Opinião

Inelegibilidade superveniente no caso do vereador Gabriel Monteiro

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25 de agosto de 2022, 11h04

A Câmara Municipal do Rio de Janeiro, em sessão plenária histórica, ocorrida no último dia 18, decretou a perda do mandato do vereador Gabriel Monteiro por quebra de decoro parlamentar[1] — fato jurídico que, indubitavelmente, acarreta a sua inelegibilidade[2], por força do disposto no artigo 1º, I, "b", da Lei Complementar nº 64/1990[3].

Fernando Frazão/Agência Brasil
O vereador pelo Rio Gabriel Monteiro
Fernando Frazão/Agência Brasil

Não obstante, exsurgiu no meio político e jurídico forte polêmica quanto à incidência dessa inelegibilidade para as eleições de 2022, na medida em que o ex-parlamentar já havia formalizado junto ao TRE (Tribunal Regional Eleitoral) o seu pedido de registro de candidatura para deputado federal antes do dia de sua cassação e uma alteração no artigo 262 do Código Eleitoral, promovida pelo artigo 4º Lei nº 13.877/2019, acabou por esvaziar o instituto da denominada inelegibilidade superveniente. Cabe transcrever o dispositivo:

"Art. 262. O recurso contra expedição de diploma caberá somente nos casos de inelegibilidade superveniente ou de natureza constitucional e de falta de condição de elegibilidade.
§ 1º A inelegibilidade superveniente que atrai restrição à candidatura, se formulada no âmbito do processo de registro, não poderá ser deduzida no recurso contra expedição de diploma.
§ 2º A inelegibilidade superveniente apta a viabilizar o recurso contra a expedição de diploma, decorrente de alterações fáticas ou jurídicas, deverá ocorrer até a data fixada para que os partidos políticos e as coligações apresentem os seus requerimentos de registros de candidatos.
§ 3º O recurso de que trata este artigo deverá ser interposto no prazo de 3 (três) dias após o último dia limite fixado para a diplomação e será suspenso no período compreendido entre os dias 20 de dezembro e 20 de janeiro, a partir do qual retomará seu cômputo."[4]

Antes de discorrer sobre a interpretação inédita de tais dispositivos — que não puderam ser aplicados às eleições de 2020 em decorrência da regra da anualidade eleitoral prevista no artigo 16 da Constituição da República[5] — cumpre expor, muito brevemente, a vetusta jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral, estampada na Súmula 47: "[a] inelegibilidade superveniente que autoriza a interposição de recurso contra expedição de diploma, fundado no art. 262 do Código Eleitoral, é aquela de índole constitucional ou, se infraconstitucional, superveniente ao registro de candidatura, e que surge até a data do pleito".

Noutras palavras, para a Súmula 47 do TSE, as hipóteses de inelegibilidade previstas na Constituição, independente de terem sua gênese antes ou após o registro de candidatura, desde que surgidas até a data da eleição, podem ser alegadas por RCED, ao passo que as inelegibilidades previstas em lei complementar apenas podem ser veiculadas por RCED, quando seu fato gerador se der após o registro de candidatura e até a data do pleito.

Logo se vê que o parágrafo 2º do artigo 262 do Código Eleitoral promove nova tipificação da inelegibilidade superveniente, desfigurando o próprio alcance das inelegibilidades previstas na Lei Complementar nº 64/1990, em violação frontal ao disposto no artigo 14, §9º da Constituição, que prescreve que I[l]ei complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação, a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para exercício de mandato considerada vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta".

Isto é, o §2º do artigo 262 do Código Eleitoral inviabilizou por completo a possibilidade de impugnação, via RCED, de um candidato que tenha se tornado inelegível por força da LC 64/1990, em data posterior à fixada para que os partidos políticos e as coligações apresentem os seus requerimentos de registros de candidatos (limite temporal para o fato constitutivo da inelegibilidade). Assim, a inelegibilidade superveniente, de superveniente passou a ter apenas o nome (!), em verdadeira afronta ao princípio da não contradição[6].

Com efeito, a um só tempo, violou-se a reserva de lei complementar para dispor sobre outros casos de inelegibilidades e os prazos de sua cessação[7] (inconstitucionalidade formal), e a finalidade constitucional de proteger a probidade administrativa, a moralidade para exercício de mandato considerada vida pregressa do candidato (inconstitucionalidade material), vez que o novel dispositivo constitui um inequívoco retrocesso na proteção de tais preciosos bens jurídicos, o que se revela incompatível com a proibição de proteção insuficiente[8] do direito fundamental à higidez do próprio sistema democrático-representativo.

Registre-se que no mesmo sentido da inconstitucionalidade formal posicionou-se a Presidência da República ao vetar os multicitados dispositivos. Vejamos:

 "A propositura legislativa, ao alterar as condições de elegibilidade e inelegibilidade pela Justiça Eleitoral gera insegurança jurídica para a atuação da Justiça Eleitoral. Além disto, o dispositivo invade matéria reservada à Lei Complementar, nos termos dos §§ 4º e 9º do art. 14 da Constituição da República."[9]

Sem embargo, há que se voltar atenção especial para o disposto no § 1º do artigo 262 do Código Eleitoral, que também constitui sensível inovação na disciplina da matéria.  Se por um lado o dispositivo veda que a inelegibilidade superveniente, uma vez formulada no âmbito do processo de registro, possa constituir causa de pedir em RCED, tem-se por ampliada, em relação ao direito precedente[10], a possibilidade de sua invocação no âmbito do processo de registro como um todo, isto é, até a sua conclusão final.

Quer-se com isto dizer que, uma vez declarada a inconstitucionalidade do §2º do artigo 262[11], o §1º passa a permitir que uma inelegibilidade surgida supervenientemente ao pedido de registro do candidato possa ser conhecida no âmbito do próprio processo de impugnação de seu registro[12] (inclusive, em momento posterior à propositora da ação[13]), evidentemente, observando-se o contraditório. Nessa linha de raciocínio, caso não seja invocada no processo de registro a inelegibilidade superveniente, esta poderá ser deduzida no recurso contra expedição de diploma.


[1] Conforme a Resolução nº 1.574, de 18 de agosto de 2022, publicada no DCM nº 156 de 19 de agosto de 2022, p.3, que foi aprovada por 48 votos favoráveis e apenas 2 contrários.

[2]Denomina-se inelegibilidade ou ilegibilidade o impedimento ao exercício da cidadania passiva, de maneira que o cidadão fica impossibilitado de ser escolhido para ocupar cargo político-eletivo. (…) Tal Impedimento é provocado pela ocorrência de determinados fatos previstos na Constituição ou por lei complementar.” (Gomes, José Jairo – Direito Eleitoral – 17.ed. – São Paulo: Atlas, 2021, p.241)

[3]Art. 1º São inelegíveis:
I – para qualquer cargo:
(…)
b) os membros do Congresso Nacional, das Assembléias Legislativas, da Câmara Legislativa e das Câmaras Municipais, que hajam perdido os respectivos mandatos por infringência do disposto nos incisos I e II do art. 55 da Constituição Federal, dos dispositivos equivalentes sobre perda de mandato das Constituições Estaduais e Leis Orgânicas dos Municípios e do Distrito Federal, para as eleições que se realizarem durante o período remanescente do mandato para o qual foram eleitos e nos oito anos subseqüentes ao término da legislatura
;”

[4] “Parágrafos 1º a 3º acrescidos pelo art. 4º da Lei nº 13.877/2019; veto presidencial a esses dispositivos rejeitado pelo Congresso Nacional e publicado no DOU de 13.12.2019.”

[5] “Art. 16. A lei que alterar o processo eleitoral entrará em vigor na data de sua publicação, não se aplicando à eleição que ocorra até um ano da data de sua vigência.”

[6] Segundo o gênio de Miguel Reale, “[o]s princípios por excelência são os de identidade e de não– contradição, de razão suficiente e de terceiro excluído. (…) Se uma coisa pudesse ser ao mesmo tempo o seu contrário, é claro que não haveria possibilidade de ciência. Os princípios de identidade e de não-contradição governam, como princípios universais, toda ciência e todas as possibilidades de conhecimento.” (Reale, Miguel, 1910-2006, Filosofia do direito / Miguel Reale. – 19. ed. – São Paulo Saraiva, 1999, p.60.)

[7] O caso Gabriel Monteiro bem ilustra o inequívoco encurtamento do prazo de inelegibilidade previsto no art. 1º, I, “b” da LC nº 64/1990, notadamente, no que se refere ao “período remanescente do mandato para o qual [foi] eleito”.

[8] Como asseverou o ministro Gilmar Mendes em voto proferido no Mandado de Injunção nº 7.300/DF: “(…)os direitos fundamentais não podem ser considerados apenas como proibições de intervenção (Eingriffsverbote), expressando também um postulado de proteção (Schutzgebote). Utilizando-se da expressão de Canaris, pode-se dizer que os direitos fundamentais expressam não apenas uma proibição do excesso (Übermassverbote), mas também podem ser traduzidos como proibições de proteção insuficiente ou imperativos de tutela (Untermassverbote).

A forma como o dever de proteção de direitos fundamentais deve ser satisfeita constitui, muitas vezes, tarefa dos órgãos estatais que dispõem de alguma liberdade de conformação.

Como adverte Bernhard Schlink, a tutela insuficiente não seconfigura apenas quando o Estado não faz nada para atingir dado objetivo para o qual deva envidar esforços, mas também quando os instrumentos de tutela existentes não se afiguram aptos a garantir o exercício de direitos e liberdades individuais.” (MI 7300 / DF – DISTRITO FEDERAL – MANDADO DE INJUNÇÃO – Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO – Redator(a) do acórdão: Min. GILMAR MENDES – Julgamento: 27/04/2021 – Publicação: 23/08/2021 – Órgão julgador: Tribunal Pleno)

[9] Diário Oficial da União – Seção 1 – Edição Extra – A – 27/9/2019, Página 3.

[10] A jurisprudência do TSE, ao interpretar o art. 262 (sem as alterações promovidas pelo art.4º da Lei nº 13.877/2019), em reiteradas oportunidades já assentou que “[a] inelegibilidade preexistente deve ser considerada para todos os fins na apreciação do registro, não se confundindo com o conceito de inelegibilidade superveniente, ou seja, aquela condição subsumida à hipótese legal surgida após o registro de candidatura até a data do pleito.” (0600002-33.2021.6.16.0194 – REspEl – Agravo Regimental no Recurso Especial Eleitoral nº 060000233 – MATINHOS – PR – Acórdão de 19/04/2022 – Relator Min. Alexandre de Moraes – Publicação: DJE – Diário da justiça eletrônico, Tomo 80, Data 04/05/2022)

[11] Por ação direta de inconstitucionalidade ou pela via difusa no julgamento de impugnação a registro de candidatura.

[12] “Art. 97. Protocolado o requerimento de registro, o presidente do Tribunal ou o juiz eleitoral, no caso de eleição municipal ou distrital, fará publicar imediatamente edital para ciência dos interessados.

§ 1º O edital será publicado na Imprensa Oficial, nas capitais, e afixado em cartório, no local de costume, nas demais zonas.

§ 2º Do pedido de registro caberá, no prazo de 2 (dois) dias, a contar da publicação ou afixação do edital, impugnação articulada por parte de candidato ou de partido político.”

[13] Cabe aqui invocar a aplicação subsidiária dos artigos 493 e 933 do Código de Processo Civil:

Art. 493. Se, depois da propositura da ação, algum fato constitutivo, modificativo ou extintivo do direito influir no julgamento do mérito, caberá ao juiz tomá-lo em consideração, de ofício ou a requerimento da parte, no momento de proferir a decisão.
Parágrafo único. Se constatar de ofício o fato novo, o juiz ouvirá as partes sobre ele antes de decidir.

 Art. 933. Se o relator constatar a ocorrência de fato superveniente à decisão recorrida ou a existência de questão apreciável de ofício ainda não examinada que devam ser considerados no julgamento do recurso, intimará as partes para que se manifestem no prazo de 5 (cinco) dias.

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