Direto do Carf

O dilema de Alice e o Gato de Cheshire: a Súmula Carf nº 97 e o caminho a se seguir

Autor

  • Carlos Augusto Daniel Neto

    é sócio do escritório Daniel & Diniz Advocacia Tributária doutor em Direito Tributário pela Universidade de São Paulo (USP) mestre em Direito Tributário pela PUC-SP com estágio pós-doutoral em Direito Tributário na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) é visiting scholar no Max-Planck-Instituts für Steuerrecht und Öffentliche Finanzen ex-conselheiro titular da 1ª e 3ª Seções do Carf pesquisador do NEF/FGV presidente da Comissão de Direito Aduaneiro do Iasp e professor permanente do mestrado profissional do Cedes e da pós-graduação do IBDT.

24 de agosto de 2022, 8h01

Em sua coluna de 16/8/2022, aqui no ConJur (link), Rosaldo Trevisan, com sua escrita sempre brilhantemente técnica e espirituosa, escreveu um artigo relacionando a questão do "Dano ao Erário" nas penalidades aduaneiras a trechos do livro "Alice no País das Maravilhas”, do inglês Lewis Carroll, lançada em 1865. É, sem favor e sem dúvida, uma das minhas obras literárias favoritas, que a cada releitura me apresenta uma nova camada de interpretações e reflexões.

Spacca
A lembrança da obra me fez rememorar uma célebre a passagem — talvez uma das mais famosas de todo o livro — em que Alice, a protagonista, se encontra com o Gato de Cheshire, o famoso gato sorridente, e estabelecem o seguinte diálogo, adaptado para abrirmos nosso artigo [1]:

 

Alice: Você poderia me dizer, por favor, qual o caminho para sair daqui?

Gato: Depende muito de onde você quer chegar.

Alice: Não me importa muito onde…

Gato: Nesse caso não faz diferença por qual caminho você vá.

Alice: …desde que eu chegue a algum lugar.

Gato: Oh, esteja certa de que isso ocorrerá, desde que você caminhe o bastante.

Reprodução

O Lucro Arbitrado é uma das bases de cálculo possíveis do imposto de renda, ao lado do Lucro Real e do Lucro Presumido. Apesar do Lucro Real coligir a maior quantidade de elementos com a finalidade de maximizar a pessoalidade na apuração do IRPJ, o Lucro Presumido e o Arbitrado também são baseados em fatos indiciários de capacidade contributiva, ainda que menos pessoais – um se justifica pela liberdade de opção do contribuinte, o outro pela presença de situações nas quais seria impossível ou altamente difícil apurar o Lucro Real.

Em suma, o Lucro Arbitrado é uma base de cálculo possível para o IRPJ, que se justifica pela impossibilidade ou elevadíssima dificuldade para mensurar a renda daquele contribuinte que não mantém livros contábeis, ou os mantém cheios de erros que comprometem sua veracidade, e que não atendem a deveres instrumentais imprescindíveis à essa determinação, em uma evidente concessão à praticabilidade tributária.

Trata-se, à evidência, de um meio subsidiário de apuração dos tributos sobre a renda. Nesse sentido, o Carf tem reconhecido que "o artigo 47 da Lei nº 8.981, de 1995, ao usar a expressão de que o lucro será arbitrado, nos casos que especifica, não confere faculdade à autoridade fiscal, mas sim comando impositivo quanto à forma de tributação" (acórdão nº 1402-000.728 [2]) e, mais do que isso, que "o arbitramento é medida extrema, que deve ser adotada, principalmente, quando restar impossível a apuração da base de cálculo do imposto de acordo com a forma de tributação escolhida pelo Contribuinte" (acórdão nº 1401-002.200 [3], 1401-005.924 [4]).

A adoção do Lucro Arbitrado é obrigatória diante das hipóteses legais estabelecidas no artigo 603 do RIR/2018. Não é objeto do presente artigo analisá-las, valendo mencionar apenas que se referem a situações com descumprimento de obrigações acessórias, não apresentação de dados escriturais e apresentação de escrituração imprestável — impossibilitando a apuração do lucro —, ou em caso de opção indevida pelo Lucro Presumido. Presente pelo menos uma dessas situações, e se verificando a impossibilidade de coligir elementos para calcular o Lucro Real, a Receita Federal deverá prosseguir com a apuração pelo Lucro Arbitrado.

O cálculo do Lucro Arbitrado pode se dar de duas formas: 1) em se conhecendo a receita bruta, adota-se a forma do artigo 605 do RIR/2018, através da sua multiplicação pelos percentuais utilizados na sistemática de lucro presumido, majorados em 20%, aplicando-se daí as alíquotas cabíveis de IRPJ; 2) caso a receita bruta não seja conhecida, a legislação estabelece parâmetros alternativos para esse cálculo, conforme o artigo 608 do RIR/2018, valendo-se de diversas grandezas distintas, tais como valores em contas de ativo, capital social ou patrimônio líquido, compras realizadas no mês, folha de salários, aluguel mensal etc., aplicando a cada uma um percentual próprio.

Pois bem. É exatamente na apuração do Lucro Arbitrado, nas hipóteses em que não se conhece a receita bruta, que se situa o problema a ser enfrentado nesse texto.

É evidente que a escolha por um dos oito métodos alternativos do artigo 608 do RIR/2018 pode conduzir a valores os mais diversos, na apuração do Lucro Arbitrado. E.g. considerando uma empresa que tenha um capital social muito inferior ao seu patrimônio líquido, a adoção do primeiro elemento gerará um lucro muito menor que o segundo.

Diante disso, alguns contribuintes alegam que a fiscalização deveria adotar o parâmetro que gere o menor ônus tributário, em um raciocínio construído por analogia do modelo brasileiro de preços de transferência, que adota a regra do melhor método (best method rule), em favor da liberdade do contribuinte em escolher aquele que lhe dê o resultado mais favorável, com base no artigo 20-A da Lei nº 9.430/96.

Por outro lado, esse pleito tem sido rejeitado peremptoriamente com fundamento na Súmula Carf nº 97, que dispõe, verbis:

"Súmula CARF nº 97: O arbitramento do lucro em procedimento de ofício pode ser efetuado mediante a utilização de qualquer uma das alternativas de cálculo enumeradas no art. 51 da Lei nº 8.981, de 20 de janeiro de 1995, quando não conhecida a receita bruta."

Em diversos acórdãos que analisaram questionamentos dos contribuintes quanto à eleição da base de cálculo, tem se consignado que essa súmula facultaria à fiscalização a escolha de qualquer um dos critérios previstos no artigo 51 da Lei nº 8.981 (equivalente ao artigo 608 do RIR/2018), de forma discricionária, para o cálculo do Lucro Arbitrado (e.g. acórdãos nº 1402-005.648 [5] e 1201-002.669 [6]).

Nenhum dos lados parece estar correto nessa discussão.

Por um lado, não entendemos que o contribuinte tenha direito ao método menos oneroso, como pleiteado, e tampouco há semelhanças o suficiente para aplicar, por analogia, o regime de preços de transferência.

Entendemos que a escolha do critério não é discricionária, como de resto o artigo 608, §1º, do RIR/2018 [7] já sinaliza, ao determinar a aplicação dos critérios dos incisos V, VI e VII do artigo 608 às atividades comerciais, industriais e de prestação de serviços, respectivamente. Esse dispositivo sinaliza, com acerto, que mesmo no procedimento de apuração do Lucro Arbitrado, a fiscalização deve sempre buscar a eleição de índices de riqueza que estejam mais adequados ao caso.

Nessa linha, a escolha do critério nunca pode ser discricionária. Pelo contrário, cabe à fiscalização demonstrar que o parâmetro escolhido é o mais fidedigno, à luz do caso concreto, para refletir a capacidade econômica do contribuinte, atendendo à determinação do artigo 145, §1º, da CF/88. Para isso, o fiscal deve justificar, no auto de infração, a escolha por determinado método, considerando as características do contribuinte e a informação disponível.

Mais ainda, a escolha do critério não deve ser voltada nem a maximizar e nem a minimizar o ônus tributário, mas sim buscar estabelecer uma conexão por proximidade com a forma como a empresa aufere suas receitas.

Por exemplo, ao se fiscalizar uma empresa de tecnologia, cujos rendimentos sejam majoritariamente derivados da exploração de intangíveis, não faz sentido se optar pela folha de salários ou pelo aluguel mensal devido como índices, pois gerarão um lucro distorcido. Em uma situação como essa, deve-se buscar a soma do valor dos ativos, ou o seu patrimônio líquido, como critérios mais fidedignos.

Em suma: a escolha do critério dentre os listados no artigo 608 do RIR/2018 não é discricionária, devendo guardar um grau relevante de conexão com a própria atividade da pessoa jurídica, podendo ser objeto de contestação pelo contribuinte, caso a opção se demonstre arbitrária.

E quanto ao teor da Súmula nº 97?

Com a devida vênia, analisando os acórdãos precedentes da referida súmula [8], parece-nos que aplicá-la para validar essa suposta discricionariedade é um equívoco.

A tônica dos precedentes se relaciona à obrigação do Fisco apurar o Lucro Arbitrado, com base em um dos critérios do artigo 51 da Lei nº 8.981/95, nos casos em que a receita bruta do contribuinte não seja conhecida, e não a respeito da existência de liberdade da fiscalização na escolha de qual método utilizar.

Compulsando todas as decisões, se verifica que em nenhuma delas os contribuintes argumentavam pela utilização de um ou outro critério dentre os previstos no referido artigo, mas contra a própria realização do arbitramento. Não há, nos precedentes, qualquer discussão acerca da existência de discricionariedade ou não da fiscalização na eleição dos métodos arrolados no artigo 608 do RIR/2018.

É curioso comparar a redação da súmula com a ementa do acórdão nº 101-94.964, de onde ela foi "extraída", que dispõe: "Cabível o arbitramento do lucro através de procedimento de ofício, mediante a utilização de uma das alternativas de cálculo enumeradas no art. 51 da Lei nº 8.981, de 20 de janeiro de 1995, quando não conhecida à receita bruta".

Como se vê, enquanto a ementa falava em "utilização de uma das alternativas", o texto da súmula ficou "utilização de qualquer uma das alternativas", explicitamente dando a entender que o seu conteúdo se relacionaria à discricionariedade da fiscalização, induzindo os aplicadores em erro, ao ostentar uma redação que não está em conformidade com seus precedentes.

Portanto, entendemos que a súmula Carf nº 97 não poderia ser aplicada aos casos em que o contribuinte questione a escolha do critério de arbitramento do lucro, nas hipóteses de receita bruta não conhecida, com base no artigo 608 do RIR/2018.

Por meio da aplicação equivocada do referido enunciado sumular, o Carf tem permitido aos auditores-fiscais reproduzir, de forma distorcida, o dilema da Alice: ao alegarem não saber onde pretendem chegar, a súmula faz as vezes do Gato de Cheshire, avisando que qualquer caminho serve, para quem não se importa com o destino.

Trata-se de um falso dilema, pois a fiscalização possui, sim, um objetivo: a mensuração — da melhor forma possível — da capacidade econômica do contribuinte, mesmo nas hipóteses em que se recorra a elementos indiciários para apuração da base de cálculo. O Lucro Arbitrado é uma base de cálculo subsidiária em relação ao Lucro Real, mas essa concessão à praticabilidade não confere ao arbitramento natureza punitiva nem implica uma supressão absoluta do princípio da capacidade contributiva na eleição do critério adotado.

Ora, se há um destino a alcançar, o dilema se desfaz, pois nem todos os caminhos passam a ser igualmente válidos, e o conselho da nossa Súmula-Gato, de que "qualquer uma das alternativas de cálculo" poderia ser utilizada, perde qualquer sentido.

Trata-se, em rigor, de mais uma súmula cujo teor discrepa do conteúdo dos precedentes que a formaram, contribuindo para uma confusão no momento de sua aplicação e, ao final, no bloqueio de um possível e legítimo argumento de defesa dos contribuintes, na hipótese de arbitramento dos lucros.

Em outra passagem da obra de Carroll, Alice vê o Gato desaparecendo devagar, da ponta do rabo até sobrar apenas o seu sorriso, e exclama: "Epa! Eu já vi muitos gatos sem sorriso, mas nunca um sorriso sem gato! É a coisa mais curiosa que já vi em toda a minha vida!". Parafraseando a primeira parte da afirmação, posso dizer que já vi muitos precedentes sem súmulas que os resumissem, mas nunca espero ver por aí súmulas que não sejam de acordo com seus precedentes. Quanto à segunda parte da frase, fica difícil parafraseá-la, quando tem se tornado cada vez menos curiosa a identificação desse fenômeno nas súmulas do Carf.

Temos nos esforçado em demonstrar, ao longo de diversos artigos desta coluna, que as súmulas do Carf têm muitos problemas na sua formação e na sua aplicação, por exemplo, no caso das Súmulas 11 (link), 169 (link) e 172 (link), que demandam uma revisitação crítica e urgente por parte da doutrina e do próprio tribunal, institucionalmente e por seus conselheiros. Àquelas que não atenderem aos standards jurídicos de criação e aplicação, deve valer a ordem preferida da Rainha de Copas: "Cortem-lhe a cabeça!".

 


[1] Adaptado a partir de: CARROLL, Lewis. Alice no País das Maravilhas, 2ª ed. São Paulo: Objetivo, 2000, p.81.

[2] Rel. Moisés Giacomelli, j. 29/9/2011.

[3] Rel. Luiz Augusto de Souza, j. 21/2/2018.

[4] Redator Designado André Severo Chaves, j. 18/10/2021.

[5] Rel. Evandro Correa Dias, j. 17/6/2021.

[6] Rel. Gisele Bossa, j. 21/11/2018.

[7] Art. 608. (…) § 1º. As alternativas previstas no inciso V ao inciso VII do caput , a critério da autoridade lançadora, poderão ter a sua aplicação limitada, respectivamente, às atividades comerciais, industriais e de prestação de serviços e, na hipótese de empresas com atividade mista, ser adotados isoladamente em cada atividade

[8] Acórdãos Precedentes: Acórdão nº 107-07.325, de 10/9/2003; Acórdão nº 105-14.330, de 18/03/2004; Acórdão nº 101-94.964, de 18/5/2005; Acórdão nº 107-08419, de 25/1/2006; Acórdão nº 1202-00.074, de 17/6/2009; Acórdão nº 1803-001.578, de 07/11/2012

Autores

  • é sócio do escritório Daniel & Diniz Advocacia Tributária, em estágio pós-doutoral em Direito Tributário na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), doutor em Direito Tributário pela Universidade de São Paulo (USP), mestre em Direito Tributário pela PUC-SP, ex-conselheiro titular da 1ª e 3ª Seções do Carf, pesquisador do NEF/FGV e do Nupem/IBDT e professor permanente do mestrado profissional do Cedes e de diversos cursos de pós-graduação.

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