emenda Constitucional nº 123, criada por meio da PEC Kamikaze, aprovada a toque de caixa pelo Congresso Nacional neste mês.

Marcello Casal Jr/Agência Brasil   Ministro André Mendonça será o relator de ações que questionam a EC 123

Uma ADI (nº 7.212) foi protocolada na última segunda-feira (18/7) pelo Partido Novo, que questiona a validade da EC 123. A norma instituiu estado de emergência em 2022, ampliou o pagamento de benefícios sociais e estabeleceu diferencial de competitividade para os biocombustíveis.

A outra ação (ADI 7.231), com pedido de liminar, é de autoria da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), que argumenta que a emenda incorreu em desvio de finalidade, pois, embora seu objetivo anunciado pelo governo federal fosse enfrentar a crise gerada pela alta dos preços dos combustíveis, as medidas propostas revelaram o propósito de interferir ilegitimamente no processo eleitoral em curso.

Cabe a Mendonça, agora, uma decisão sobre as ADIs. Advogados ouvidos pela ConJur afirmam que, além do questionamento sobre a constitucionalidade da PEC e sua tramitação-relâmpago no Congresso Nacional, desrespeitando a Constituição Federal e as leis eleitorais, cabe também pedido de um mandado de segurança objetivando a suspensão temporária dos efeitos da EC 123 até o término do período eleitoral, ou até mesmo sua nulidade.

Restaurar a Carta Magna diante de tantos abusos ainda é possível, segundo Flávio de Leão Bastos, doutor em Direito e professor de Direito Constitucional da Universidade Mackenzie.

"Existe uma violação da Constituição, uma interpretação forçada, distante dos parâmetros de interpretação razoáveis, longe também das razões de fato que justificam a exceção que foi agora aberta. A lei eleitoral não permite esse tipo de medida, esse tipo de benefício a três meses das eleições, exceto em casos de situação de emergência. Esse estado de emergência não existe agora no Brasil de modo a justificar essa PEC. E por quê? Esse conceito de estado de emergência envolve imprevisibilidade, uma superveniência de uma catástrofe, de uma guerra, um conflito armado. E isso não existe porque a situação de desemprego, de fome, a questão da pandemia e a guerra na Ucrânia são fatos que já se desenrolam há meses. Não são fatos que se encaixam juridicamente na classificação de estado de emergência. Foi um estado de emergência fabricado. Não é um estado de emergência real. Isso viola a lei eleitoral. Isso viola a Constituição".

A contestação da ABI alega que a distribuição de recursos pelo governo federal a menos de três meses das eleições é uma violação dos princípios democrático, republicano e da moralidade da Administração Pública, além de desrespeitar o princípio da anualidade eleitoral previsto no artigo 16 da Constituição. O artigo prevê que as normas que modificam o processo eleitoral não devem ser aplicadas ao pleito que ocorrer no período de um ano da data do início de sua vigência.

Contudo, a ADI da entidade não solicita declaração de inconstitucionalidade da emenda em razão "do atual estado de crescimento da miséria e da insegurança alimentar" no país. A entidade explica que busca apenas minimizar os "efeitos eleitorais condenáveis da EC 123", decorrentes de sua "inconstitucionalidade flagrante".

A emenda constitucional foi promulgada no último dia 14. Ela liberou R$ 41,2 bilhões que não estavam previstos no orçamento e que serão utilizados pelo governo federal para custear o Auxílio Brasil, aumentar o valor do vale-gás e criar auxílios para taxistas e motoristas de caminhão, além de diminuir tributos do etanol.

De acordo com o jurista e professor Lenio Streck, a matéria veiculada na PEC Kamikaze é "terrivelmente inconstitucional". Ele afirma que tanto a Constituição quanto a jurisprudência do STF condenam a tramitação de propostas de emenda à Constituição que levam a abolição, mitigação ou minimização da proteção às cláusulas pétreas contidas nos incisos do artigo 60, parágrafo 4º, da Carta Magna brasileira.

"É uma situação grave por ser um movimento de diminuição das nossas instituições democráticas. Há como declarar a nulidade dessa PEC já promulgada", alerta o professor Paulo Modesto, da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia (UFBA), presidente do Instituto Brasileiro de Direito Público e membro do Ministério Público da Bahia.

A ABI pede que o STF confira às normas uma interpretação que proíba aos órgãos públicos federais a promoção de publicidade institucional dos benefícios sociais. Também solicita que a exploração eleitoral dos benefícios seja considerada abuso de poder político, passível de punição com base na legislação eleitoral.

"A PEC claramente foi pensada como artifício para burlar a Lei das Eleições, que veda expressamente a concessão de benefícios sociais novos em ano eleitoral. Para tanto  e de forma inédita — o Congresso fez constar no texto a declaração de estado de emergência, que é ato próprio do Poder Executivo, além de criar uma despesa de grande vulto sem previsão orçamentária, o que viola a regra constitucional de separação de poderes", explica Hélio Leitão, advogado, conselheiro federal da OAB, ex-presidente da OAB Ceará, doutor em Direito e ex-secretário da Justiça e Cidadania do Ceará.

A ação protocolada pelo Partido Novo destaca vício de tramitação da matéria no Congresso porque ficou inviabilizada a apresentação de emendas, suprimindo direito básico do mandato parlamentar.

Também é arguido que as hipóteses de estado de exceção previstas na Constituição  sítio e defesa — são taxativas e que o texto da EC cria nova modalidade por meio de emenda, afrontando os direitos e as garantias fundamentais, além do próprio federalismo.

A legenda aponta ainda violação ao direito ao voto direto, universal e periódico, uma vez que a norma busca efetuar a distribuição gratuita de bens em ano de eleição, o que, a seu ver, é proibido pelo princípio da anterioridade eleitoral, disposto no artigo 16 da Constituição.

"O STF, uma vez provocado, deve declarar essa norma inaplicável antes das eleições. Pode entrar em vigor, mas só surtir efeitos depois das eleições de outubro, para que não seja promovida a quebra da isonomia eleitoral", defende Paulo Modesto, que entende a situação criada como "inconstitucionalismo abusivo".

Há muito tempo, recorda Lenio Streck, "o Supremo Tribunal Federal vem admitindo a possibilidade de realização de controle dos atos provenientes do exercício do Poder Constituinte Reformador, seja quando já promulgada a emenda constitucional (STF, ADI 829-3/DF), seja quando ainda não promulgada a emenda, oportunidade em que se impugna a própria PEC (STF, MS 32.033, MS AgRg 24.667, e MS 20.257)".

"Nos termos dos referidos precedentes do Supremo, pode-se impugnar proposta de emenda à Constituição quando a sua tramitação violar regra procedimental afeta ao processo legislativo, ou quando a proposta for tendente a abolir, mitigar ou minimizar a proteção às cláusulas pétreas, previstas no artigo 60, §4º, da Constituição", observa Streck.

Quem pode propor uma ADI são os legitimados, que estão descritos no artigo 103 da própria Constituição brasileira. "No caso, o presidente da República, que aqui não faria isso, a Mesa da Câmara dos Deputados, a Mesa do Senado Federal, ou o procurador-geral da República, que também não vai fazer nada; mas também o Conselho Federal da OAB, as confederações sindicais, partidos políticos com representação no Congresso Nacional, as associações de classe de âmbito nacional, algum governador de estado, as mesas das assembleias legislativas dos estados. Eles estão todos no artigo 103. E somente essas autoridades poderiam propor. É um rol taxativo. Eles podem receber representações de outras entidades da sociedade civil para que adotem esta postura", explica Bastos.

"O Supremo Tribunal Federal, que poderá ser acionado por qualquer partido político, tem o dever de declarar a inconstitucionalidade dessa PEC. Essa competência teria sido do presidente da República, mediante veto, se tivesse sido um projeto de lei, diante da flagrante inconstitucionalidade do texto. Como se tratou de uma PEC, promulgada pelo Congresso e que independe de sanção, apenas o Supremo poderá sustá-la, se for provocado. Resta-nos saber se haverá ambiente institucional a tanto, diante das tantas fragilidades sociais presentes no Brasil e na iminência de uma eleição", afirma Leitão.

Diante de tantas dúvidas e incertezas, acrescenta o professor da Universidade Estadual da Paraíba Agassiz Almeida Filho, "não há como dissociar da PEC o elemento eleitoreiro e os abusos praticados por Arthur Lira (presidente da Câmara dos Deputados) e a direção da Mesa para a sua aprovação. Por outro lado, a PEC pretende minimizar certos aspectos da crise econômica que assola o país, o que levou também a oposição a apoiá-la. Creio que seu impacto sobre a crise econômica pesa mais do que os vícios de origem da PEC. Há pouquíssima margem política para que o STF declare sua inconstitucionalidade em caso de provocação. Não há ambiente para isso no momento".

ADI 7.123
ADI 7.212

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