Território Aduaneiro

A "Lei de Gérson" e o contrabando no Brasil

Autor

  • Rosaldo Trevisan

    é doutor em Direito (UFPR) professor assessor/consultor da Organização Mundial das Aduanas (OMA) do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional (FMI) auditor-fiscal da Receita Federal membro especialista do Carf e membro da Junta Diretiva da Academia Internacional de Direito Aduaneiro (Icla).

29 de março de 2022, 8h00

Uma das leis mais conhecidas do Brasil jamais foi aprovada pelo Congresso Nacional ou publicada em Diário Oficial. A chamada "Lei de Gérson" tramitou somente pelo processo legislativo do imaginário brasileiro, a partir de um comercial de cigarro do final da década de 70 do século passado, no qual o "Canhotinha de Ouro" (Gérson de Oliveira Nunes), um de nossos melhores jogadores de futebol da equipe tricampeã do mundo de 1970, falava: "Gosto de levar vantagem em tudo, certo? Leve vantagem você também…" [1]. Aliás, cigarro tem tudo a ver com o tema de hoje de nossa coluna: o contrabando.

Spacca
Como é comum em "leis", o texto da "Lei de Gérson" acabou suscitando diferentes interpretações, a mais conhecida delas no sentido de revelar a malandragem brasileira, o "jeitinho", que flerta com a falta de ética, a desonestidade e a corrupção. Mas tanto a leitura sistemática (incluindo-se o trecho anterior da propaganda) quanto a mens legislatoris (Gérson não se cansou de explicar, em incansáveis entrevistas, que não quis insinuar nada ilícito ou antiético) apontam para um comercial qualquer, que só foi transformado em "lei" por externar visão já arraigada na cultura brasileira [2]. Gérson, a nosso ver, não deveria ser lembrado pela propaganda cujo texto foi posteriormente alçado à estatura de "lei", simplesmente por despertar crença preexistente de que nós, brasileiros, seríamos malandros.

Aliás, mais ou menos na mesma época, em 1978, Chico Buarque de Holanda adaptava, na "Ópera do Malandro", a "Ópera dos mendigos" (1728, de J. Gay) e a "Ópera dos três vinténs" (1928, de Brecht e Weill). E a adaptação foi sugestiva: enquanto na peça de 1928 a ação se passa em cabarés ingleses, com a temática da corrupção na relação entre policiais e gangsters, na versão abrasileirada de Buarque a história envolve o jogo, a prostituição e o contrabando, no cenário da Lapa, na década de 1940.

Podemos retroceder bem mais na história brasileira, ainda encontrando vestígios desse "gosto por levar vantagem", registrado em importante obra, uma das primeiras de que se tem notícia, relativa ao Direito (Penal) Aduaneiro: o livro "O Contrabando", publicado em 1899, por Augusto Olympio Viveiros de Castro, importante jurista brasileiro, que foi ministro do Supremo Tribunal Federal, de 1915 a 1927 [3].

A obra de Viveiros de Castro, que inclui estudo comparado absolutamente pioneiro entre as legislações brasileira, espanhola, italiana e francesa sobre o contrabando (crime tomado pelo autor não só na acepção de importar/exportar mercadoria proibida, mas também de importar/exportar mercadoria dolosamente sem pagamento de imposto/direito devido), é especialmente interessante e atual no tópico dedicado à "natureza epidêmica" do desenvolvimento do contrabando no Brasil, como resultado da "miopia da conivência" e da impunidade (que só seriam combatidas com "pessoal inteligente, honesto e bem remunerado e com capacidade profissional apurada em concursos rigorosos e sérios") e da "animosidade que o contribuinte tem contra o Governo" ("…a um inimigo é lícito, senão louvável, pregar uma boa peça"). A percepção de Viveiros de Castro era de que "a opinião pública entre nós não liga à prática da fraude aduaneira uma ideia desonrosa", e que "alguns ficam muito admirados quando alguém procura convencê-los de que o contrabando é um ato ilícito e imoral e de que em última análise são eles os roubados porque à diminuição das rendas corresponde sempre a agravação dos impostos".

Em outra publicação, de 1916, Viveiros de Castro chega a apontar o caso de um negociante ambulante que vendia mercadorias afirmando serem contrabandeadas, e, ao ser questionado pela polícia, provou a regularidade das mercadorias, informando que "o contrabando era o chamariz irresistível da freguesia" e que "…certos de que estavam comprando mercadorias saídas clandestinamente da Alfândega, os compradores regateavam pouco, pagando às vezes mais caro que nas lojas" [4].

Se existe uma "Lei de Gérson", batizada no final do século passado, ela parece violar a irretroatividade, ou ter caráter meramente declaratório.

No Brasil, o "contrabando" (ação de "importar ou exportar mercadoria proibida") é considerado figura penal distinta do "descaminho" (conduta de "iludir, no todo ou em parte, o pagamento de direito ou imposto devido pela entrada, pela saída ou pelo consumo de mercadoria"), sendo tal diferenciação presente já no artigo 177 do Código Penal de 1830.

O Código Penal seguinte (Decreto nº 847/1890), no período republicano, usou apenas a palavra "contrabando", no título do artigo 265, para ambas as condutas, mas a unificação terminológica não resistiu à Codificação Penal atual (Decreto-Lei nº 2.848/1940), que, em seu artigo 334, resgatou a denominação "contrabando ou descaminho", encarregando-se a doutrina (e, depois, a Lei nº 13.008/2014) de atrelar o contrabando às mercadorias proibidas e o descaminho à falta dolosa de pagamento de impostos/direitos.

O cigarro, por exemplo (ironicamente, a mercadoria outrora propagandeada por Gérson), ao entrar clandestinamente no Brasil, pode configurar o crime de descaminho (caso seja de importação permitida, mas haja falta dolosa de pagamento de impostos/direitos) ou de contrabando (se for de importação proibida/vedada — por exemplo, no caso de cigarros de marca que não seja comercializada no país de origem — artigo 46 da Lei nº 9.532/1997, ou de cigarros destinados à exportação — artigo 12 do Decreto-Lei nº 1.593/1977).

Aliás, o cigarro é o grande campeão de apreensões por entrada clandestina no país, representando R$ 1.130.314.907,61 (37,25 % do total de mercadorias apreendidas pela Aduana), em 2020, percentual semelhante ao de 2019 (35,67% do total de apreensões) [5].

Buscando dirimir a frequente confusão entre institutos tributários e aduaneiros, já acusada aqui nesta coluna por mais de uma ocasião, cabe distinguir o "descaminho" dos crimes de sonegação fiscal previstos na Lei nº 4.729/1965, bem como de seus "sucessores", os crimes contra a ordem tributária, previstos na Lei nº 8.137/1990.

A quem entendia que a Lei no 8.137/1990 havia parcialmente derrogado o artigo 334 do Código Penal, no que se referia ao descaminho (em um inusitado lex generali derrogat lex specialis), a Lei nº 13.008/2014 respondeu com nova redação à Codificação Penal, com um artigo 334 (sobre descaminho) e um artigo 334-A (a respeito de contrabando), aclarando a distinção entre contrabando/descaminho e os crimes contra a ordem tributária.

Há distinção de bem jurídico tutelado entre os crimes contra a ordem tributária e os crimes de contrabando e de descaminho. Ricardo Xavier Basaldúa, em estudo sobre o contrabando (abrangendo tanto o aspecto de importação/exportação de mercadorias proibidas, quanto a importação/exportação com subtração dolosa do pagamento de impostos/direitos), conclui que o bem jurídico tutelado imediato no crime de contrabando é o adequado exercício do controle aduaneiro sobre as mercadorias que entram no território aduaneiro ou dele saem [6]. Caminham na mesma direção as ponderações de Juan Patricio Cotter (para quem o contrabando "é o ilícito aduaneiro por excelência, e supõe a vulneração da função principalíssima da Aduana — o controle do tráfego internacional de mercadorias") e Héctor Guillermo Vidal Albarracín.[vii]

Também por aqui tanto o contrabando quanto o descaminho apresentam como bem jurídico tutelado o controle aduaneiro. Assim tem decidido o STF, v.g., no HC 131.205 (2016 – 2ª Turma), no HC 118.539 (2013 – 2ª Turma), e no HC 120.550 (2013 – 1ª Turma) em casos referentes a contrabando de cigarro (praticado por quem desejava "levar vantagem", em uma acepção bem menos ética que a invocada no comercial).

A 2ª Turma do STF, em votação unânime, no HC 114.315, de relatoria do saudoso ministro Teori Zavascki, chegou a externar em ementa que: "O contrabando, delito aqui imputado ao paciente, é figura típica cuja objetividade jurídico-penal abrange não só a proteção econômico-estatal, mas em igual medida interesses de outra ordem, tais como a saúde, a segurança pública e a moralidade pública (na repressão à importação de mercadorias proibidas), bem como a indústria nacional, que se protege com a barreira alfandegária".

A importação e a exportação de mercadorias proibidas ou restritas, sem autorização do órgão competente, não pode ser concretizada, ainda que haja pagamento de tributos. E, caso seja tentada, deve culminar na apreensão, para fins de aplicação da pena de perdimento.

Para combater o contrabando, no Brasil, é preciso fugir do simplismo do debate centrado no aumento de pena. Aumento de pena que não é aplicada equivale a multiplicação por "zero". O contrabando se combate com vigilância, repressão e serviço de inteligência, com estrutura aduaneira otimizada, pessoal treinado e motivado, ciente de que seu objetivo maior é o controle do que entra no país e dele sai, e não a arrecadação.

E há ainda um fator muito importante no combate ao contrabando, que é cultural. Não podemos mais ser coniventes com a prática atrelada à distorcida "Lei de Gérson" de "levar vantagem" à míngua de ética, de furar fila, de malandragem e "jeitinho", de engambelar a Aduana ou o fisco, em geral (e pior, disso se vangloriar!).

Em um país no qual há até “contrabando legislativo”, como já denunciado aqui na Conjur [8], torna-se mais difícil passar a mensagem de que enganar a Aduana não é algo de que se possar orgulhar, fumando um cigarro Vila Rica e bebendo um uísque "Old Smuggler" [9], ao som de Édith Piaf: "Ohé, la douane! Ohé, les gabelous! Lâchez tous les chiens, Et puis planquez-vous, Au fond d'vos cabanes".

Aos contrabandistas, que sabidamente não cumprem as leis publicadas em Diário Oficial, terminamos desejando não a aplicação da "Lei de Gérson", mas da "Lei de Murphy".

 


[1] O leitor que não teve a oportunidade de assistir ao comercial do cigarro Vila Rica, de 1976, protagonizado por Gérson, no episódio que deu origem à lei, pode conferir o vídeo, e a explicação do próprio futebolista, em: https://www.youtube.com/watch?v=FMGG-EQuGw4.

[2] Sobre a "Lei de Gérson", muito foi escrito, inclusive academicamente. Não é difícil encontrar artigos, dissertações e teses jurídicas, sociológicas e antropológicas sobre o tema. Aliás, aqui mesmo, na Conjur, podemos referir, a título exemplificativo, a coluna de Otávio Calvet intitulada "A Lei de Gérson à luz do jeitinho brasileiro: o conceito de juiz Garrincha", disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-mar-16/trabalho-contemporaneo-lei-gerson-luz-jeitinho-brasileiro-juiz-garrincha.

[3] A obra "O Contrabando", de Viveiros de Castro, está integralmente disponível na biblioteca virtual do Senado Federal, em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/518692, e já tivemos a oportunidade de resumi-la, em vídeo, em: https://www.youtube.com/watch?v=dv6_gfHfBms&t=17s.

[4] Como conta Carlos Eduardo Adriano Japiassú (O Contrabando: Uma revisão de seus fundamentos teóricos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000, p. 21). A obra de Viveiros de Castro referida por Japiassú é "O Contrabando no Direito Criminal", publicada Revista de Direito Civil, Comercial e Criminal, Rio de Janeiro: Bento de Faria, 1916.

[6] O estudo, ainda inédito (e que comporá obra internacional sobre "Ilícitos Aduaneiros"), foi gentilmente compartilhado conosco pelo Professor R. X. Basaldúa.

[7] COTTER, Juan Patricio. Las Infracciones Aduaneras. 2. Ed. Buenos Aires: AbeledoPerrot, 2013, p. 218; ALBARRACÍN, Héctor Guillermo Vidal. Delitos Aduaneros. 3. Ed. Corrientes: Mave, 2010, p. 100.

[9] A história do whisky Old Smuggler (Velho Contrabandista) remonta a 1835, época em começou a ser engarrafado, tendo sido a marca adquirida em 2006 pelo grupo Campari. O nome foi escolhido em "honra" dos contrabandistas escoceses de whisky que, frente às leis proibitivas, faziam, à custa de seu próprio sangue, que fosse possível o abastecimento não só da Escócia, mas de todo o Reino Unido.

Autores

  • é doutor em Direito (UFPR), professor, assessor/consultor da Organização Mundial das Aduanas (OMA), do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional (FMI), Auditor-Fiscal da RFB, membro especialista do Carf e membro da Junta Diretiva da Academia Internacional de Direito Aduaneiro (Icla).

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