Limite Penal

"Bateu na trave": valor probatório da palavra do policial na decisão do STJ

Autor

  • Janaina Matida

    é professora de Direito Probatório da Universidad Alberto Hurtado (Chile) doutora em Direito pela Universitat de Girona (Espanha) e consultora jurídica em temática da prova penal.

16 de dezembro de 2022, 8h47

Recentemente, a 5ª Turma do STJ (Superior Tribunal de Justiça) finalizou o julgamento do AREsp 1.936.393/RJ, que absolveu, por unanimidade, réu que então fora condenado por tráfico de drogas a partir única e exclusivamente dos testemunhos de dois policiais.  Os testemunhos haviam sido considerados suficientes pelo TJ-RJ (Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro), ao reformar a absolvição em 1ª instância.

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O julgamento no STJ desdobrou-se de forma inusitada porque, muito embora a turma tenha acompanhado o relator, ministro Ribeiro Dantas, no sentido de absolver o réu, houve divergência liderada pelo ministro Joel Ilan Paciornik quanto às razões que fundamentavam a absolvição. Nos termos de Cass Sunstein, houve um "acordo incompletamente teorizado", situação que impediu que se formasse a ratio decidendi do precedente que o ministro Ribeiro Dantas pretendia construir. A ementa sintetiza os debates que ocorreram no tribunal nos dias 23/8 e 25/10:

"PENAL E PROCESSUAL PENAL. AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. TRÁFICO DE DROGAS. CONDENAÇÃO BASEADA EXCLUSIVAMENTE NOS DEPOIMENTOS DOS POLICIAIS RESPONSAVEIS PELA PRISÃO EM FLAGRANTE. DESATENDIMENTO AOS CRITERIOS DE COERÊNCIA INTERNA, COERÊNCIA EXTERNA E SINTONIA COM AS DEMAIS PROVAS NOS AUTOS. DESTAQUE À VISAO MINORITÁRIA DO MINISTRO RELATOR QUANTO À IMPOSSIBILIDADE DE A CONDENAÇÃO SE FUNDAMENTAR EXCLUSIVAMENTE NA PALAVRA DO POLICIAL. UNANIMIDADE, DE TODO MODO, QUANTO À NECESSIDADE DE ABSOLVIÇÃO DO RÉU. AGRAVO CONHECIDO PARA DAR PROVIMENTO AO RECURSO ESPECIAL, A FIM DE RESTAURAR A SENTENÇA ABSOLUTÓRIA.
(…)
3. Ressalte-se a visão minoritária do Ministro Relator, acompanhada pelo Ministro Reynaldo Soares Fonseca, segundo a qual a palavra do agente policial quanto aos fatos que afirma ter testemunhado o acusado praticar não é suficiente para a demonstração de nenhum elemento do crime em uma sentença condenatória. É necessária, para tanto, sua corroboração mediante a apresentação de gravação dos mesmos fatos em áudio e vídeo."

Ou seja, havendo acordado sobre o desfecho absolutório do caso concreto, a turma divergiu sobre os elementos que o ministro Ribeiro Dantas pretendia fixar como necessários à satisfação do standard probatório penal quando as hipóteses acusatórias tivessem por fundamento a palavra de um agente policial. O relator pretendia que o registro audiovisual da atuação policial fosse elevado à condição mínima para o aproveitamento do testemunho policial. A Limite Penal de hoje será dedicada à defesa das razões contempladas no voto do ministro Ribeiro Dantas.

Em primeiro lugar, o voto reflete necessária preocupação com a realidade dos fatos.  Nada menos que 23 relatórios, nacionais e internacionais, foram citados pelo relator com o objetivo de delinear a magnitude do problema que oferecera ao exame da turma: conferir excesso de credibilidade à palavra do policial representa incentivo institucional à violência policial em suas mais diversas formas. Os numerosos dados empíricos trazidos no voto servem a demonstrar que tal preocupação está longe de ser mera opinião do magistrado. Os números sugerem fortemente uma dinâmica de sistemática opressão em nossa sociedade. Ora, se pretendemos que o direito cumpra a sua principal função de conformar a vida em sociedade, tornando-a melhor, é preciso que se conheça a sociedade para qual as decisões judiciais serão elaboradas — sem idealizações ingênuas. Daí a importância das pesquisas citadas no voto. Listo todas:

1) "Prisão provisória e Lei de Drogas: um estudo sobre os flagrantes de tráfico de drogas na cidade de São Paulo" (2011): Estudo da Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP) verificou que 74% das prisões em flagrante por tráfico de drogas no município de São Paulo alicerçaram-se unicamente na palavra dos policiais (nov, dez 2010, jan 2011);

2) Dados do Depen: de julho a dezembro de 2021, a população carcerária brasileira era de 670.714 pessoas, sendo 219.398 encarcerados por delitos tipificados pela Lei de Drogas. Se experimentássemos cruzar os 74% da pesquisa anterior com os 219.398 condenados por drogas, chegaríamos à preocupante estimativa de que cerca de 160 mil foram condenados apenas com base na palavra do policial.

3) Anuário da Secretaria de Segurança Pública (2022): Em 2021 o Brasil teve 47.503 mortes violentas. 6.145 delas (13%) foram causadas por policiais. Isso significa que em 2021, a cada dia, em todos os 365 dias, a polícia tirou a vida de 17 brasileiros.

4) "Number of people shot to death by the police in the United States from 2017 to 2022 by race": De acordo com levantamento feito pelo Statista Research Departament, em 2021, a polícia norte-americana matou seis vezes menos do que a brasileira, mesmo sendo população estadunidense 50% maior do que a nossa. Lá foram 1055 no total.

5) Relatório da Comissão Interamericana de Direitos Humanos no caso Wallace de Almeida (2009): denúncia da má utilização do argumento da legítima defesa ou do estrito cumprimento do dever legal para ocultar abusos cometidos justamente por aqueles que deveriam proteger a população.

6) Levantamento da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro (2021): de junho de 2019 a agosto de 2020, 1.250 assistidos relataram ter sido vítimas de tortura. Desse total, 66% não chegaram a ser mencionados nas audiências de custódia (medo de represálias). Além do mais, 75% das condenações por tráfico de drogas, destes casos de tortura, fundamentaram-se na súmula 70 do TJ-RJ.

7) Subsídios à Missão do Subcomitê das Nações Unidas para Prevenção da Tortura (SPT) ao Brasil (2022). Ao menos 55.799 relatos de tortura em audiências de custódia nos últimos seis anos. Deles, somente 5% foram investigados.

8) "Tortura blindada" (2017) : De julho a novembro de 2015, a Conectas coletou dados de 393 pessoas que passaram por audiência de custódia no Fórum da Barra Funda (SP) em que foram identificados sinais de tortura. Em 26%, as denúncias foram ignoradas pelo juiz; nos outros 74%, a única providência tomada foi o envio dos autos às Corregedorias das próprias polícias. Estes casos de autos enviados às Corregedorias resultaram na instauração de um único inquérito. A pesquisa também indica desinteresse do Ministério Público nas denúncias de tortura.

9) Relatório sobre medidas destinadas a reduzir o uso da prisão preventiva nas Américas (2017). Documento da Comissão Interamericana de Direitos Humanos destacou a indiferença do Ministério Público brasileiro na investigação dos abusos policiais. O ministro Ribeiro Dantas reproduziu um longo trecho do relatório, do qual repiso este:

"A CIDH destaca os dados proporcionados pela organização Conectas, que indicam que dos 358 casos documentados onde foram apresentadas alegações sobre mais tratos ou tortura durante a detenção, em 24,5% dos mesmos — isto é, em 88 casos — a autoridade judicial perguntou sobre os fatos da violência sofrida; e apenas em 12,01% dos mesmos — equivalente a 43 casos — os promotores intervieram de forma ativa para indagar sobre os mesmos. E somente em dois casos — nos quais os agressores não eram agentes do Estado — o Ministério Público requereu a abertura de inquérito." (p. 123-124)

10) "Investigação e processamento de crimes de tortura em Goiânia, Curitiba e Belo Horizonte" (2016). Em dados coletados entre 2010-2013, pesquisadores do NEV-USP a partir de dados coletados entre 2010-2013, constataram desinteresse das Corregedorias nas investigações para apurar eventual abuso policial. No voto, é possível encontrar essa citação direta:

"As instituições de controle interno são geralmente assumidas pelos próprios pares dos perpetradores da tortura e não é incomum deparar-se com um corregedor, por exemplo, que outrora foi acusado desse mesmo crime." Os pesquisadores também identificaram aspectos problemáticos nas perícias que são realizadas para verificar se houve tortura. De acordo com eles, é comum que o policial suspeito da tortura acompanhe a vítima no exame médico. "Não é de se admirar que as perícias de crimes de tortura sejam consideradas insuficientes".

11) "Report of the Special Rapporteur on Torture and Other Cruel, Inhuman or Degrading Treatment or Punishment on his Mission to Brazil" (2016):  Verificadas tortura e debilidade periciais pelo inspetor especial da ONU em viagem ao Brasil.

"O inspetor especial expressa a sua preocupação quanto ao fato dos serviços forenses no Brasil, incluindo os IML’s, são marcados por uma profunda falta de treinamento em padrões médicos forenses internacionais, como o Manual para a Efetiva Investigação e Documentação de Tortura e Outras Formas de Tratamento ou Punição Degradantes (Protocolo de Istambul) e o Protocolo Modelo para uma Investigação Jurídica de Execuções Sumárias, Arbitrárias e Extrajudiciais (Protocolo de Minnesota). (…) O inspetor especial reforça a falta de independência e o risco de prejuízo à imparcialidade dos examinadores forenses."

12) UN Experts decry acts of racialised police brutality (2022): Documento do Office of the High Comissioner for Human Rights (OHCHR) ressaltou preocupação diante das últimas chacinas brasileiras, enquanto manifestações do “uso excessivo e letal da força por agentes policiais no Brasil, de forma sistemática e persistente”.

13) "Stop torture global survey: attitudes to torture" (2014): Pesquisa da Anistia Internacional em 21 países: 80% dos brasileiros temem tortura policial em caso de eventual prisão. Dos países participantes do estudo, o Brasil lidera isolado esse ranking (México com IDH similar ao brasileiro tem 64%; Paquistão e Indonésia que apresentam IDH inferiores apareceram com 58% e 54%, respectivamente.

14) "Escuta dos profissionais de segurança do Brasil" (2021) Pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. A partir de entrevista a 9.067 policiais de diversas corporações de todo país, constatou-se que 18,4% deles foram vítimas de tortura realizada pela própria instituição, 54,8% foram humilhados por superiores hierárquicos, 91,6% estão descontentes com os níveis de corrupção de suas próprias corporações.

15) "Convicting the Innocent: The Role of Prosecutors, Police and Other Law Enforcement" (2020): National Registry of Exonerations (NRE) dos Estados Unidos constatou que em 54% das condenações injustas revisadas há condutas ilícitas praticadas por algum policial; 10% envolvem fabricação de provas.

16) "The Benefits of Body-Worn Cameras: New Findings from a Randomized Controlled Trial at the Las Vegas Metropolitan Police Department" (2017): detecção de redução do número de policiais que fizeram uso da força durante o período apurado, de 31,2% para 19,7% a partir da imposição do dever de usar câmeras corporais (body-cams).

17) "The impact of on-officer video cameras on police-citizen contacts: findings from a controlled experimente in Mesa, AZ" (2015): Pesquisadores da Arizona State University junto ao Mesa Police Department verificam redução de 75% nas mesmas circunstâncias.

18) "The Effect of Police Body-Worn Cameras on Use of Force and Citizens’s Complainsts Against the Police: A Radomized Controlled Trial": Dados coletados entre 2009-2011 na Rialto Police Department (California) indicaram a diminuição de 50% no emprego da força por policiais a partir da imposição do uso de câmeras.

19) "De-escalation technology: the impact of body-worn cameras on citizen-police interactions". (2021): verificação da diminuição de 61,2% do uso da força em abordagens policiais após o uso das câmeras corporais.

20) "Apuração feita pela Folha de S.Paulo": redução de 85% da letalidade policial nos batalhões da Polícia Militar de São Paulo durante o ano de 2021, depois da chegada das câmeras corporais.

21) "Relatório do European Committee for the Prevention of Torture and Inhuman or Degrating Treatment or Punishment" (2019): indica que momentos imediatamente seguintes a uma abordagem policial são os mais propícios para a ocorrência da tortura.

22) "No tape, no testimony: How Courts Can Ensure the Responsible Use of Body Cameras": Relatório da Faculdade de Direito de Berkeley em conjunto com a American Civil Liberties Union Foundation of Massachusetts (2016). Atesta que "as câmeras corporais podem ser fundamentais na descoberta da verdade quando os fatos de um encontro entre polícia e cidadão são contestados", havendo evidências de que, "quando as câmeras corporais são consistentemente ativadas, podem dissuadir a prática da má conduta ou violência".

23) "Julgando a tortura" (2015): A Conectas, a partir de análise jurisprudencial de 2005-2010 recomenda a criação de mecanismos de monitoramento de espaços e ocasiões nas quais a violência sistematicamente é perpetrada.

São dados abundantes que descortinam algo que precisamos urgentemente ser capazes de reconhecer: uma cultura jurídica que se apoia na sobrevaloração probatória da palavra do policial contribui à inefetividade dos direitos fundamentais de expressiva parcela de sua população. Ela fecha os olhos para o racismo estrutural e, ao se negar implementar estratégias para resolver o problema, passa a ser parte dele, aprofundando-o. A impunidade que se pretende combater é retroalimentada por falhas institucionais que precisam ser superadas conjuntamente.

E neste contexto, não é razoável que o Judiciário continue a tratar do valor probatório da palavra do policial desconsiderando a sensível relação policial-cidadão no cotidiano das cidades brasileiras. Estão sob disputa conceitos como "atitude suspeita", "tráfico de drogas", "resistência à prisão", "estrito cumprimento do dever legal", "legítima defesa", entre outros, sendo o policial diretamente interessado em justificar a sua ação. As assimetrias de poder social rapidamente convertem-se em assimetrias jurídicas, já que a hipótese fática que acusa o jovem negro periférico é automaticamente tida como mais confiável, sem que, no entanto, haja razões para isso. Mais do que isso: os dados empíricos reforçam a necessidade de cautela.

Exigir as gravações para a corroboração do que o policial alega é mais do que razoável: é racional. E não porque se desconfie de um ou outro policial em particular, mas porque se nos impõe ver que é estruturalmente enorme o poder que a Polícia-instituição exerce na vida em sociedade e, nesta medida, que seus agentes representam contínuo risco de arbitrariedades, violações e até de letalidade aos mais vulnerabilizados. Logo, as gravações servem a dissuadir abusos, ao mesmo tempo em que aperfeiçoam a exigência de corroboração de um modo epistemicamente fiável mediante tecnologia acessível.

Assim, apesar do esforço argumentativo do ministro Ribeiro Dantas, o STJ desperdiçou valiosa oportunidade de consolidar avanços epistêmicos e humanitários à sociedade brasileira ao não acompanhar a coragem racional refletida nas razões de decidir aí oferecidas. Às vésperas da Copa do Mundo (25/10), o STJ bateu na trave quanto ao precedente que a efetividade dos direitos fundamentais e a verdade dos fatos merecem.

Autores

  • é professora de Direito Probatório da Universidad Alberto Hurtado (Chile), doutora em Direito pela Universitat de Girona (Espanha) e presta consultoria jurídica na temática da prova penal.

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