Tribunal do Júri

A (in)subsistência da presunção de inocência no Tribunal do Júri

Autores

  • Gina Ribeiro Gonçalves Muniz

    é mestre em Ciência Jurídico Criminais pela Universidade de Coimbra e defensora pública do estado de Pernambuco.

  • Denis Sampaio

    é defensor público titular do 2º Tribunal do Júri do Rio de Janeiro doutor em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Lisboa (Portugal) mestre em Ciências Criminais pela Ucam-RJ investigador do Centro de Investigação em Direito Penal e Ciências Criminais da Faculdade de Lisboa membro consultor da Comissão de Investigação Defensiva da OAB-RJ membro honorário do Instituto dos Advogados Brasileiros professor de Processo Penal e autor de livros e artigos.

  • Rodrigo Faucz Pereira e Silva

    é advogado criminalista habilitado no Tribunal Penal Internacional (em Haia) pós-doutor em Direito (UFPR) doutor pelo Programa Interdisciplinar em Neurociências (UFMG) mestre em Direito (UniBrasil) e coordenador da pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI.

17 de dezembro de 2022, 8h00

O princípio da presunção de inocência encontra assento no artigo 5º, inciso LVII da CF, com a seguinte redação: "ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória". O Brasil é ainda signatário da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (CADH), também conhecida como Pacto de San José da Costa Rica, e o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (PIDP), que consagram, outrossim, a presunção de inocência como um elemento basilar do sistema processual penal.

Spacca
O Supremo Tribunal Federal, no dia 7/11/2019, por ocasião do julgamento das ADCs 43, 44 e 54 (relator ministro Marco Aurélio), ratificou a vigência do princípio da presunção de inocência durante toda a persecução penal, e proibiu a execução provisória da pena. Nesta toada, desde já, salienta-se que as decisões proferidas pelo tribunal do júri são de primeira instância e, sendo assim, sequer poderia entrar na supracitada discussão sobre se a execução se dá após o trânsito em julgado ou da decisão colegiada pelos tribunais em segunda instância.

Posteriormente, o Pacote Anticrime (Lei 13.964/19) vedou expressamente a decretação da prisão preventiva com cariz de pena antecipada (CPP, artigo 313, §2º).

Todavia, e nesse ponto em dissonância com a diretriz constitucional, o mesmo Pacote Anticrime determinou a prisão automática do réu condenado pelo Tribunal do Júri a uma pena igual ou superior a 15 anos de reclusão (CPP, artigo 492, inc. I, "e"). Eis o cerne da problemática apresentada no presente artigo: a presunção de inocência, com relação ao Tribunal do Júri, não possui efeito normativo até o trânsito em julgado da decisão condenatória? A questão é alvo do Tema 1.068 (STF, RE 1.235.340, relator: ministro Roberto Barroso), cujo julgamento encontra-se suspenso em razão do pedido de vista do ministro André Mendonça.

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O ministro Luís Roberto Barroso, relator da matéria, propôs a aprovação da seguinte tese: "A prisão de réu condenado por decisão do Tribunal do Júri, ainda que sujeita a recurso, não viola o princípio constitucional da presunção de inocência ou não-culpabilidade". Nesse sentido, já se posicionaram os ministros Dias Toffoli, Alexandre de Moraes e Cármen Lúcia. Essa tese deita suas raízes na soberania dos veredictos.

Como fica claro no texto constitucional, o direito do acusado a ser julgado diretamente pela sociedade, nos crimes dolosos contra a vida, é uma manifestação do regime democrático no processo penal. Aos jurados incumbe a "posição de garantidores da eficácia do sistema de garantias da Constituição (democracia substancial)" [1]. Torna-se claro, portanto, que a soberania dos veredictos não possui caráter de bloqueio à presunção de inocência. Ao contrário, ambas são garantias constitucionais que visam assegurar maior proteção ao indivíduo contra alvedrios e injustiças. Frise-se que, "a soberania dos veredictos, por ser um princípio constitucional do cidadão, jamais poderá ser utilizado como fundamento de restrição de direitos" [2].

A criação, pela via infraconstitucional, de um marco de antecipação dos efeitos da sentença condenatória viola o princípio da presunção de inocência, vez que o preceito constitucional é expresso em estabelecer que o direito fundamental vigora até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória. Somente neste momento se opera a "certeza normativa" exigida constitucionalmente para que seja afastado o estado de inocência do réu. Ainda que um tribunal formado por juízes togados não possa reformar o mérito da decisão condenatória dos jurados, subsiste a possibilidade da cassação/anulação/revisão dessa decisão.

Logo, aduz-se que a soberania dos veredictos não implica intangibilidade das decisões dos jurados [3]. Há possibilidade de se recorrer das sentenças do Júri nas seguintes situações, legalmente preestabelecidas: 1) nulidade posterior à pronúncia; 2) quando for a sentença do juiz-presidente contrária à lei expressa ou à decisão dos jurados; 3) se houver erro ou injustiça no tocante a aplicação da pena ou de medida de segurança; ou 4) quando for a decisão dos jurados manifestamente contrária à prova dos autos.

O provimento dos recursos contra a decisão do Júri pode implicar, por exemplo, cassação do julgamento, com a consequente determinação de uma nova sessão plenária. Nada impede que o réu condenado no julgamento cassado venha a ser absolvido pelo outro corpo de jurados. Por conseguinte, não há justificativa para que o acusado seja tratado como culpado no transcorrer do recurso. Mesmo que haja a afirmativa da pequena possibilidade de se reverter a situação do réu na segunda instância ou tribunais superiores, ela existe e há de ser considerada, pois a liberdade do cidadão é um direito fundamental consagrado constitucionalmente.

Não se pode esquecer que a redação do artigo 492, inciso I, "e" do CPP, para além de violar a presunção de inocência enquanto norma de tratamento, confere tratamento díspar aos acusados. O princípio da isonomia constitui uma das diretrizes de atuação dos agentes públicos e, por isso, a legitimação de qualquer regra que preveja diferenciação entre as pessoas dependerá da existência de uma ligação razoável entre o parâmetro comparativo e o fim a que visa a norma.

Inexiste um critério lógico para justificar que um acusado condenado a quinze anos seja submetido a uma prisão automática, ao passo que outro sentenciado em quatorze anos e dez meses pelo mesmo Conselho de Sentença, só possa ser preso se, e somente se, presentes os requisitos autorizadores da prisão preventiva. Ou, indo além, porque ao acusado condenado a mais de 15 anos por homicídio terá sua pena executada antecipadamente, enquanto ao condenado por latrocínio a mais de 15 anos não?

Consoante leciona Faria Costa [4], "sem uma correta densificação do princípio da igualdade jurídica, dentro do território normativo do direito penal, tem-se se a 'certeza' de que o princípio da certeza jurídica, e como ele a própria ideia de direito, sairá muito prejudicado, quando não anulado pela hegemonia da mais desenfreada arbitrariedade".

Essa brecha legal autorizadora da execução provisória da sentença do Júri abre margem para que o juiz-presidente direcione a dosimetria da pena para o quantum de quinze anos, principalmente quando ciente de que no caso concreto inexiste fundamento legal para decretação/manutenção da prisão preventiva.

Imperioso lembrar que, antes mesmo da revogação expressa dos artigos 393, inciso II, e 408, §1º, ambos do CPP, que admitiam inscrição no rol dos culpados, respectivamente, dos condenados provisórios e pronunciados, o STF já tinha firmado posicionamento pela impossibilidade do lançamento do nome do réu no rol dos culpados antes do trânsito em julgado da sentença condenatória [5], sob a argumentação de que tal prática afrontava o princípio constitucional da presunção de inocência. É, pois, contraditório, que a corte utilize o mesmo fundamento (princípio da presunção de inocência) para coibir "o menos" (inscrição no rol de culpados) e admitir "o mais" (encarceramento decorrente de sentença recorrível do Tribunal do Júri).

O constituinte originário, consciente de todo o trâmite do processo penal, inclusive da existência do Tribunal do Júri, optou por assegurar o "estado de inocência" até a decisão da última instância judicial: trata-se de escolha representativa da conjugação dos direitos fundamentais da dignidade da pessoa humana, da presunção de inocência e do devido processo legal [6].

Decerto, o direito fundamental ao "estado de inocência" não é absoluto. Por vezes, o princípio da presunção de inocência haverá de ser restringido em favor de se estabelecer uma concordância prática frente as situações que lhe são, ao menos aparentemente, adversas. Nessa seara, destaca-se a possibilidade de decretação das prisões preventivas antes do trânsito em julgado da sentença condenatória e resta consequentemente rechaçada a argumentação de que a adoção da presunção de inocência como eixo do Tribunal do Júri representa óbice à proficuidade persecutória. A execução de pena ainda não transitada em julgado configura violação, e não restrição, ao princípio da presunção de inocência.

O princípio da presunção de inocência avulta da dialética entre o aparato punitivo estatal e o direito de liberdade individual: trata-se de uma opção de política internacional de proteger a pessoa em detrimento do poder punitivo do Estado, nos meandros do processo penal. Por conseguinte, em que pese o direito fundamental ao status de inocente não seja absoluto, deve-se primar pela máxima aplicabilidade do princípio da presunção de inocência.

Por outro lado, a tese apresentada pelo ministro Gilmar Mendes, no julgamento do RE 1.235.340, em contraposição à tese proposta pelo relator, tem robustez constitucional e convencional: "A Constituição Federal, em razão da presunção de inocência (art. 5º, inciso LVII), e a Convenção Americana de Direitos Humanos, em razão do direito ao recurso ao condenado (art. 8.2.h) vedam a execução imediata das condenações proferidas por Tribunal do Júri, mas a prisão preventiva do condenado pode ser decretada motivadamente, nos termos do art. 312 CPP, pelo Juiz-Presidente e a partir dos fatos e fundamentos assentados pelos Jurados". O ministro Ricardo Lewandowski seguiu esse entendimento.

Vale ressaltar que a 5ª e a 6ª Turmas do STJ já se posicionaram pela ilegalidade da prisão automática do réu solto em razão da condenação não definitiva do Tribunal do Júri, justamente em reconhecimento ao direito fundamental da presunção de inocência (HC 737.749/MG, relator ministro Rogério Schietti Cruz, 6ª Turma, por unanimidade, julgado em 28/6/2022, Dje 30/6/2022).

O acusado, independente da natureza ou gravidade do crime apurado e a despeito do interesse social na repressão criminosa, precisa ser tratado como inocente durante toda a persecução penal, o que não impede a decretação da prisão preventiva se presentes os requisitos legais autorizadores.

Admitir a constitucionalidade do artigo 492, inciso I, "e" do CPP equivale a admitir que, a partir de determinado momento processual — sentença condenatória recorrível do Tribunal do Júri —, passa a vigorar a presunção de culpa em total dissonância com o imperativo constitucional que é enfático em separar o inocente do culpado somente quando do trânsito em julgado da sentença condenatória.

Impende ainda destacar a relevância que o trânsito em julgado possui no Estado Democrático de Direito, vez que consolida as relações sociais, garantindo-lhes estabilidade e segurança jurídica [7], consubstanciando-se em termo objetivo para a cessação da eficácia do princípio da presunção de inocência.

Nossa expectativa com relação ao desfecho do julgamento do RE 1.235.340, em que se pese o prognóstico não seja favorável ao nosso entendimento, é que o STF — guardião da nossa Constituição — decida pela inconstitucionalidade do do artigo 492, inciso I, "e" do CPP. Decisão em sentido contrário representa um retrocesso na salvaguarda dos direitos fundamentais do acusado, com o intuito de suprir a insuficiência estatal no seu papel de garantir a segurança pública da sociedade e combater a criminalidade.

 


[1] LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. São Paulo: Saraiva, 2019, p. 852.

[2] EREIRA E SILVA, Rodrigo Faucz; AVELAR, Daniel Ribeiro Surdi de. Plenário do Tribunal do Júri, 2ª ed., rev., atual., ampl. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2022. p. 244.

[3] O conceito de soberania dos vereditos é relativamente simples: não se admite reforma de mérito da decisão do Tribunal do Júri, por quem quer que seja (PEREIRA E SILVA, Rodrigo Faucz; AVELAR, Daniel Ribeiro Surdi de. Manual do Tribunal do Júri, São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, p. 145).

[4] COSTA, José de Faria. O princípio da igualdade, o Direito Penal e a Constituição. In Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, ano 21, nº 100, p. 227-251, jan./fev. 2013, p. 250.

[5] Sobre o posicionamento do STF nessa questão, vide os seguintes arestos da corte: HC 69.696/SP, HC 80.174/SP, HC 80.535/SC, HC 82.812/PR.

[6] Sobre o tema, indispensável a leitura do livro do Professor Maurício Zanoide de Moraes (MORAES, Mauricio Zanoide de. Presunção de inocência no processo penal brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.)

[7] CANOTILHO, J. J. Gomes; Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7ª ed. Coimbra: Almedina, 2003, p. 264-265.

Autores

  • é defensora pública no Estado de Pernambuco e mestre em ciências jurídicas criminais pela Universidade de Coimbra.

  • é defensor público, titular do 2º Tribunal do Júri do Rio de Janeiro, doutor em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Lisboa (Portugal), mestre em Ciências Criminais pela Ucam-RJ, investigador do Centro de Investigação em Direito Penal e Ciências Criminais da Faculdade de Lisboa, membro Honorário do Instituto dos Advogados Brasileiros e professor de Processo Penal.

  • é advogado criminalista, pós-doutor em Direito (UFPR), doutor pelo Programa Interdisciplinar em Neurociências (UFMG), mestre em Direito (UniBrasil), coordenador da pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI, professor de Processo Penal da FAE e do programa de mestrado em Psicologia Forense da UTP.

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