Opinião

Depoimento da vítima em casos de violência contra a mulher

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9 de julho de 2022, 9h14

Antes de mais nada, é importante deixar claro que o presente artigo de forma alguma busca menosprezar o enorme problema que são (e sempre foram) os altos índices de crimes de violência doméstica e contra a dignidade sexual da mulher.

Trata-se de problema histórico que passa pelo desenvolvimento de uma sociedade em bases machistas, na qual o grito de socorro das mulheres agredidas e violentadas dificilmente era ouvido.

Também deve-se dizer que o que será tratado aqui é a acusação e condenação criminal dando peso maior à palavra da vítima, não a salutar sistemática de medidas protetivas instituída pela Lei Maria da Penha. Há diferença, pois em um caso o que está em jogo é a liberdade do indivíduo, no outro é a proteção de uma vítima em potencial.

Reconhecido isso, passa-se à questão central do presente artigo: como conciliar o problema da impunidade que assombra esses terríveis crimes e os parâmetros de prova exigidos pela nossa Constituição?

Alguns autores e juízes optam por dar mais peso à palavra da vítima nesses casos, uma vez que dificilmente se conseguirá provar o fato de outra forma. Ou seja, pela escassez das fontes de prova, valoriza-se mais a única prova por vezes à mão, qual seja, o depoimento da mulher.

Ocorre que, por mais salutar que seja o sentimento por trás de tal posição (o de acabar com a impunidade nesses casos), essa prática acaba atropelando as garantias dos investigados ou acusados por referidos crimes, principalmente a presunção de inocência.

Guilherme Nucci pondera que "seja qual for o crime, há de se preservar e cultuar o princípio da presunção de inocência" [1] e lembra, citando Marcão e Gentil, que nesses casos "todo cuidado é pouco" [2].

Isso porque as provas valem o que elas valem, atestam o que elas atestam, convencem o que elas convencem, nem mais, nem menos.

Questões de política criminal (como a falta de instrumentos capazes de levar ao processo mais provas desses atos bárbaros que se desenrolam em ambientes reservados) não podem magicamente aumentar o valor intrínseco de uma prova, sob pena de incorrermos no problemático sistema de provas tarifadas ou, pior, em um direito penal do inimigo.

Como explica Gustavo Badaró, "o juiz não poderá, abusando do livre convencimento, condenar o acusado com base em uma valoração da prova de fundo irracional ou emotiva" [3]. É esse tipo de erro técnico que acontece quando se dá a um depoimento valor maior do que ele intrinsicamente possui em razão de um desejo de sanar as injustiças que sofrem as mulheres violentadas.

Convém um exemplo do problema em questão. Se um indivíduo aponta uma arma de fogo para uma mulher e subtraí dela sua bolsa, há um crime de roubo. Se outro aponta uma arma de fogo e força a mulher a manter com ele conjunção carnal, ocorre um estupro. Em que pese o crime de estupro ser evidentemente mais grave do ponto de vista da lesão sofrida pela vítima, o modus operandi no exemplo dado é similar nos dois casos, sendo que a verificação da existência ou não do fato deve se dar também de maneira similar.

Se nos dois casos a vítima dá um depoimento, não faz sentido, se o que se busca é a verdade (ou o que mais disso se aproxima [4]), que o depoimento do caso de estupro seja valorado com mais peso que no caso de roubo só porque é um crime que de outra forma não seria elucidado. Seria como dizer que a presunção de inocência do segundo sujeito é menor que do primeiro simplesmente porque é mais difícil produzir provas contra o crime pelo qual ele está sendo acusado.

Em obra clássica, Claus Roxin expôs a importância de a política criminal permear os institutos do Direito Penal, rompendo com os paradigmas anteriores que pregavam uma cisão completa entre as duas áreas [5]. Contudo, essa importante conexão não pode desnaturar nenhum dos dois campos [6], principalmente o do Direito Penal, que tem entre suas funções precípuas a limitação do arbítrio estatal. O mesmo raciocínio deve valer para o Direito Probatório.

Assim, em que pese existir um sério problema de natureza político-criminal, a impunidade dos crimes de violência doméstica e contra a dignidade sexual da mulher, a resposta do Direito Criminal como um todo não pode ser a fragilização das garantias constitucionais dos investigados e acusados.

Injustiça não se resolve com mais injustiça. Não é ignorando a presunção de inocência para aumentar as condenações que o problema deixará de existir. Até porque, e essa é a chave de tudo, nem sempre o depoimento da suposta vítima é verdadeiro.

Isso é fato já há muito conhecido e elaborado por autores como Viveiros de Castro [7], Chrysolito de Gusmão [8] ou, por todos, Nelson Hungria: "Antes de tudo, é preciso não esquecer que, em matéria de crimes sexuais, mais do que em qualquer outro gênero de crimes, são frequentes as acusações falsas" [9].

O recente caso do ator Johnny Depp contra Amber Heard deixou claro como uma manifestação mentirosa pode lesar seriamente a vida de alguém. Deixou também claro como, no afã punitivo impulsionado pela histórica injustiça sofrida pelas mulheres, um acusado se vê na situação absurda de ter que se desdobrar para provar, acima de qualquer dúvida razoável, que não cometeu o crime. É uma verdadeira inversão do ônus da prova e um descaso com a presunção de inocência, além de triste falha epistemológica.

Novamente, reconhece-se a dificuldade que a Justiça encontra em produzir provas nesses casos. Contudo, se admite-se essa terrível inversão do ônus probatório pelo peso exacerbado dado à palavra da vítima, também ao acusado é imposta a obrigação de produzir prova diabólica: da mesma forma que é difícil provar a ocorrência de estupro ou violência doméstica, com mesma razão é difícil provar que o sujeito NÃO praticou tais condutas. A questão é que a regra constitucional é clara, o ônus não pode ser do acusado.

Na realidade, se analisa-se com rigor, o depoimento da vítima deveria ser sempre tomado "com um grão de sal" quando esta tem relacionamento anterior com o suposto agressor. O histórico do vínculo pode levar a deturpações e até a mentiras para incriminar ou chantagear o acusado [10], como expôs Fernanda Trípode aqui no ConJur, citando inclusive o caso bíblico da esposa de Potifar.

Quando o ministro Viveiros de Castro escreveu sua obra, isto ainda em 1897, o mesmo já apontava:

"As declarações da offendida devem ser recebidas com prudencia, e reserva pelo juiz. Pódem ser um forte elemento de convicção, lançando sobre o processo viva luz, indicando o verdadeiro delinquente, esclarecendo circumstâncias importantes, como pódem tambem ser completamente falsas, mentirosas, motivadas pela vingança e pela especulação. E’ preciso portanto que o juiz nem confie nellas cegamente nem as regeite in limine, de partido deliberado. Convém constatar sua veracidade por outras provas, examinar si são ellas confirmadas por outros elementos de convicção" [11].

Essa "sacralidade" da palavra da vítima em crimes sexuais e de violência doméstica, a sua "inquestionabilidade" leva, diretamente, à concreta possibilidade de um erro judicial [12] e à feitura de uma investigação sem o esforço de maiores provas que não essa, em nada colaborando para a realização de um processo racional e justo, enraizado na Constituição.

Assim, mais ainda que em outros crimes em que não há relacionamento entre as partes, seriam necessários nesses casos mais elementos de prova (ou, no mínimo, o mesmo tanto) para corroborar o depoimento da vítima e, assim, vencer a montanha que deve ser a presunção de inocência. Esta, novamente fazendo alusão ao pensamento de Badaró:

"exige que o modelo de constatação adotado no processo penal represente o mais elevado nível de confirmação probatória que seja racionalmente exigível, para que a proposição seja considerada provada, isto é, verdadeira. Por outro lado, não é admissível que o processo penal, quanto à decisão final que realizará o juízo de mérito sobre a imputação, adota um standard probatório rebaixado" [13].

Em conclusão, reitera-se que o problema da impunidade de indivíduos que agridem ou abusam sexualmente de mulheres é real e deve ser combatido. Também se reconhece que a descrença na fala da mulher é outro problema epistemológico que historicamente se verifica. Porém, a subversão dos direitos constitucionais dos acusados ou investigados não pode ser o caminho para solucionar tais questões.

Expressão conhecida no processo diz que "a verdade aparece como a luz que brilha com o choque das pedras probatórias". Portanto, o valor de um testemunho não pode ser verificado com base no próprio testemunho: faz-se necessário o apoiamento, a corroboração, o choque com outros elementos probatórios, por difícil que seja encontrá-los. Do contrário, o resultado inevitável será uma injustiça epistêmica por excesso de credibilidade à palavra da vítima.

Que os doutrinadores, cientistas forenses e políticos desenvolvam novas teorias, técnicas periciais e estratégias de segurança pública capazes de reduzir a impunidade dos criminosos e a vulnerabilidade desse grupo de risco que já tanto sofreu. Mas que, nesses esforços, a coesão lógica do direito processual penal e os preceitos da Constituição sejam mantidos intactos, sob pena de trocar uma injustiça por outra.

 


[1] NUCCI, Guilherme de Souza. Tratado de crimes sexuais. Rio de Janeiro: Forense, 2022, p. 212.

[2] MARCÃO, Renato; GENTIL, Plínio. Crimes Contra a Dignidade Sexual. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 105.

[3] BADARÓ, Gustavo Henrique. Epistemologia judiciária e prova penal. São Paulo: Thomson Reuters, 2019, p. 211.

[4] Não se ignora aqui as difíceis ligações entre processo penal e busca pela verdade, mas a teleologia do direito probatório está sempre de alguma forma ligada a esse conceito maior, apesar de sempre ponderada com limites impostos por direitos e garantias processuais. Sobre o assunto, ver: PEIXOTO, Ravi. Standards probatórios no direito processual brasileiro. Salvador: Juspodivm, 2021, p. 57.

[5] ROXIN, Claus. Política criminal e sistema jurídico-penal. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 14.

[6] Ibid., p. 20.

[7] CASTRO, Viveiros de. Os delictos contra a honra da mulher. Freitas Bastos, 1932, p. 128.

[8] GUSMÃO, Chrysolito de. Dos Crimes Sexuais. Freitas bastos, 1954, p. 101, 109 e 139.

[9] HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1954, Tomo VIII, p. 118

[10] TRÍPODE, Fernanda. O que o êxito de Johnny Depp na Justiça ensina aos homens?. ConJur, 3 de junho de 2022. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-jun-03/fernanda-tripode-exito-depp-ensina-aos-homens. Acesso em 30/06/22.

[11] CASTRO, Viveiros de. Os delictos contra a honra da mulher. Freitas Bastos, 1932, p. 87.

[12] RAMOS, Vitor de Paula. Prova Testemunhal. São Paulo: Juspodivm, 2022, pág. 146.

[13] BADARÓ, Gustavo Henrique. Epistemologia judiciária e prova penal. São Paulo: Thomson Reuters, 2019, p. 247.

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