Opinião

2022: uma retrospectiva com personagens de Glauber Rocha

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29 de dezembro de 2022, 21h16

Com uma câmera na mão e a Estética da Fome na cabeça, o jovem cineasta baiano mergulhou fundo no Brasil da década de 1960 e lá encontrou o Brasil de 2022, o qual representou nas obras-primas Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), Terra em Transe (1967) e O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro (1969).

Nessa trilogia, os personagens não são meras pessoas físicas (em seus papeis sociais), como em novelas televisivas brasileiras e nos westerns caricaturados na revolução ao final de O Dragão da Maldade. Eles são personagens-símbolos personificados representando fontes ou centros de poder (político), lembrando as entidades de um politeísmo.

Há os deuses da riqueza, das forças armadas, dos intelectuais, da Igreja, dos governantes civis, as deusas (dos prazeres) da vida e até mesmo uma espécie de deus das milícias (Matavaca). E há explicitamente dois deuses da mitologia dos orixás, os quais, dividindo o palco com os demais personagens, tornam mais evidente o caráter simbólico à maneira mitológica de todos eles.

Em Deus e o Diabo na Terra do Sol, Glauber, com menos de 25 anos de idade, percebeu, representou e vaticinou o embate de forças que levaria à instauração de um regime de repressão contra as aspirações políticas dos pobres. Previsão certeira: as primeiras exibições do filme ocorreram poucos dias antes de 31 de março de 1964.

Manuel vaqueiro (Geraldo Del Rey) representa o trabalhador explorado. Metade do filme, ele segue Deus; na outra metade, o diabo. Ou seguia os dois ao mesmo tempo? Eles eram tão parecidos com a mesma voz de Othon Bastos… Ao final, ele percebe que a culpa não é de Deus nem do diabo; é do homem mesmo… e somente a este cabe moldar a sociedade. E o sertão vira mar após os versos finais do narrador:

"O sertão vai virar mar e o mar virar sertão! Está contada minha história, verdade e imaginação, espero que o senhor tenha tirado uma lição: que assim mal dividido esse mundo anda errado, que a terra é do homem, não é de Deus nem do Diabo".

Fazendeiros representam a elite econômica; movimentos políticos do povo são representados pelos beatos de Sebastião (Lídio Silva) e pelos cangaceiros liderados por Corisco (Othon Bastos), o revolucionário que matava os pobres para que eles não morressem de fome.

Antônio das Mortes (Maurício do Valle) representa o braço armado da elite econômica agrária, agindo à maneira da polícia e forças armadas federais que, assassinando em massa, degolando sobreviventes e mortos, chacinaram os cangaceiros de Lampião e a população de Canudos [1].

O padre (João Gama), representando a Igreja, cita a atitude de Jesus perante os mercadores no templo para convencer Antônio das Mortes a matar os beatos, em um típico uso do cristianismo contra o cristianismo para fins políticos.

Quisesse Nosso Senhor Glauber tivesse nascido em 1999, ao invés de 1939; e lançasse seu filme mais conhecido em 2022, ele bem poderia se chamar Deus é o Diabo na Terra do Sol; Antônio das Mortes poderia continuar falando coisas estranhas e manter o sobrenome neste ano de tantas falas estranhas no qual Genivaldo de Jesus foi morto pela polícia a 300 quilômetros de onde foram massacrados os seguidores de outro Antônio, também conhecido por Bom Jesus e Conselheiro.

Porfírio Diaz (Paulo Autran) já estava presente na primeira missa celebrada em El Dorado, nome do Brasil em Terra em Transe (1967…). Ele é ligado à indústria armamentista e alterna nas mãos um crucifixo, uma arma e a bandeira nacional. Dá golpe civil-militar antes das eleições presidenciais porque sabe que não será eleito ("Se houver eleições, Vieira ganha; se não houver, ganho eu").

O populista Governador Vieira (José Lewgoy) está, em público, sempre acompanhado de um padre (Jofre Soares) e usa repressão policial contra manifestações populares; mas, candidato favorito às eleições, decide, invocando o nome de Deus, não combater as tropas enviadas por Porfírio.

A grande imprensa, representada pelo empresário Júlio Fuentes (Paulo Gracindo), vende-se a Porfírio em troca de promessa de publicidade paga pelo Estado. Antes, Júlio oferece ao poeta Paulo Martins (Jardel Filho) orgias com belas mulheres, nas quais consegue cooptar aquele intelectual. O poeta gravita entre os dois políticos até que, enfim, opositor de Porfírio, é perseguido e baleado por policiais rodoviários. Enquanto agoniza, narra o transe do intelectual brasileiro entre a defesa dos pobres e a dos ricos; erro que possibilita à elite econômica impor uma ditadura, que logo mata o intelectual.

Em 1969 veio a público O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro. Essa obra-prima traduz claramente os personagens de Deus e Diabo, cujos papeis são os dos principais atores da política brasileira: movimentos políticos dos pobres representados pelos beatos e cangaceiros; seu espírito/cultura representado por duas entidades da religiosidade afro-brasileira, Oxóssi (São Jorge no sincretismo com o catolicismo na Bahia, o Santo Guerreiro que morreu degolado) e Iansã (Santa Bárbara); a elite econômica ultraconservadora representada novamente por um fazendeiro, o Coronel Horácio (Jofre Soares); a Igreja representada por um padre (Emmanuel Cavalcanti) preocupado com o destino do movimento popular que seria trucidado por jagunços; a imprensa e demais intelectuais da classe média representados pelo Professor (Othon Bastos), que abre o filme ensinando História da maneira conservadora tradicional, fazendo os alunos decorarem datas; o poder civil representado pelo delegado (não poderia haver representante melhor para os órgãos do poder civil de um Estado de polícia).

Antônio das Mortes representa em O Dragão da Maldade as Forças Armadas brasileiras, como o evidenciam seu poderio bélico; seu "uniforme" com a famosa capa; a cena em que há um desfile de 7 de Setembro aparentemente sem a presença de nenhum militar, mas lá está Antônio, tendo Glauber de maneira genial situado Maurício do Valle entre crianças para que ele ficasse ainda maior e parecesse um tanque.

Para não haver dúvidas sobre o caráter simbólico de todos os personagens e sobre os papeis políticos por eles representados, Antônio das Mortes, o professor e o delegado Matos (Hugo Carvana) se encontravam no "Alvorada Bar", decorado com as figuras características da fachada do palácio de mesmo nome.

Nos três filmes, as mulheres têm o papel de guias e aspirações dos personagens masculinos, desde a Rosa (Ioná Magalhães) de Deus e o Diabo; passando pela esposa Sara (Glauce Rocha) e pela amante Sílvia (Danuza Leão) em Terra e Transe; até a Santa (Rosa Penna) e Laura (Odete Lara), em O Dragão da Maldade.

As personagens femininas parecem representar também o desejo de viver, seja apenas sobreviver (Rosa), viver lutando (Sara) ou viver uma vida de riqueza (Sílvia e Laura). Para tornar claro esse significado das personagens femininas, Glauber pôs a fala "Minha amante!", referindo-se a Sílvia, na boca do poeta Paulo, o intelectual com o coração dividido entre a causa dos pobres e a riqueza.

Esse papel das mulheres tem como referencial o momento histórico dos filmes e permite observar, no contraste com 2022, talvez a única alteração de papeis no teatro político brasileiro desde a década de 1960: elas passaram de coadjuvantes a protagonistas.

A personagem Laura não está de bom grado com o fazendeiro. Preferia os braços do delegado, que aceitava a reforma agrária e defendia o progresso capitalista. Tenta convencê-lo a matar o marido, mas o delegado não tem coragem. Descoberto o caso, a própria deusa mata o delegado. No enterro deste, o professor a beija freneticamente e luta com o padre que tenta afastá-lo de Laura para que vá defender os beatos do morticínio que se aproxima.

Laura representa os prazeres da vida na sociedade capitalista, ou seja, a boa vida que tem quem possa pagar (caro) por ela. Esposa do fazendeiro, amante do delegado e desejada pelo professor, lembra Sofia, de Quincas Borba, musa do também professor Rubião, que era explorado pelo banqueiro Palha (marido de Sofia) e pelo advogado e jornalista Camacho, o representante dos intelectuais naquela obra de Machado de Assis.

Em O Dragão da Maldade, Glauber parece fazer um apelo às Forças Armadas (que governavam o Brasil desde 1964): que deixem de obedecer à elite econômica e passem a defender os pobres. Esse apelo é feito por meio da conversão de Antônio das Mortes pela Santa-Iansã.

O fazendeiro determina a morte dos beatos e dos cangaceiros. Chegando ao lugar do massacre, o Professor senta-se sobre as costas do "Nego Antão" (Mário Gusmão) e o espanca, repetindo o que fazia o menino Brás Cubas com seu escravo Prudêncio, enquanto diz: "É sempre assim! Só gira, gira… Nunca muda! Brasil! Brasil!! Brasil!!!"

O Professor (incapaz de legitimar tamanha ruptura da ordem) tenta ir embora, exilar-se. Mas nenhum caminhão lhe dá carona. Ao som de "Reconhece a guerra e não desanima… levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima!", Antônio o traz de volta para também guerrear pelo povo.

Até a conversão de Antônio e desde Deus e o Diabo, ele aparentemente é o dragão que luta com o santo guerreiro. Porém, o caçador de uma flecha só revela e acerta o verdadeiro dragão: o fazendeiro, caracterizado como um personagem cego. Ele é a elite econômica brasileira tradicional e reacionária, que alça ao poder ditadores, promove a desigualdade, mantém na miséria e mata o povo. Por quê? Glauber explica: Ela é cega por seus interesses. Acaba morta pela lança de São Jorge-Oxóssi.

 


[1] "Espantoso é o tamanho dos estilhaços de granadas lançadas contra o povo pelo canhão inglês Whitworth 32. (…)"

"Penetrando pelos tetos e pelas paredes", anotou Euclides [da Cunha] em seu diário em 1º de outubro de 1987, "as granadas explodiam nos quartos minúsculos despedaçando homens, mulheres e crianças sobre as quais descia, às vezes, o pesado teto de argila, pesadamente, como a laje de um túmulo" (https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2019/06/destruida-duas-vezes-canudos-sobrevive-em-meio-a-escombros-e-miseria.shtml).

"Vitoriosas, as tropas da República se vingaram das derrotas sofridas. Prisioneiros foram executados e mulheres estupradas. As ruínas da cidade foram totalmente queimadas. O Exército cumpria as determinações do presidente Prudente de Morais, que declarara: Em Canudos não ficará pedra sobre pedra, para que não mais possa se reproduzir aquela cidadela maldita'" (https://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs210904.htm).

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