Opinião

Não é só perigosa e irresponsável. PEC Kamikaze é inconstitucional

Autor

  • Matheus Pimenta de Freitas

    é advogado e sócio administrador do escritório Pimenta de Freitas Advogados mestrando em Direito pela UnB (Universidade de Brasília) professor de Direito Constitucional do IDP e coordenador do Grupo de Estudos e Pesquisa em Direito Eleitoral da UnB.

6 de julho de 2022, 10h07

Os governos com mentalidade autoritária, surgidos da onda populista, têm mostrado comportamentos comparáveis. Uma das características comuns é a construção de ameaças e inimigos imaginários para justificar medidas restritivas e recuos reacionários. O escritor José Eduardo Agualusa lembrou em uma de suas crônicas para O Globo os grilos de Havana, cujo estrídulo atormentou os ouvidos delicados de funcionários da embaixada americana em Cuba. Foram usados para justificar a chamada dos diplomatas para casa e uma investigação sobre a ameaçadora arma acústica cubana. Não passavam de grilos estridentes.
(ABRANCHES, Sergio. O tempo dos governantes incidentais, p. 88)

Spacca
Em 30/6/2022, o Senado aprovou a PEC 1/2022, apelidada de PEC Kamikaze e de PEC do Desespero. Ou de PEC das Bondades. Ou do Vale Tudo. Os dois turnos de votação, exigidos pelo artigo 60, §2º, da Constituição, foram realizados naquele mesmo dia, a toque de caixa. Aprendemos que um minuto pode valer por um dia. Agora, o texto segue para votação na Câmara dos Deputados, que poderá aprovar ou rejeitar a medida.

Na essência, a proposta de emenda à Constituição, se aprovada, acrescentará à Carta texto que:

a) reconhecerá, em todo o ano de 2022, suposto (ficticio) "estado de emergência decorrente da elevação extraordinária e imprevisível dos preços do petróleo, combustíveis e seus derivados e dos impactos sociais deles decorrentes"; e
b) ampliará os benefícios sociais pagos pelo governo à população brasileira, em pleno ano eleitoral.

Muito se tem dito a respeito da referida proposta. Condena-se a finalidade eleitoreira da medida — a qual prevê, literalmente, a distribuição de dinheiro, pelo atual governo, ao eleitorado, a menos de 03 meses da data de realização das eleições 2022.

Denuncia-se a irresponsabilidade fiscal inerente à proposta — a PEC prevê gasto superior a R$ 41 bilhões até o fim do ano para a expansão dos benefícios sociais, valores que não precisarão observar nem o teto de gastos, nem a regra de ouro e tampouco a Lei de Responsabilidade Fiscal.

Desaprova-se, ainda, o risco institucional de se submeter o país a um denominado "estado de emergência", justamente em ano eleitoral, sem que saiba, ao certo, o que isso significa — a figura do estado de emergência não possui qualquer previsão constitucional.

Parece não haver controvérsia relevante sobre os aspectos deletérios acima elencados. Mas não é só. Além de possuir finalidade eleitoreira, ser irresponsável do ponto de vista orçamentário e perigosa do ponto de vista institucional, pode-se afirmar que, juridicamente, a PEC Kamikaze é inconstitucional — se é que falar nesse tema (Constituição) ainda é importante…

O fato de as medidas aventadas serem veiculadas por meio de proposta de emenda à Constituição — a qual tem o condão de modificar o próprio texto constitucional —, ao contrário do que possa parecer, não as imuniza de sofrerem controle de constitucionalidade. Afinal, uma PEC não funciona como na Lenda do Barão de Münschausen, em que, afogando-se no pântano, puxa-se a si mesmo pelos cabelos, junto com o cavalo. Uma PEC não autoproduz constitucionalidade. Imaginemos uma PEC que transformasse todos os dispositivos legais para dentro da Constituição. Por um passe de mágica, não haveria mais inconstitucionalidades. Fantástico, não? Pois a PEC Kamikaze faz mais ou menos isso.

Há muito, o Supremo Tribunal Federal vem admitindo a possibilidade de realização de controle dos atos provenientes do exercício do Poder Constituinte Reformador, seja quando já promulgada a emenda constitucional (STF, ADI 829-3/DF), seja quando ainda não promulgada a emenda, oportunidade em que se impugna a própria PEC (STF, MS 32.033, MS AgRg 24.667, e MS 20.257).

Nos termos dos referidos precedentes do Supremo, pode-se impugnar proposta de emenda à Constituição quando a sua tramitação violar regra procedimental afeta ao processo legislativo, ou quando a proposta for tendente a abolir, mitigar ou minimizar a proteção às cláusulas pétreas, previstas no artigo 60, §4º da Constituição.

É justamente o que acontece em relação à PEC Kamikaze, que afeta os direitos e garantias individuais, o direito ao voto livre e o federalismo, cláusulas pétreas previstas respectivamente nos incisos IV, II e I do artigo 60, §4º, da Constituição Federal. É pouco?

Os direitos e garantias individuais são comprometidos na medida em que não há qualquer definição minimamente concreta quanto ao chamado estado de emergência. Trata-se de um "estado de emergência" Humpty Dumpty: "eu dou ao estado de emergência o conceito que quero". A Constituição Federal, com efeito, não prevê em seu corpo qualquer menção a essa figura. Não se sabe ao certo, com efeito, quais seriam as consequências do reconhecimento desse estado de emergência, quais os limites a serem observados pelo Poder Público durante o período e, principalmente, se haveria restrições às liberdades democráticas dos cidadãos.

Hoje, a Constituição brasileira prevê apenas duas modalidades de estado de exceção, quais sejam, o Estado de Defesa (artigo 136 da CF/88) e o Estado de Sítio (artigo 137 da CF/88). Ambas as figuras preveem a possibilidade de restrição de direitos e garantias individuais. Por outro lado, possuem limitações claramente previstas no texto constitucional, que exige justificativa plausível, limitação temporal e definição nítida sobre as formas de execução das normas durante sua vigência e sobre os direitos que serão restringidos.

O estado de emergência previsto na PEC Kamikaze, por sua vez, não possui qualquer definição minimamente concreta dessas questões, razão pela qual expõe sobremaneira os direitos e garantias individuais dos brasileiros, justamente em ano eleitoral.

Importante registrar, aliás, que, em Portugal, a figura análoga ao Estado de Defesa brasileiro, denomina-se justamente Estado de Emergência, e importa, igualmente, em restrição de direitos e liberdades individuais. Todavia, diferentemente da versão brasileira que se pretende açodadamente instituir por meio da PEC Kamikaze, o Estado de Emergência português possui limitações expressamente definidas na constituição portuguesa (artigo 19), assim como o Estado de Defesa brasileiro (artigo 136, da CF/88).

No que diz respeito à limitação temporal, por exemplo, o art. 19, 5, da Constituição de Portugal afirma que o Estado de Emergência português não terá duração superior a 15 dias, sem prejuízo de renovação. O artigo 136, §2º, da Constituição, afirma que "o tempo de duração do estado de defesa não será superior a 30 dias, podendo ser prorrogado uma vez, por igual período, se persistirem as razões que justificaram a sua decretação". Por seu turno, o estado de emergência delineado na PEC Kamikaze não prevê um período curto de duração, mas declara o referido estado de exceção durante todo o ano de 2022.

Vale ressaltar, por oportuno, que o termo Estado de Emergência não é inédito na história constitucional brasileira. Com efeito, na Constituição de 1937 — Carta de cunho autoritário, outorgada para reger a ditadura Vargas — a referida modalidade de estado de exceção estava prevista nos artigos 166 e seguintes do texto constitucional, e resultava em graves restrições de direitos fundamentais dos cidadãos.

Portanto, é preciso revelar com clareza o que se pretende implementar. Temos de dar nome às coisas. Estamos criando uma terceira modalidade de estado de exceção no Brasil. Em que essa nova modalidade se aproxima do Estado de Emergência português ou aquele existente na Ditadura Vargas? No futuro, a próxima crise econômica possibilitará que novo estado de emergência seja reconhecido? Veja-se o monstro em gestação. A cada eleição isso poderá ser feito? Inclusive para possibilitar a distribuição de benesses ao eleitorado na véspera da eleição, sem necessidade de observância ao teto de gastos e a qualquer regra de responsabilidade fiscal? Inclusive por outro governo? Quais limites devem ser observados? Ou não há limites? Vale tudo? Estado de Emergência Eleitoral? Ou Estado de Natureza Eleitoral, para imitar o clássico conceito de Hobbes?

Parece necessário lembrar que a proposta prevê que essas benesses sejam pagas com dinheiro público. Recursos que se destinariam à saúde, educação e assistência social serão utilizados como instrumento de propaganda eleitoral. É dizer: também os direitos sociais, sobretudo da população carente, são afetados pela PEC Kamikaze. Ou seja, o kamikaze se mata, mas a explosão tem efeitos colaterais…!

Adicionalmente, a proposta também mitiga o direito ao voto direto, secreto, universal e periódico — cláusula pétrea prevista no artigo 60, §4o, II, da Constituição.

Com efeito, o direito ao voto pressupõe que o voto seja livre de qualquer influência que vicie o processo de escolha. Pressupõe também que a escolha seja feita entre candidatos que detenham as mesmas oportunidades de se apresentar aos eleitores, com paridade de armas. Isso para que o resultado das urnas reflita, ao fim, a vontade livre do povo, preservando-se a legitimidade das eleições e, em último grau, a própria soberania popular.

A nosso ver, não se respeita o direito ao voto livre e nem a paridade de armas entre os candidatos quando se possibilita a distribuição de benesses aos eleitores a menos de três meses da realização do pleito eleitoral, por parte de um governo cujo chefe será candidato a reeleição.

Ademais, para além de colocar em risco os direitos fundamentais, o texto que a PEC pretende incluir na Constituição abalará o federalismo, na medida em que fará com que os estados, Distrito Federal e municípios engulam à força um regime financeiro e tributário excepcional, insustentável, e com o qual, certamente, não concordam. (veja-se)

A toda evidência, portanto, além de questionável do ponto de vista político, fiscal e institucional, entendemos que a PEC Kamikaze é flagrantemente inconstitucional por:

  1. buscar incluir, por vias oblíquas, uma terceira modalidade de estado de exceção na Constituição Federal, sem as restrições previstas para o Estado de Sítio e de Defesa, em manifesta ameaça aos direitos e garantias individuais dos brasileiros;
  2. mitigar a proteção dos direitos sociais, que ficarão descobertos, em alguma medida, com o saque não previsto dos cofres públicos;
  3. afetar o direito ao voto livre, que pressupõe tanto paridade de armas entre os candidatos, quanto que a escolha seja tomada sem vícios;
  4. enfraquecer o pacto federativo.

Desse modo, espera-se, com esperança, que a emenda constitucional pretendida a partir da PEC Kamikaze não seja promulgada.

Numa palavra final: com tudo o que está nessa Proposta de Emenda Constitucional, o parlamento está transformando a nossa Constituição em um ornitorrinco. O que é esse bicho, que tem bico de pato, põe ovos, tem corpo de castor, não voa e não nada?

Autores

  • é advogado e sócio administrador do escritório Pimenta de Freitas Advogados, mestrando em Direito pela Universidade de Brasília (UnB), professor de Direito Constitucional do IDP e coordenador do Grupo de Estudos e Pesquisa em Direito Eleitoral da UnB.

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