Paradoxo da Corte

Relevância da questão federal como requisito de admissibilidade do REsp

Autor

  • José Rogério Cruz e Tucci

    é sócio do Tucci Advogados Associados ex-presidente da Aasp professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas e do Instituto Brasileiro de Direito Processual e conselheiro do MDA.

19 de julho de 2022, 8h01

A Câmara dos Deputados aprovou na última semana a Proposta de Emenda à Constituição 39/2021, formulada há alguns anos pela senadora Rose de Freitas, do MDB do Espírito Santo, quando ela era deputada federal. No Senado, a PEC foi objeto de emendas que aperfeiçoaram o texto, mantendo a essência do projeto originário.

Spacca
O relatório da deputada Bia Kicis (PL-DF) foi aprovado pelos deputados com 400 votos favoráveis no primeiro turno e 366 no segundo. O texto segue agora à promulgação. Registra, a propósito, Marco Aurélio Franqueira Yamada, que, para reforçar as justificativas em prol da aprovação da proposta, o parecer da Comissão Especial da Câmara dos Deputados, rico em estatísticas e argumentos técnicos, trouxe levantamento numérico de julgamentos pelo Superior Tribunal de Justiça, mencionando que: "As estatísticas são particularmente eloquentes: o STJ julgou apenas 3.711 processos em 1989, primeiro ano de seu funcionamento. Dez anos depois, em 1999, essa cifra anual já chegava a 128.042, passando a 328.718 em 2009, e a 543.381 em 2019, até atingir espantosos 560.405 processos apenas no ano de 2021. Em levantamento específico sobre o julgamento de recursos especiais, consta no parecer que: 'o Superior Tribunal de Justiça julgou modestos 856 recursos em 1989, seu primeiro ano de funcionamento. Esta cifra chegou a 106.984 em 2008, com picos semelhantes em 2003 (100.096), 2005 (104.918), 2017 (101.123) e 2018 (100.665), segundo dados informados a esta Relatoria pelo próprio tribunal. Mais recentemente, o Superior Tribunal de Justiça julgou 72.311 recursos especiais somente em 2021 — número mais baixo, mas nem por isso menos impressionante'…" (Migalhas, 14/7/22).

A denominada "PEC da Relevância", como ficou conhecida, altera a redação do artigo 105 da Constituição, para inserir um novo requisito intrínseco de admissibilidade do recurso especial, tanto na esfera civil quanto na criminal.

Assim como ocorre com o recurso extraordinário, no qual a parte interessada deve apontar a "repercussão geral" do objeto da impugnação, o precípuo objetivo da reforma agora aprovada é o de estabelecer mais um "filtro" visando à diminuição de recursos endereçados ao Superior Tribunal de Justiça.

A partir da promulgação da referida emenda, sem previsão de vacatio legis, a nova regra impõe ao recorrente o ônus de demonstrar a relevância da questão ou questões federais infraconstitucionais deduzidas como fundamento do recurso especial.

O conhecimento desse meio de impugnação fica agora condicionado, além do preenchimento dos outros requisitos de admissibilidade, a tal demonstração, que, na prática, deve ser deduzida num capítulo preambular das razões recursais, no qual o recorrente apontará a transcendência da matéria. É dizer: o litigante tem o ônus de evidenciar que a quaestio iuris a ser decidida pelo Superior Tribunal de Justiça ostenta uma relevância que ultrapassa o interesse subjetivo das partes, ou seja, é caracterizada por um interesse geral. Essa relevância deve ser diagnosticada pelas perspectivas jurídica, econômica e social.

Correndo o risco de olvidar questão que guarda relevância, o Congresso Nacional preferiu inserir na redação aprovada algumas hipóteses nas quais ela já vem presumida, a saber:

"Art. 1º — O art. 105 da Constituição Federal passa a vigorar com as seguintes alterações:

'Art. 105…

§ 1º…

§ 2º. No recurso especial, o recorrente deve demonstrar a relevância das questões de direito federal infraconstitucional discutidas no caso, nos termos da lei, a fim de que a admissão do recurso seja examinada pelo Tribunal, o qual somente pode dele não conhecer com base nesse motivo pela manifestação de 2/3 (dois terços) dos membros do órgão competente para o julgamento.

§ 3º. Haverá a relevância de que trata o § 2º deste artigo nos seguintes casos:

I – ações penais;
II – ações de improbidade administrativa;
III – ações cujo valor da causa ultrapasse 500 (quinhentos) salários mínimos;
IV – ações que possam gerar inelegibilidade;
V – hipóteses em que o acórdão recorrido contrariar jurisprudência dominante o Superior Tribunal de Justiça;
VI – outras hipóteses previstas em lei".

Importa observar que a rejeição do conhecimento do recurso especial pela ausência de relevância exige quórum qualificado, ou seja, 2/3 da respectiva turma julgadora.

Verifica-se ademais que a redação aprovada (artigo 2º) autoriza o recorrente, no momento da interposição do recurso especial, atualizar o valor da causa para atender à hipótese do inciso III, acima transcrita (500 salários mínimos).

O texto também deixa aberto o rol, no inciso VI, para "outras hipóteses previstas em lei", ou ainda — presumo eu — para situações que certamente emergirão da dinâmica social, como, por exemplo, aquelas atinentes aos direitos da personalidade (exatamente como ocorre com a chamada "taxatividade mitigada" do artigo 1.015 do Código de Processo Civil).

Entendo que a redação aprovada se descortina muito mais técnica do que aquela constante da proposta original, extremamente genérica, despida de um critério mínimo que permitisse uma filtragem mais objetiva e adequada.

Seja como for, essa novel reforma do texto constitucional limitará substancialmente o número de recursos que podem ser submetidos à apreciação do Superior Tribunal de Justiça.

Com efeito, segundo o ponto de vista do presidente do Superior Tribunal de Justiça, ministro Humberto Martins, "a PEC corrige uma distorção do sistema, ao permitir que o Superior Tribunal de Justiça se concentre em sua missão constitucional de uniformizar a interpretação da legislação federal. A Corte, uma vez implementada a emenda constitucional, exercerá de maneira mais efetiva seu papel constitucional, deixando de atuar como terceira instância revisora de processos que não ultrapassam o interesse subjetivo das partes".

É claro que em termos de economia processual e eventualmente de celeridade, esta significativa alteração constitucional poderá de fato corresponder às expectativas da sociedade. Contudo, pela experiência que todos nós advogados do contencioso temos da famigerada "jurisprudência defensiva", doravante, serão certamente redobradas as dificuldades que o jurisdicionado enfrentará para que um recurso especial seja admitido!

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!