Limite Penal

O jurista que "simplesmente não viu que ficou pra trás"

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11 de fevereiro de 2022, 9h17

Todo agente processual preocupado em melhorar o desempenho precisa adquirir habilidades tecnológicos. A capacidade de se adaptar às abruptas mudanças tecnológicas consiste em uma das melhores características dos agentes procedimentais focados na competitividade. Para além das objeções negacionistas da tecnologia, existem diversos sistemas capazes de apoiar a atividade dos agentes processuais (investigador, acusador, defensor e julgador; por exemplo, Marcella e Fabiana Mascarenhas aqui). Estamos cercados de computadores, máquinas inteligentes, capazes de realizar tarefas humanas (inteligência artificial fraca) com maior eficiência e eficácia do que humanos em algumas tarefas específicas.

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Da evidência de que hoje os sistemas inteligentes invadiram nossas vidas e, por via de consequência, precisamos avaliar a necessidade de adaptação ao ambiente cada vez mais revolucionário e desafiador. Afinal, carros autônomos estão nas nossas ruas, sistemas inteligentes estão invadindo o Direito, redes sociais mudaram o modo como interagimos. O processo penal lida cada vez mais com imensos volumes de dados e, também, de provas eletrônicas/digitais (Conferir escritos de: Geraldo Prado, Spencer Sydow, Fabiano Hartmann, Fernanda Moretzsohn, Patrícia Burin, Alesandro Barreto, Emerson Wendt, Sabrina Leles, Romullo Carvalho, Valéria Cheque, Rodrigo Chemin, Flaviane Barros, Antônio Pedro Melchior, Dierle Nunes, Luiz Eduardo Cani, Luís Guilherme Vieira, Juliana Bierrenbach, Carlos Hélder Mendes, dentre outros). Por isso, os agentes processuais são forçados a pensar o novo, a não mais copiar os velhos padrões, cujo sentido demanda agentes adaptados à linguagem das máquinas.

A exclusão digital se classifica em três aspectos: a) indisponibilidade de acesso (contexto social e/ou geográfico); b) meios de aquisição (econômico, financeiro); e, c) compreensão (incapacidade de domínio e uso dos artefatos digitais).

A tecnologia invadiu silenciosamente o processo penal. Muitos de nós ainda não nos demos conta ou procrastinamos a constatação. Acostumados com as práticas de sempre e com a tendência à inércia, podemos pensar: “em time que está ganhando não se mexe”. O problema do imobilismo tecnológico é o da perda das condições mínimas de exercer as nossas funções, uma forma de “obsolescência voluntária” ou mesmo “cegueira tecnológica”. Quando sequer sabemos que alguma coisa existe, nem ao menos podemos sentir falta dela. O problema é: quando o oponente se vale de aparatos tecnológicos, sem que nós saibamos, tenhamos ideia do que se trata e, muito menos, que tínhamos ferramentas tecnológicas à nossa disposição, mas que desconhecíamos, falhamos no nosso dever profissional de atualização constante (vide o “Manto da Invisibilidade Digital” aqui).

O Estado está investindo cada vez mais em tecnologia para investigação criminal. O Ministério Público Federal e os de vários estados estão investindo pesado em aparatos tecnológicos. A Defensoria Pública não consegue recursos para investimentos, enquanto advogados privados dependem das disponibilidades orçamentárias e de iniciativas fragmentadas. A ausência de “paridade de armas” tecnológicas tende a se ampliar no curto prazo. Se a acusação cada vez mais se vale de investigação tecnológica, de unidades de inteligência, pouco importa as armas defensivas analógicas da objeção ou de argumentação, porque a disparidade de condições impede o estabelecimento do contraditório significativo. Com Alexandre José Mendes falamos das “Armas Matemáticas de Investigação em Massa” (aqui). Muitas vezes a defesa sequer tem condições de “rodar” os dados entregues pela acusação, quanto mais realizar análise qualificada de conteúdo (não consegue classificar os dados, quanto mais encontrar uma oportunidade ou erro). Em matéria probatória, a depender do caso, as condições de contraditório, sequer existem, dada a disparidade de meios.

A diferença de abordagem do caso penal em face da tecnologia se coloca entre os: a) continuístas: que acreditam que a tecnologia é somente mais um recurso probatório, defendendo a mera continuidade do avanço tecnológico (pensam linearmente), e b) disruptivistas: que compreendem a invasão tecnológica como um novo modo de engajamento no processo penal, dado que modifica a experiência interativa (pensam não linearmente).

Enquanto os continuístas usam a tecnologia quando preciso, os disruptivistas se valem da tecnologia como pressuposto de atuação, a saber, incorporaram a tecnologia em suas tarefas diárias, desde a gestão das tarefas até a estratégia processual. Os disruptivistas tendem a sobreviver, já que a mudança precisa ser radical e não apenas reformista. Tecnologia não é mais um recurso, e sim o pressuposto de atuação profissional competitiva. O incremento tecnológico, ademais, é dinâmico. Além disso, diante da incapacidade de avaliação sobre as funcionalidades dos produtos tecnológicos, em geral, perdem-se muitas chances de melhoria de performance.

Os agentes procedimentais trazem consigo um conjunto de convicções robustas e entrincheiradas. A posição analógica pode gerar a falsa sensação de segurança, mas no mundo digital significa defasagem. O agente procedimental analógico corre sérios riscos porque a aceleração tecnológica é silenciosa e avassaladora, sem que, talvez, tenha sequer tempo suficiente para recuperar a desvantagem tecnológica atual, além de, depois de se dar conta, perceber que sua resistência pode ter lhe custado erros crassos, derrotas evitáveis.

É do constante trabalho de atualização das antigas convicções em face dos avanços tecnológicos que surge a capacidade de compreender melhor o ambiente processual penal invadido pela tecnologia. Será preciso reconhecer que alguns comportamentos simplesmente ficaram obsoletos/ultrapassados.

O futuro do Direito depende de uma decisão pessoal. De uma atitude. O ambiente digital do processo penal modificou-se e os agentes processuais precisam assumir as evidências: ou se atualizam tecnologicamente, ou continuarão em flagrante desvantagem competitiva.

Uma observação importante: as máquinas ou a tecnologia não substituirão os agentes processuais na decisão. O que as máquinas podem fazer é apoiar a nossa decisão, ampliar o nosso horizonte cognitivo, processar imensas quantidades de dados. Quem fará a diferença, ao fim e ao cabo, continuará sendo o humano. Aliás, as propostas que defendemos, na linha das Resoluções 332 e 363 do Conselho Nacional de Justiça, somente serão eficazes se soubermos as utilizar em apoio à decisão. A nossa aposta é a de que poderemos decidir mais bem apoiados pela tecnologia. Em nenhum momento defendemos, na esfera criminal, a substituição do agente processual humano, porque seremos nós os únicos responsáveis pelas decisões, até porque há sutilizas humanas no jogo penal.

O trabalho dos agentes processuais (com tecnologia) será cada vez mais artesanal, de um modo diverso. A capacidade de customização do caso penal, diante das potencialidades cognitivas das máquinas, amplia os horizontes, mas depende dos parâmetros, da seleção dos dados, das fontes, realizadas sob a nossa supervisão. O que faremos é mostrar como a máquina, sempre supervisionada por humanos, pode melhorar (muito) o nosso desempenho, em alguns casos, conferir condições mínimas de “paridade de armas” (matéria probatória, principalmente). A nossa capacidade de singularizar/individualizar o caso penal será a alavanca capaz de conferir tração cognitiva aos sistemas de apoio à decisão.

Cada um de nós (com nossos atributos, habilidades e inteligência) é o único capaz de tomar decisões em contextos dependentes da interação humana, como o processo penal, porque temos o potencial de mudar os rumos do caso penal, a saber, de assumir as responsabilidades inerentes à função, dentro das regras do jogo, e fazer a diferença: um game changer. Em artigo com Aury Lopes Jr e Daniel Kessler de Oliveira, desenvolvemos o argumento (aqui), sublinhando que a atitude de enfrentar as adversidades, pensar o impensado, arriscando a própria pele, dentro das regras, em ações limite, transforma as adversidades em oportunidades de virada dos rumos do caso penal. Essa é a nossa aposta: podermos fazer a diferença, ainda mais quando as máquinas podem nos apoiar (e muito) na tomada das melhores decisões.

P.S. Se você ficou curioso, consulte o site da A2BL. Pode ouvir o podcast Legal Driver. Em breve trarei novidades interessantes por lá. Uma delas aposto que irá te surpreender.

P.S. 2. Homenagem do título. Dona Ivone Lara, na voz de Vanessa da Mata (aqui).

P.S. 3. Hoje é aniversário de Jacinto Nelson de Miranda Coutinho. Aprendi e aprendo todos os dias com o meu eterno orientador de doutorado. Parabéns. Abraços e admiração.

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