Opinião

Colaboração premiada e a legitimidade da pessoa jurídica para o acordo

Autor

  • Galtiênio da Cruz Paulino

    é mestre pela Universidade Católica de Brasília doutorando pela Universidade do Porto pós-graduado em Direito Público pela ESMPU e em Ciências Criminais pela Uniderp orientador pedagógico da ESMPU ex-procurador da Fazenda Nacional e atualmente procurador da República e membro-auxiliar na Assessoria Criminal no STJ.

30 de agosto de 2022, 10h05

A 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça decidiu no RHC nº 154.979 que o Ministério Público não pode celebrar acordo de colaboração premiada com pessoa jurídica, a qual não possui capacidade e voluntariedade para firmar o pacto [1].

Conforme ressaltado em outra oportunidade [2], os acordos de colaboração, assim como todo negócio jurídico, estão submetidos aos planos de existência, eficácia e validade, especificados no Código Civil, e sedimentados de acordo com as peculiaridades do acordo de colaboração premiada previstas na Lei nº 12.850/2013.

Um negócio jurídico existirá, ou seja, estará constituído, quando estiverem presentes os seguintes elementos: manifestação de vontade das partes, presença de agentes emissores da vontade, objeto e forma. Em um acordo de colaboração, esses elementos se perfazem presentes no momento que as partes (colaborador e Ministério Público ou polícia) manifestam a concordância quanto ao objeto pactuado em consonância com os requisitos (forma) previstos em lei.

Por outro lado, para um negócio jurídico ser válido, a manifestação da vontade deve ser livre e de boa-fé, os agentes devem ser capazes e legitimados para celebrarem o pacto, que deve abarcar um objeto lícito, possível e determinado (ou determinável), bem como observar a forma adequada livremente adotada pelas partes ou prescrita em lei. Superada essa etapa, por meio da observância dos requisitos expostos, o acordo de colaboração, já devidamente constituído, passa a ser válido.

Um negócio jurídico devidamente constituído (plano da existência) e válido (plano da validade) muitas vezes só produzirá efeitos se observado, em determinados casos, um elemento acidental. Nos acordos de colaboração premiada, a lei condiciona a produção de efeitos (plano da eficácia) do pacto celebrado à homologação pelo juízo, que não participa das negociações e não adentra no mérito do acordo (plano da existência) [3], realizando apenas uma análise de legalidade e constitucionalidade da colaboração.

Observa-se, portanto, que apenas os sujeitos dotados de legitimidade podem celebrar um acordo de colaboração premiada. A legitimidade para o acordo decorre da titularidade dos direitos que serão negociados no pacto.

Em um acordo de colaboração, o colaborador, então investigado/acusado, abre mão do seu direito fundamental ao silêncio e da garantia da não autoincriminação em troca de um prêmio ofertado pelo Estado, em razão de ter decidido colaborar de maneira efetiva com a persecução penal, contribuindo, por conseguinte, para a elucidação de crimes que tenha participado ou tenha conhecimento. Em contrapartida, o Ministério Público ou a autoridade policial abre mão parcialmente do exercício da persecução penal, concedendo um prêmio ao colaborador (concessão de prêmio exclusiva do Ministério Público), em decorrência de ele (colaborador) ter realizado uma colaboração útil à persecução penal.

Observa-se, portanto, que apenas os titulares dos direitos em discussão (acusado e Ministério Público/autoridade policial) podem celebrar um acordo de colaboração premiada, pois não é cabível se transacionar, salvo nas hipóteses legais, direitos de outrem.

Ora, como admitir que uma pessoa jurídica possa dispor do direito ao silêncio e da garantia da não-autoincriminação de outrem, no caso os investigados/acusados, sejam eles sócios ou não da empresa?

É diante dessa legitimidade vinculada à titularidade dos direitos transigidos pelas partes celebrantes de um acordo de colaboração premiada que surge o caráter personalíssimo do pacto [4].

Não se pode olvidar que a responsabilidade penal das pessoas jurídicas no ordenamento jurídico brasileiro se restringe aos crimes ambientais, seara que possibilitaria, em tese, um acordo de colaboração premiada de uma pessoa jurídica, visto que o acordo de colaboração premiada é um negócio jurídico processual afeto aos direitos penal e processual penal, searas jurídicas nas quais os titulares dos direitos em discussão (direitos ao silêncio, garantia da não autoincriminação e persecução penal) poderão transacionar.

Conclui-se que em regra uma pessoa jurídica não pode celebrar acordo de colaboração premiada, salvo na restrita hipótese de ter sido responsável pela prática delitiva, cabível no Brasil apenas para os crimes ambientais.


[3] "Artigo 4 (…)

(…) §6º. O juiz não participará das negociações realizadas entre as partes para a formalização do acordo de colaboração, que ocorrerá entre o delegado de polícia, o investigado e o defensor, com a manifestação do Ministério Público, ou, conforme o caso, entre o Ministério Público e o investigado ou acusado e seu defensor.
§7º. Realizado o acordo na forma do §6º deste artigo, serão remetidos ao juiz, para análise, o respectivo termo, as declarações do colaborador e cópia da investigação, devendo o juiz ouvir sigilosamente o colaborador, acompanhado de seu defensor, oportunidade em que analisará os seguintes aspectos na homologação: (Redação dada pela Lei nº 13.964, de 2019)
I – regularidade e legalidade; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
II – adequação dos benefícios pactuados àqueles previstos no caput e nos §§4º e 5º deste artigo, sendo nulas as cláusulas que violem o critério de definição do regime inicial de cumprimento de pena do artigo 33 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), as regras de cada um dos regimes previstos no Código Penal e na Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984 (Lei de Execução Penal) e os requisitos de progressão de regime não abrangidos pelo §5º deste artigo; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
III – adequação dos resultados da colaboração aos resultados mínimos exigidos nos incisos I, II, III, IV e V do caput deste artigo; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
IV – voluntariedade da manifestação de vontade, especialmente nos casos em que o colaborador está ou esteve sob efeito de medidas cautelares. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)
§8º O juiz poderá recusar a homologação da proposta que não atender aos requisitos legais, devolvendo-a às partes para as adequações necessárias. (Redação dada pela Lei nº 13.964, de 2019) (,,,)" (Lei n. 12850/2013)".

[4] AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO CRIMINAL. COLABORAÇÃO PREMIADA REALIZADA ANTES DA LEI 12.850/2013. IMPUGNAÇÃO POR CORRÉU. IMPOSSIBILIDADE. EXISTÊNCIA DE OUTRAS NORMAS LEGAIS REGULAMENTANDO O INSTITUTO. IMPOSSIBILIDADE DE REEXAME DAS CLÁUSULAS DO ACORDO E DAS LEIS 9.613/1998 E 9.807/1999. AGRAVO A QUE SE NEGA PROVIMENTO. I – "Por se tratar de negócio jurídico personalíssimo, o acordo de colaboração premiada não pode ser impugnado por coautores ou partícipes do colaborador na organização criminosa e nas infrações penais por ela praticadas […]. De todo modo, nos procedimentos em que figurarem como imputados, os coautores ou partícipes delatados – no exercício do contraditório – poderão confrontar, em juízo, as declarações do colaborador e as provas por ele indicadas, bem como impugnar, a qualquer tempo, as medidas restritivas de direitos fundamentais eventualmente adotadas em seu desfavor" (HC 127.483, relator ministro Dias Toffoli, Tribunal Pleno). II – Para dissentir do acórdão impugnado e verificar a procedência dos argumentos consignados no apelo extremo, seria necessário o reexame das cláusulas constantes do termo de colaboração premiada – o que é vedado pela Súmula 454/STF – e das normas infraconstitucionais pertinentes ao caso, sendo certo que eventual ofensa à Constituição seria apenas indireta. III – Agravo regimental a que se nega provimento. STF RE 1103435 AgR / SP.

Autores

  • é mestre pela Universidade Católica de Brasília, doutorando pela Universidade do Porto, pós-graduado em Direito Público pela ESMPU e em Ciências Criminais pela Uniderp, orientador pedagógico da ESMPU, ex-procurador da Fazenda Nacional e atualmente procurador da República e membro-auxiliar na Assessoria Criminal no STJ.

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