Território Aduaneiro

Contribuições aduaneiras para a melhoria do contencioso administrativo

Autor

  • Rosaldo Trevisan

    é doutor em Direito (UFPR) professor assessor/consultor da Organização Mundial das Aduanas (OMA) do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional (FMI) auditor-fiscal da Receita Federal membro especialista do Carf e membro da Junta Diretiva da Academia Internacional de Direito Aduaneiro (Icla).

3 de maio de 2022, 8h00

Na última semana foi realizado um seminário de "diagnóstico do contencioso tributário administrativo", como resultado de esforço conjunto da Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil (RFB) e do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) [1].

Spacca
O estudo analisou o contencioso administrativo tributário federal no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) e em oito Delegacias da Receita Federal de Julgamento (DRJ), estadual/distrital (em oito unidades da federação) e municipal (em sete capitais brasileiras), buscando investigar oito hipóteses (atreladas, v.g., à arquitetura institucional do contencioso; aos incentivos à litigiosidade tributária; à especialização dos julgadores; e aos meios alternativos de solução de conflitos tributários).

Além de apresentar um diagnóstico, com dados sobre o contencioso administrativo tributário, o estudo ainda propõe recomendações, algumas já bem conhecidas e exploradas (como a necessidade de prevenção da litigiosidade, de harmonização jurisprudencial e de adoção de ferramentas de solução de demandas repetitivas), outras conhecidas, mas pouco exploradas (como o melhor aproveitamento do conteúdo do processo administrativo em juízo e a adoção de mecanismos alternativos de solução de controvérsias), e até questões relativamente desconhecidas (como a grande participação percentual de tributos com baixo impacto arrecadatório nos contenciosos, a exemplo do IRPF).

Como o documento constitui um "diagnóstico", e não um "plano de ação", as recomendações são fundadas em leitura preliminar dos dados, a demandar validação e complemento/aperfeiçoamento. Nesse sentido, durante o próprio evento não foram poucas as opiniões dos expositores no sentido de relativizar ou até contrapor recomendações presentes (ainda que de forma não conclusiva) no relatório, como a referente à redução do número de instâncias de julgamento, e a relativa à necessidade de análise da gratuidade do processo administrativo e avaliação quanto à factibilidade e pertinência de criação de uma Lei de Custas Processuais para a esfera administrativa, assim como a criação da obrigatoriedade de depósito para a interposição de recursos administrativos.

O relatório, focado no contencioso administrativo tributário, representa relevante iniciativa para enfrentar um grave problema que assola o Brasil: o alto volume de litigância tributária, principalmente na via administrativa. O estudo informa que em 2018 estatísticas confiáveis já apontavam para um contencioso tributário federal (administrativo e judicial) que ultrapassava o patamar de R$ 3,4 trilhões, correspondente a 50,4% do PIB nacional, remetendo a trabalho patrocinado pelo Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial (Etco) [2].

Isolando-se o contencioso tributário administrativo na esfera federal, chegava-se, em 2018, a 16,4% do PIB, ante 0,28% e 0,19% de mediana nos países da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) [3].

De lá para cá, o acervo do Carf reduziu de 120 mil para 90.200 processos [4], resultado que é fruto de algumas medidas eficazes no âmbito do tribunal administrativo, como a adoção de súmulas e o julgamento em lote de demandas repetitivas. Entretanto, persiste como fator de preocupação não só o elevado acervo, em termos numéricos e de valor, mas as razões da alta litigância. Como aponta Sandro de Vargas Serpa, a decisão do contribuinte de recorrer no âmbito do processo administrativo fiscal leva em consideração, além da probabilidade de êxito na demanda, o valor da causa e o custo baixíssimo de continuar litigando [5], fatores aos quais agregamos a possibilidade de reiniciar/duplicar o contencioso, a qualquer tempo, em juízo [6].

Até aqui o leitor deve estar se perguntando: onde está a temática aduaneira nesse contexto? Afinal de contas, nesta coluna estamos em "território aduaneiro". E no recente relatório, tratado no evento da última semana, sequer aparece a palavra "aduana" [7].

No Brasil, existem, hoje, basicamente, três tipos de penalidades aduaneiras, sujeitas a contenciosos administrativos distintos: (1) as pecuniárias-multas (que, ao lado das exigências de tributos e direitos, aduaneiros ou não, são sujeitas ao contencioso administrativo tributário, previsto no Decreto 70.235/1972); (2) as relativas a perdimento (em regra, sujeitas ao contencioso previsto no Decreto-Lei 1.455/1976); e (3) as denominadas de "sanções administrativas" (advertência, suspensão e cassação de registro, sujeitas, em geral, ao rito processual previsto no art. 76 da Lei 10.833/2003) [8].

E essas três espécies de contencioso são reguladas ainda por relevantes tratados internacionais aduaneiros recentemente ratificados pelo Brasil: o Acordo sobre a Facilitação do Comércio (AFC/OMC), promulgado pelo Decreto 9.326/2018, e a Convenção de Quioto Revisada (CQR/OMA), promulgada pelo Decreto 10.276/2020.

Quando se fala em contencioso administrativo tributário, está-se abrangendo somente o que designamos aqui como primeiro grupo (penalidades pecuniárias-multas e tributos/direitos). O Decreto 70.235/1972 rege, como destaca sua ementa, o "processo administrativo fiscal", entendido no artigo 1º como o "processo administrativo de determinação e exigência dos créditos tributários da União". É exatamente esse o contencioso submetido ao Carf, relativo a exigências pecuniárias (tributos, direitos e multas expressos em moeda) efetuadas pela RFB, e não a perdimento ou a "sanções administrativas".

Aliás, o Carf assume que sua tarefa-mor é a apreciação de contencioso administrativo tributário, como encomendou o Decreto 70.235/1972, na própria missão institucional do órgão, presente em seu mapa estratégico: "assegurar à sociedade imparcialidade e celeridade na solução de litígios tributários", abrangidos nessa categoria os lançamentos pecuniários, ainda que relativos a temas aduaneiros.

Tanto a CQR/OMA (capítulo 10 do Anexo Geral) quanto o AFC/OMC (Artigo 4) disciplinam o contencioso que verse sobre matéria aduaneira (esteja ela ou não na zona de intersecção com o Direito Tributário), além de estabelecerem disposições aplicáveis a processos de consulta (resoluções antecipadas) e a imposição de penalidades, sendo integralmente aplicáveis aos contenciosos administrativos aduaneiros previstos no artigo 27 do Decreto-Lei 1.455/1976 (perdimento) e no artigo 76 da 10.833/2003 ("sanções administrativas"), e parcialmente aplicáveis ao contencioso administrativo tributário, regido pelo Decreto 70.235/1972 (apenas em relação a tributos e direitos aduaneiros, e a multas aduaneiras).

Há, assim, duas categorias de processo administrativo tributário: uma afetada pela CQR/OMA e pelo AFC/OMC (por exemplo, processos referentes a exigência de imposto de importação e de IPI-importação, acrescidos de multa), e outra alheia a tais tratados (v.g., processos que tratam de exigência de CSLL, ou de multa por não recolhimento de estimativas-IRPJ).

É preciso reconhecer, no entanto, que seria proveitoso mesmo ao contencioso administrativo tributário relativo a matérias sem contato com a área aduaneira beber na fonte da disciplina internacional aduaneira, a título uniformizador e sistematizador, visto que as normas expressas na CQR/OMA e no AFC/OMC representam melhores práticas, internacionalmente consagradas, em matéria de contencioso administrativo.

Portanto, ao se pensar em aprimoramento do contencioso tributário administrativo, e do próprio contencioso administrativo (esse parece ser o propósito da recente criação de comissão de juristas pelos presidentes do Senado, Rodrigo Pacheco, e do STF, Luiz Fux) [9], deve-se ter em conta que há uma zona de intersecção entre temas aduaneiros e tributários no que se refere a pecúnia (tributos/direitos e multas). E mais, que tal zona de intersecção está sujeita a obrigações previstas na CQR/OMA e no AFC/OMC, que não vinculam necessariamente os demais tributos que são objeto de contencioso no Carf, embora possam atuar em relação a eles como soft law.

Afora isso, não convém estabelecer que os demais contenciosos aduaneiros estariam sujeitos a um rito geral de processo administrativo (a exemplo do previsto, hoje, na Lei 9.784/1999), tendo em vista que tais contenciosos administrativos aduaneiros (perdimento e "sanções administrativas") estariam regidos também por tratados internacionais específicos (CQR/OMA e AFC/OMC), além de outras disposições acordadas no âmbito multilateral (por exemplo, na OMC), regional (v.g., no Mercosul) e bilateral.

Tudo aponta para a necessidade de que sejam tomadas em conta (dentro e/ou fora da estrutura do Carf, ou do "contencioso administrativo tributário") as peculiaridades aduaneiras, a necessidade de especialização de turmas de julgamento de tal área [10], e a disciplina normativa específica aduaneira, predominantemente internacional, mormente sobre temas que não possuem relação com o Direito Tributário (como licenças de importação, defesa comercial, barreiras técnicas, proibições e restrições, e facilitação do comércio), ainda que afetem o quantum de tributos a recolher como consequência (v.g., no caso de classificação de mercadorias, valoração aduaneira e regras de origem). Há experiências de cortes administrativas com turmas especializadas em temas aduaneiros na América Latina, como se destaca em estudo no âmbito do Ciat [11], cabendo mencionar, a título ilustrativo, os Tribunais Tributários e Aduaneiros do Chile, e as salas especializadas aduaneiras dos Tribunais Fiscais da Argentina, do México e do Peru. Mesmo no Brasil, já tivemos a experiência de um "Conselho Superior de Tarifa", corte superior administrativa especializada aduaneira [12].

A área aduaneira pode contribuir significativamente ao contencioso administrativo tributário, com base na experiência multilateral com normas vinculantes. E do rico universo de benchmarking aduaneiro surgem tendências que podem reduzir o contencioso tributário, como os programas de conformidade, a exemplo do Operador Econômico Autorizado (OEA), existente desde o século passado, presente tanto na CQR/OMA quanto no AFC/OMC, e que certamente inspirou o recente "Confia" tributário brasileiro [13].

Como expusemos nas "previsões" aduaneiras (e futebolísticas) para 2022 [14], as normas da CQR/OMA, salvo em caso de solicitação de prorrogação, deverão ser aplicadas pelo Brasil em 5/12/2022. Esse é exatamente o dia em que o Brasil, que será o primeiro colocado do Grupo "G" da Copa do Mundo, enfrentará e vencerá o segundo colocado do Grupo "H" (ainda nublado na "bola de cristal").

Nesse cenário, devemos aprimorar o contencioso administrativo tributário com racionalidade, sem descuidar das melhores práticas internacionais, deixando a paixão para o campo futebolístico. É o que busca incentivar o presente texto.


[1] O vídeo da íntegra do evento está disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=lfQLoVaWcx8. Pode-se ainda ter acesso ao sumário executivo e ao relatório completo em: https://www.gov.br/receitafederal/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes/estudos/diagnostico-do-contencioso-tributario-administrativo.

[2] O resultado geral do estudo foi publicado e comentado na Revista ETCO (São Paulo, n. 25, ano 17, ago. 2020, disponível em: https://www.etco.org.br/wp-content/uploads/WEB_Revista-ETCO_Agosto-2020_02.pdf). Em relatório do Insper, também relativo a 2018, indica-se que se fossem somados os contenciosos tributários estaduais e municipais, chegava-se a 73% do PIB (https://www.insper.edu.br/wp-content/uploads/2020/07/Contencioso_tributario_Relatorio2019_092020_v2.pdf).

[3] Estudo de Lorraine Messias, Larissa Longo e Breno Vasconcelos, citado na mesma Revista ETCO (p. 75).

[4] Evolução do Acervo do CARF – por processos. Dados abertos/Carf – março de 2022. Disponível em: http://carf.economia.gov.br/dados-abertos/dados-abertos-202204-final.pdf.

[5] Uma análise econômica do contencioso tributário brasileiro. Dissertação de Mestrado. Universidade de Brasília (UnB), 2021, p. 810. Disponível em: https://repositorio.unb.br/bitstream/10482/42310/1/2021_SandrodeVargasSerpa.pdf.

[6] A ponto de existir estudo de 2011 da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), voltado ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ) – Inter-relação entre o processo administrativo e o judicial (em matéria fiscal) a partir da identificação de contenciosos cuja solução deveria ser tentada previamente na esfera administrativa – Relatório Final – no qual são propostas interessantes medidas para a instância administrativa e para o processo judicial, objetivando suprimir duplicidades. O estudo está disponível em: https://bibliotecadigital.cnj.jus.br/jspui/handle/123456789/141?mode=full.

[7] Uma das possíveis aparições da "aduana" foi ofuscada pela tradução, quando "Her Majesty's Revenue and Customs" constou no relatório como "administração tributária do Reino Unido".

[8] Não se ignora, aqui, que existem outros ritos, excepcionais, afora os três principais aqui relacionados. Para uma visão integral do universo infracional aduaneiro, ver: TREVISAN, Rosaldo. Uma contribuição à visão integral do universo de infrações e penalidades aduaneiras no Brasil, na busca pela sistematização. In: TREVISAN, Rosaldo (org.). Temas Atuais de Direito Aduaneiro III. São Paulo: Aduaneiras, 2022, p. 571-630.

[10] Sobre a jurisdição especializada em matéria aduaneira, ver: BASALDÚA, Ricardo Xavier. Importancia de la Jurisdicción Especializada en Materia Aduanera: Situación en Argentina. In: TREVISAN, Rosaldo (org.). Temas Atuais de Direito Aduaneiro II. São Paulo, Lex, 2015, p. 66-67.

[11] No site do Ciat (Centro Interamericano de Administrações Tributárias) pode ser encontrado estudo recente com 16 tribunais administrativos (entre os quais o Carf), vários deles com especialização em matéria aduaneira: Situación de los tribunales tributarios administrativos y judiciales de Iberoamérica en CIATData (2019/2020). Disponível em: https://www.ciat.org/tribunales-tributarios-de-iberoamerica/.

[12] No Decreto 24.036/1934 podem ser encontradas diversas curiosidades sobre o Conselho Superior de Tarifa, entre eles a competência para julgar não só classificação e valor, mas "contrabando e quaisquer outras decorrentes de leis ou regulamentos aduaneiros" (artigo 161); o impressionante prazo para analisar processos (artigo 169); e a competência consultiva / não contenciosa (artigo 171).

[13] Muitas questões do contencioso administrativo que hoje são debatidas de forma apaixonada, no Brasil, poderiam encontrar soluções ponderadas e consolidadas internacionalmente, em um bom estudo de benchmarking.

Autores

  • é doutor em Direito (UFPR), professor, assessor/consultor da Organização Mundial das Aduanas (OMA), do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional (FMI), Auditor-Fiscal da RFB, membro especialista do Carf e membro da Junta Diretiva da Academia Internacional de Direito Aduaneiro (Icla).

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!