Opinião

Antinomia entre o prazo mínimo de um ano para transferência de domicílio eleitoral

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4 de julho de 2022, 6h32

O Código Eleitoral, artigo 55, §1º, inciso II, estabelece que a transferência de domicílio eleitoral só será admitida se transcorrido, pelo menos, um ano da inscrição primitiva. Esse prazo será contado da data da inscrição imediatamente anterior ao novo domicílio eleitoral (Ac. TSE nº 4762/2004).

A Resolução TSE nº 23.659/2021, artigo 38, II, também estabelece que a transferência de domicílio eleitoral só será admitida se transcorrido, pelo menos, um ano do alistamento eleitoral ou da última transferência.

A Lei nº 9.504/97, artigo 9º, em consonância com o inciso IV do §3º do artigo 14 da Constituição Federal, estabelece como condição de elegibilidade o domicílio eleitoral na respectiva circunscrição pelo prazo mínimo de seis meses antes da data do pleito.

Verifica-se uma antinomia, um conflito de normas entre o artigo 55, §1º, inciso II, do Código Eleitoral e o artigo 9º da Lei nº 9.504/97, na medida em que a Lei das Eleições estabelece que o candidato ou candidata deverá possuir domicílio eleitoral na respectiva circunscrição pelo prazo de seis meses antes do pleito como condição de elegibilidade (CF, artigo 14, §3º, IV) e o Código Eleitoral veda a transferência de domicílio eleitoral antes de transcorrido um ano do alistamento eleitoral ou da última transferência.

Vedar a transferência de domicílio eleitoral antes de transcorrido um ano do alistamento eleitoral ou da última transferência viola o direito político inerente à cidadania à elegibilidade (jus honorum), na medida em que impede o eleitor ou a eleitora de preencher a condição de elegibilidade do domicílio eleitoral na respectiva circunscrição no prazo mínimo de seis meses antes do pleito, na forma do inciso IV do §3º do artigo14 da Constituição Federal.

Cumpre ao intérprete das normas jurídicas observar os princípios da completude e da coerência do ordenamento jurídico.

A completude do ordenamento jurídico é conceituada por Norberto Bobbio(1999, p.115, apud SILVA, 2008, p. 4) [1] nos seguintes termos:

"(…) por completude entende-se a propriedade pela qual um ordenamento jurídico tem uma norma para regular qualquer caso. Uma vez que a falta de uma norma se chama geralmente 'lacuna' (num dos sentidos do termo 'lacuna'), 'completude' significa 'falta de lacuna'. Em outras palavras, um ordenamento é completo quando o juiz pode encontrar nele uma norma para regular qualquer caso que se lhe apresente, ou melhor, não há caso que não possa ser regulado com uma norma tirada do sistema". (BOBBIO, 1999, p. 115)

O artigo 4º da Lei de Introdução ao Direito Brasileiro reflete o princípio da completude do ordenamento jurídico, dispondo que "Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito".

Também o artigo 140, caput, do Código de Processo Civil afirma a completude do ordenamento jurídico ao dispor que "O juiz não se exime de decidir sob a alegação de lacuna ou obscuridade do ordenamento jurídico".

O princípio da coerência do ordenamento jurídico impõe interpretação coerente com ordenamento jurídico quando se estiver "diante de uma antinomia jurídica" (DINIZ, 2001, p. 469, apud SILVA, 2008, p. 5) [2].

Maria Helena Diniz (DINIZ, 2001, p. 469, apud SILVA, 2008, p. 5) [3] conceitua antinomia jurídica da seguinte forma:

"Antinomia é o conflito entre duas normas, dois princípios, ou de uma norma e um princípio geral de direito em sua aplicação prática a um caso particular. É a presença de duas normas conflitantes, sem que se possa saber qual delas deverá ser aplicada ao caso singular" (DINIZ, 2001, p. 469).

A coerência do ordenamento jurídico é explicada por Bobbio (1999, p.113, apud SILVA, 2008, p. 6) [4] nos seguintes termos:

"A coerência não é condição de validade, mas é sempre condição para a justiça do ordenamento. É evidente que quando duas normas contraditórias são ambas válidas, e pode haver indiferentemente a aplicação de uma ou de outra, conforme o livre arbítrio daqueles que são chamados a aplicá-las, são violadas duas exigência fundamentais em que se inspiram ou tendem a inspirar-se os ordenamentos jurídicos: a exigência da certeza (que corresponde ao valor da paz ou da ordem), e a exigência da justiça (que corresponde ao valor da igualdade). Onde existem duas normas antinômicas, ambas válidas, e portanto ambas aplicáveis, o ordenamento jurídico não consegue garantir nem a certeza, entendida como possibilidade, por parte do cidadão, de prever com exatidão as conseqüências jurídicas da própria conduta, nem a justiça, entendida como igual tratamento das pessoas que pertencem à mesma categoria" (BOBBIO, 1999, p. 113).

A revogação tácita é outro fundamento que me parece plausível para afastar a vigência do inciso II do §1º do artigo 55 do Código Eleitoral, com fundamento no §1º do artigo 2º da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro (DECRETO-LEI Nº 4.657, DE 4 DE SETEMBRO DE 1942), segundo o qual "A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior".

Assim sendo, parece que o artigo 9º da Lei nº 9.504/97 revogou tacitamente o inciso II do §1º do artigo 55 do Código Eleitoral, considerando que a vedação à transferência de domicílio eleitoral antes de transcorrido um ano do alistamento eleitoral ou da última transferência inviabilizaria o preenchimento da condição de elegibilidade do domicílio eleitoral na respectiva circunscrição pelo prazo de seis meses antes do pleito, na forma prevista no inciso IV do §3º do artigo 14 da Constituição Federal, c/c o artigo 9º da Lei nº 9.504/97, repito, violando o direito político inerente à cidadania à elegibilidade (jus honorum), na medida em que impede o eleitor ou a eleitora de preencher a condição de elegibilidade do domicílio eleitoral na respectiva circunscrição no prazo mínimo de seis meses antes do pleito, na forma do inciso IV do §3º do artigo 14 da Constituição Federal.

Convém anotar, em razão do conflito de normas anteriormente suscitado, que o Código Eleitoral foi recepcionado pela Constituição Federal como lei complementar apenas quanto à matéria cuja disciplina foi reservada pela Constituição Federal à lei complementar.

Conforme o artigo 162 do PLP 112/2021, cujo objeto é instituir o novo código eleitoral, aprovado pela Câmara dos Deputados e em tramitação no Senado Federal "O direito à elegibilidade somente poderá ser restringido pela Constituição Federal e por lei complementar, vedada a adoção de interpretação ampliativa das hipóteses de restrição".

Direito fundamental que é, a elegibilidade só pode ser restringida nas hipóteses expressamente previstas na Constituição Federal e na Lei Complementar nº 64/90, devendo o intérprete das normas legais interpretá-las restritivamente.

Conforme a jurisprudência do C. Tribunal Superior Eleitoral, "As restrições a direitos fundamentais devem ser interpretadas restritivamente, consoante lição basilar da dogmática de restrição a direitos fundamentais, axioma que deve ser trasladado à seara eleitoral, de forma a impor que, sempre que se deparar com uma situação de potencial restrição ao ius honorum, […], o magistrado deve prestigiar a interpretação que potencialize a liberdade fundamental política de ser votado, e não o contrário" (REspe 21321, relator ministro Luiz Fux, DJe de 5.6.2017). "As normas de direito eleitoral devem ser interpretadas de forma a conferir a máxima efetividade do direito à elegibilidade. […]. O direito ao sufrágio, no qual se inclui a capacidade eleitoral passiva, em se tratando de direito fundamental garantido pela Lei Maior, participa da essência do Estado Democrático de Direito, operando como diretriz para a ação de todos os poderes constituídos, sem exceção" (AgReg no REspe nº 13781, Acórdão de 22.11.2016, relatora ministra Luciana Lóssio, PSESS — Publicado em Sessão, em 22.11.2016):

"[…].
(…) o direito à elegibilidade, como direito fundamental, deve ser restringido nas situações expressamente previstas na norma".

[…]. (REspEl — Agravo Regimental no Recurso Especial Eleitoral nº 060017422 – PIRES FERREIRA — CE, Acórdão de 11/03/2021, relator ministro Alexandre de Moraes, Publicação em DJE — Diário da justiça eletrônica, tomo 52, de 23.3.2021).
"[…].
(…) o direito à elegibilidade é direito fundamental. Como resultado, de um lado, o intérprete deverá, sempre que possível, privilegiar a linha interpretativa que amplie o gozo de tal direito. De outro lado, as inelegibilidades devem ser interpretadas restritivamente, a fim de que não alcancem situações não expressamente previstas pela norma. (…)"
[…]. (RESPE — Recurso Especial Eleitoral nº 19257 — BARRA DE SANTO ANTÔNIO — AL, Acórdão de 13.6.2019, relator ministro Luís Roberto Barroso, publicado no DJE — Diário da justiça eletrônica em 12.8.2019).
"[…]
7. As restrições a direitos fundamentais devem ser interpretadas restritivamente, consoante lição basilar da dogmática de restrição a direitos fundamentais, axioma que deve ser trasladado à seara eleitoral, de forma a impor que, sempre que se deparar com uma situação de potencial restrição ao ius honorum, como sói ocorrer nas impugnações de registro de candidatura, o magistrado deve prestigiar a interpretação que potencialize a liberdade fundamental política de ser votado, e não o inverso.
[…]"
 (RESPE – Recurso Especial Eleitoral nº 21321 — AREADO — MG, Acórdão de 06/04/2017, relator ministro Luiz Fux, publicado no DJE — Diário da justiça eletrônica — em 5.6.2017).
"[…].
2. Por se tratar de norma restritiva de direitos, as regras alusivas às causas de inelegibilidade devem ser interpretadas estritamente, de modo a não alcançar situações não contempladas na lei e acabar por cercear o direito fundamental à elegibilidade, especialmente quando se exige criativa interpretação a fim de se alcançar um terceiro regime de contagem de prazo.
3. A garantia fundamental para o pleno exercício de direitos políticos está amplamente resguardada pela Constituição Federal em seus artigos 14, §9º, e 16, os quais preveem, respectivamente, lei complementar para disciplinar as causas de inelegibilidades e a submissão de qualquer alteração legal que possa afetar o processo eleitoral à regra da anualidade. Logo, tanto o legislador como os operadores do direito devem pautar-se pelas referidas normas, de modo a não cometerem abusos e desvios na aplicação das causas de inelegibilidades, tampouco a criação de nova regra de contagem de prazos de inelegibilidades, sobretudo mediante a combinação de regimes, como se pretendeu in casu"

[…]. (RESPE — Recurso Especial Eleitoral nº 20003 — REGENTE FEIJÓ — SP, Acórdão de 17/11/2016, relatora ministra Luciana Lóssio, PSESS — Publicado em Sessão, em 17.11.2016).
"[…].
3. A elegibilidade é direito fundamental de natureza política, por isso somente poderá sofrer limitação por determinação constitucional ou por lei complementar. Na linha da atual jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral, as causas de inelegibilidade devem ser interpretadas restritivamente, sendo vedada a interpretação extensiva in malam partem.
[…]"
 (RESPE — Recurso Especial Eleitoral nº 4932 — QUATÁ — SP, Acórdão de 18/10/2016, relatora ministra Luciana Lóssio, PSESS — Publicado em Sessão, em 18.10.2016).
"[…].
2. As normas de direito eleitoral devem ser interpretadas de forma a conferir a máxima efetividade do direito à elegibilidade.
[…].
6. Não se pode inibir a participação do cidadão no processo político tendo por alicerce tão somente circunstâncias meramente formais. O direito ao sufrágio, no qual se inclui a capacidade eleitoral passiva, em se tratando de direito fundamental garantido pela Lei Maior, participa da essência do Estado Democrático de Direito, operando como diretriz para a ação de todos os poderes constituídos, sem exceção.
[…]"
 (RESPE — Agravo Regimental em Recurso Especial Eleitoral nº 13781 — SANTO ANTÔNIO DE PÁDUA — RJ, Acórdão de 22.11.2016, relatora ministra Luciana Lóssio, PSESS — Publicado em Sessão, em 22.11.2016).
"[…].
5. O pleno exercício de direitos políticos por seus titulares (eleitores, candidatos e partidos) é assegurado pela Constituição por meio de um sistema de normas que conformam o que se poderia denominar de devido processo legal eleitoral. Na medida em que estabelecem as garantias fundamentais para a efetividade dos direitos políticos, essas regras também compõem o rol das normas denominadas cláusulas pétreas e, por isso, estão imunes a qualquer reforma que vise a aboli-las. O artigo 14, §9º, que expressamente exige lei complementar para disciplinar as causas de inelegibilidades, e o artigo 16, que submete a alteração legal do processo eleitoral à regra da anualidade, ambos da CF/1988, constituem verdadeira garantia fundamental para o pleno exercício de direitos políticos, pois, além de estabelecerem barreiras ao legislador contra abusos e desvios da maioria, formam núcleo interpretativo para os operadores do direito, a coibir a inconstitucional criação de uma nova regra de contagem do prazo de inelegibilidades, mediante interpretação que mescla o regime anterior da LC nº 64/1990 e o atual, da LC nº 135/2010"
(ADPF nº 144/DF, relator ministro Celso de Mello, julgada em 6.8.2008).
[…]". (Respe — Recurso Especial Eleitoral nº 531807 – OURO PRETO – MG, Acórdão de 19/03/2015, relator(a) ministro Gilmar Mendes, publicado no DJE — Diário da justiça eletrônica —, tomo 104, de 3.6.2015, página 18).

Inadmissível restringir a capacidade eleitoral passiva de cidadã ou cidadão brasileiro(a) fora das hipóteses previstas na Constituição Federal e na Lei Complementar nº 64/90.

[1] Aqui.

[2] Idem.

[3] Idem.

[4] Idem.

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