Território Aduaneiro

Por que ler os clássicos? (versão Direito Aduaneiro)

Autor

  • Rosaldo Trevisan

    é doutor em Direito (UFPR) professor assessor/consultor da Organização Mundial das Aduanas (OMA) do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional (FMI) auditor-fiscal da Receita Federal membro especialista do Carf e membro da Junta Diretiva da Academia Internacional de Direito Aduaneiro (Icla).

12 de julho de 2022, 8h03

Registro aqui, de início, a satisfação de ter participado de obra recém-publicada em homenagem a um de nossos grandes autores aduaneiros: Roosevelt Baldomir Sosa. A convite de Angela Sartori, que conviveu com Roosevelt, no seio familiar [1], tive a honra de redigir o primeiro artigo da obra "Controvérsias Atuais do Direito Aduaneiro — Homenagem ao Mestre Roosevelt Baldomir Sosa", intitulado "O Aduaneiro e o Tributário em Roosevelt Baldomir Sosa" [2].

Spacca
Roosevelt foi o autor que mais publicou livros sobre Direito Aduaneiro no Brasil. Suas nove obras, que vão dos "Comentários à Lei Aduaneira", em 1992, ao "Glossário de Aduana e Comércio Exterior", em 2000, representam percentagem substancial do que se escreveu sobre Direito Aduaneiro em nosso país, no século passado.

Seus textos influenciaram gerações de aduaneiros no Brasil, e, sentindo-me um dos agraciados por tal influência, busquei no artigo de homenagem resumir cada uma dessas nove obras, identificando a evolução do pensamento de Roosevelt, não só em seus textos, mas nas referências invocadas, com destaque para a oitava obra ("Temas Aduaneiros: estudo sobre problemas aduaneiros contemporâneos", de 1999), que reflete o elevado grau de maturidade de quem frequentava o efervescente círculo de debates aduaneiros do Instituto Brasileiro de Estudos Aduaneiros (Ibea) [3], e já transitava em foros internacionais [4].

Os três parágrafos iniciais com menção à homenagem a Roosevelt operam como ignição para o tema de nossa coluna de hoje. A quem desejar conhecer um pouco mais sobre a homenagem, sugiro a leitura da obra indicada ao início, com os riscos sempre existentes em livros do gênero [5]. Mas a quem desejar entender os ensinamentos de Roosevelt Baldomir Sosa, e emitir juízo próprio sobre sua contribuição ao Direito Aduaneiro brasileiro, recomendo a leitura direta de seus nove livros.

Isso remete a outra obra de homenagem da qual tive a satisfação de participar, a meu orientador de doutorado na UFPR, o professor José Roberto Vieira, um dos grandes tributaristas brasileiros em atividade. Nessa ocasião, busquei, no artigo, recordar ensinamentos recebidos, com pano de fundo na "teoria kelseniana", concluindo que a melhor forma de compreender as lições de um autor é lendo sua obra [6].

Creio que o leitor atento (principalmente ao título) já percebeu onde quero chegar. O tratamento científico de um tema é efetuado a partir do que já foi escrito, principalmente de obras tidas como "clássicas".

O título ("Por que ler os clássicos?") é claramente extraído da obra do escritor Italo Calvino ("Perché leggere i classici") [7], agregando uma interrogação e um complemento aduaneiro. Os "clássicos" reunidos na coletânea de Calvino (entre eles, Ovídio, Dickens, Flaubert, Tolstoi, Twain, Hemingway e Borges) são, como todas as obras assim categorizadas, atemporais.

Não é fácil definir um clássico. Calvino aponta, no entanto, algumas características [8]. A primeira delas sugere que os clássicos são livros dos quais, em geral, se ouve dizer: "estou relendo", mas nunca "estou lendo", porque é normal que as pessoas se envergonhem por não terem lido tais obras. Em verdade, toda releitura de um clássico é uma leitura de descoberta como a primeira. E, desenvolvendo o raciocínio: "Os clássicos são aqueles livros que chegam até nós trazendo consigo as marcas das leituras que precederam a nossa e atrás de si os traços que deixaram na cultura ou nas culturas que atravessaram (ou mais simplesmente na linguagem ou nos costumes)" [9].

O conhecimento é cumulativo. Como na famosa frase usada por Isaac Newton em carta para Robert Hooke ("Se eu vi mais longe, foi por estar sobre ombros de gigantes"), o conhecimento se desenvolve continuamente, em qualquer ramo da ciência, e a necessidade de leitura de estudos anteriores não se presta unicamente a endosso, mas pode resultar também em sua refutação [10]. Italo Calvino também tem a sua forma de tratar dos ombros de gigantes: "Um clássico é um livro que vem antes de outros clássicos; mas quem leu antes os outros e depois lê aquele, reconhece logo o seu lugar na genealogia" [11].

Pousando no Direito Aduaneiro, pode-se afirmar que tratar de um tema sem conhecer o que sobre ele foi previamente escrito, principalmente nos "clássicos", pode revelar o pecado da ignorância, da preguiça ou da soberba, sendo difícil identificar uma hierarquia de negatividade entre eles.

A título exemplificativo, ninguém desenvolveria, hoje, impunemente, estudo acadêmico sobre a Organização Mundial do Comércio, ignorando as obras de John H. Jackson, ou Peter Van den Bossche, e ninguém trataria da história das aduanas no mundo sem passar pelas análises efetuadas por Ricardo Xavier Basaldúa e Hironori Asakura. Seria, ainda desafiante, escrever sobre o contrabando, no Brasil, sem tratar da obra de Augusto Olympio Viveiros de Castro, que já analisamos nesta coluna [12].

Mas como identificar quais seriam as obras clássicas aduaneiras? Calvino aponta um caminho: a busca pelo lugar na genealogia. Uma boa obra sempre invoca diversas referências bibliográficas, e é nelas que se encontram as fontes de inspiração do autor. E, pesquisando essas fontes de inspiração, saberemos sua gênese, sucessivamente, até os primórdios do estudo do tema.

Certamente foi difícil a coleta de fontes para Achille Cutrera escrever, em 1927, os seus "Principii di Dirittto e Politica Doganale", assim como deve ter sido complicado encontrar referências bibliográficas para os estudos clássicos e pioneiros de Direito Aduaneiro no Brasil, efetuados, por exemplo, por Gerson Augusto da Silva, José Lence Carluci e Roosevelt Baldomir Sosa.

Essa realidade felizmente mudou. Além de ser atualmente mais fácil o acesso a publicações internacionais (inclusive as disponíveis em sites de organizações) e a bancos de teses e dissertações de universidades, o volume de obras sobre Direito Aduaneiro no Brasil tem aumentado significativamente nos últimos anos [13], de modo que é raro encontrar um tema, mesmo no reduzido universo aduaneiro, sobre o qual ninguém tenha escrito.

Daí a importância crescente de uma boa pesquisa bibliográfica antes de desenvolver estudo sobre qualquer tema aduaneiro, aproveitando que, no Brasil, ainda que tenha crescido a produção, como noticiado, ainda é possível compilar toda a bibliografia existente, e não apenas os clássicos.

Só assim podemos contribuir para o desenvolvimento do Direito Aduaneiro no país, com estudos que não ignorem, mas partam da produção bibliográfica já existente, ainda que para refutá-la [14]. E, ao analisar a produção existente, e suas fontes inspiradoras, acabamos caminhando em direção aos "clássicos" (ou, ao menos, a textos pioneiros que não resistiram a fundamentadas refutações).

Em coluna anterior, ao analisarmos o "benchmarking aduaneiro" [15], chegamos a conclusão parecida, no sentido de que ao elaborarmos nossas normas, não podemos descuidar de como a comunidade internacional trata dos temas, e de soluções internacionais e de Direito Comparado já aplicadas aos mesmos problemas que buscamos resolver. Essa necessidade de observância do cenário internacional, aliás, é apanágio da coluna [16].

Quando publicamos uma norma com teor que não encontra paralelo mundo afora, deveríamos ter estudos técnicos/científicos a justificar tal medida, de modo a servirmos de exemplo para os demais países. E isso pressupõe saber como os demais países enfrentaram problemas semelhantes [17].

Do mesmo modo, nossas produções não podem ignorar o que de mais profundo se escreveu sobre temas aduaneiros, os chamados "clássicos".

A essa altura, já imagino que o leitor esteja a se perguntar: afinal de contas, quais são, em sua opinião, os clássicos aduaneiros? Italo Calvino, apesar de não ter sido aduaneiro, certamente responderia com outra pergunta: quais livros de Direito Aduaneiro você teria vergonha de dizer que não leu?

 


[1] Ângela é filha de Sonia Matter, também aduaneira (auditora da RFB já aposentada), esposa de Roosevelt, com quem tive a satisfação de conversar em homenagem anterior, no canal "Portal Aduaneiro", no YouTube, disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=R2-xLOyijRE&t=604s.

[2] O leitor encontra uma amostra do texto do artigo (quatro páginas iniciais) em: https://multieditoras.com.br/produto.asp?id=6382&site=1.

[3] Instituto que Roosevelt chamou carinhosamente de "A Velha Senhora" ao final de sua oitava obra, homenageando seus colegas de IBEA Ângelo Oswaldo Melhorança, Antonio Carlos Gonçalves, Antonio Carlos Portinari Greggio, Flávio Antonio Queiroga Mendlovitz, Genival de Souza, Haroldo Gueiros Bernardes, Itamar Vieira da Costa, José Lence Carluci, José Luiz Falcão Borja, José Maria Paz e José Nicola Benedetti (SOSA, Roosevelt Baldomir. Uma crônica fora de lugar: a velha senhora, in: Temas Aduaneiros: estudo sobre problemas aduaneiros contemporâneos. São Paulo: Aduaneiras, 1999, p. 167-168).

[4] Ao concluir o artigo em homenagem a Roosevelt Baldomir Sosa, compartilhei o texto com duas grandes autoridades mundiais em Direito Aduaneiro que muito admiro, os amigos Ricardo Xavier Basaldúa e Enrique Carlos Barreira, que foram uníssonos em me responder que tinham boas recordações de conversa travada com Roosevelt em almoço em Puerto Madero/Buenos Aires. Ainda em 1998, Barreira passa a incluir Roosevelt em suas referências, no texto "La Obligación Tributaria Aduanera y el hecho gravado por los derechos de importación", disponível em: http://www.iaea.org.ar/category/biblioteca/page/2. Basaldúa, em 1999, faz referência a obras de Roosevelt em seu "Mercosur y Derecho de la Integración".

[5] Parafraseando a menção de Celso D. Albuquerque Mello aos prefácios (no prefácio à 11ª edição/1997, de seu "Curso de Direito Internacional Público"), e adaptando-a às notas de rodapé, podemos afirmar que "a grande vantagem das notas de rodapé é não serem lidas; serem totalmente ignoradas". Daí podermos aqui registrar nosso protesto quase escondido aos artigos de "homenagens": que sequer citam o homenageado, ou o citam aqui ou acolá a título de endosso, o que é igualmente desalentador, mas certamente mais diplomático.

[6] TREVISAN, Rosaldo. Para Entender Kelsen… (Um convite à obra de Kelsen, como um Tributo ao Professor José Roberto Vieira). In: VALLE, Maurício Dalri Timm do; VALADÃO, Alexsander Roberto Alves; DALLAZEM, Dalton Luiz (coord.). Ensaios em Homenagem ao Professor José Roberto Vieira: ao mestre e amigo, com carinho… São Paulo: Noeses, 2017, p. 1013-1047. Aqui a homenagem é ainda mais gratificante, porque em vida, permitindo que o homenageado possa ler o texto, e sobre ele conversar conosco.

[7] A obra já foi traduzida para o português (por Nilson Moulin), e pode ser encontrada em sua 2ª edição em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4411070/mod_resource/content/1/Por%20que%20ler%20os%20Cl%C3%A1ssicos%3F%20.pdf.

[8] Por delimitação de espaço, não trazemos aqui todas as características apontadas por Calvino, mas apenas algumas, pinçadas a nosso juízo, por pertinência com o que se busca explorar na coluna.

[9] CALVINO, Italo. Por que ler os clássicos. Trad. Nilson Moulin. São Paulo: Cia. Das Letras, 1993, p. 11.

[10] Tratamos desse tema em "Ombros de gigantes: o conhecimento científico e sua evolução" (TREVISAN, Rosaldo. A Importância do Ensino do Direito Aduaneiro Internacional. In: TREVISAN, Rosaldo (org.). Temas Atuais de Direito Aduaneiro III. São Paulo: Aduaneiras, p. 17-44).

[11] CALVINO…, op. cit., p. 14.

[12] Coluna "Território Aduaneiro" de 29/3/2022, disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-mar-29/territorio-aduaneiroa-lei-gerson-contrabando-brasil.

[13] Tivemos acesso a estudo em desenvolvimento, de Diogo Bianchi Fazolo, apontando que nos últimos sete anos foram publicadas, só no Brasil, 14 obras individuais e 17 coletivas que continham pelo menos uma das seguintes palavras-chave em seu título ou subtítulo: aduana, aduaneiro(a) ou importação.

[14] Nossas considerações não se dirigem, por óbvio, a publicações que possuem outras finalidades legítimas e propósitos específicos, que não se confundem, necessariamente, com a busca pelo desenvolvimento científico do Direito Aduaneiro (como a preparação para concursos, a formação técnica profissional, e a formulação de teses de defesa administrativa ou judicial). Nesses segmentos, não é, a rigor, necessário o esgotamento da bibliografia anterior para elaborar uma produção de qualidade para o fim a que se destina. Isso, contudo, não retira a importância de tais obras, cabendo destacar que também nesses segmentos há “clássicos”, e que muitos deles, além de alcançar seus objetivos específicos, contribuem significativamente para o desenvolvimento científico do Direito Aduaneiro.

[15] Coluna "Território Aduaneiro" de 7/6/2022, disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-jun-07/territorio-aduaneiro-benchmarking-aduaneiro.

[16] Vide, por exemplo, a coluna de 15/02/2022, sobre acesso à OCDE, disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-fev-15/territorio-aduaneiro-acessao-brasil-ocde-otica-aduaneira, ou a coluna de 24/5/2022, sobre OEA, disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-mai-24/territorio-aduaneiro-oea-retorno-presuncao-boa-fe.

[17] É o caso do contencioso administrativo, que foi motivo de nossa preocupação na coluna de 3/5/2022, disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-mai-03/territorio-aduaneiro-contribuicoes-aduaneiras-melhoria-contencioso-administrativo, quando mencionamos estudos comparados de tribunais elaborados pelo Ciat e exemplos da Argentina, do Chile e do Peru para o contencioso aduaneiro.

Autores

  • é doutor em Direito (UFPR), professor, assessor/consultor da Organização Mundial das Aduanas (OMA), do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional (FMI), Auditor-Fiscal da RFB, membro especialista do Carf e membro da Junta Diretiva da Academia Internacional de Direito Aduaneiro (Icla).

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