Território Aduaneiro

Alice no país do "dano ao erário" e o Decreto-Lei 1.455/1976

Autor

  • Rosaldo Trevisan

    é doutor em Direito (UFPR) professor assessor/consultor da Organização Mundial das Aduanas (OMA) do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional (FMI) auditor-fiscal da Receita Federal membro especialista do Carf e membro da Junta Diretiva da Academia Internacional de Direito Aduaneiro (Icla).

16 de agosto de 2022, 8h03

Todas as características que comentamos em relação aos "clássicos", em coluna anterior [1], estão presentes na conhecida obra de Lewis Carroll intitulada "As Aventuras de Alice no País das Maravilhas" ("Alice's Adventures in Wonderland", comumente abreviada para "Alice no País das Maravilhas", e derivada do manuscrito "Alice's Adventures Under Ground") [2].

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A obra clássica (portanto, todos admitirão tê-la lido!) foi traduzida para tantos idiomas que gerou livro específico sobre as traduções, tratando das 174 línguas nas quais há mais de 9.000 edições publicadas de seu texto e da sequência de 1871 ("Through the Looking-Glass" — no Brasil, "Alice no País do Espelho") [3].

Mas qual a relação da obra de ficção de Lewis Carroll com o "dano ao erário"? Convido o leitor curioso (como Alice) e com pouco tempo (como o coelho de colete) a seguir este breve artigo para descobrir, entrando na "toca" do Direito Aduaneiro.

Não encontramos menção ao "dano ao erário" nem em nosso texto normativo aduaneiro mais longevo, a "Nova Consolidação das Leis das Alfândegas e Mesas de Rendas" (NCLAMR) da República, de 1894 [4], que chegou a estabelecer diversas hipóteses de "perda das mercadorias, vehiculos e animaes" (v.g., no caso de falsificação de guias — artigo 361; fundo falso — artigo 397 e fraude — artigo 564), nem em nossa principal norma aduaneira de ordem legal vigente, o Decreto-Lei 37/1966, que estabeleceu seis condutas que ensejam perda de veículo (artigo 104) e de 19 hipóteses de perda de mercadoria (artigo 105).

À época em que foi redigido o Decreto-Lei 37/1966, a Constituição brasileira vigente, de 1946, já estabelecia, em seu artigo 141, § 31, que a "…lei disporá sobre o sequestro e o perdimento de bens, no caso de enriquecimento ilícito, por influência ou com abuso de cargo ou função pública, ou de emprego em entidade autárquica". A Constituição seguinte, de 1967, pareceu manter a ideia básica desse comando em seu artigo 150, § 11, tanto em sua redação original ("A lei disporá sobre o perdimento de bens por danos causados ao erário ou no caso de enriquecimento ilícito no exercício de função pública") quanto na estabelecida pelo Ato Institucional 14/1969, que alterou "função pública" por "função ou emprego na Administração Pública, Direta ou Indireta".

Seja sob a égide da Constituição de 1946, ou da Constituição de 1967 (ou mesmo da Emenda Constitucional 1/1969, que manteve a referência a "perdimento de bens por danos causados ao erário" no § 11 de seu artigo 153), a pena de perda continuou a ser aplicada nas hipóteses previstas no Decreto-Lei 37/1966, sendo de pouca relevância os excertos constitucionais sobre "perdimento" e "danos causados ao Erário", que, aparentemente tinham destinatário distinto — a improbidade administrativa, e não obstavam (como nunca obstaram, na anterior vigência da NCLAMR) a perda administrativa de mercadorias e veículos aplicada pela fiscalização aduaneira.

Mas ao lado do texto da Constituição de 1967 ("perdimento de bens por danos causados ao erário" – mantido no artigo 153 da Emenda Constitucional 1/1969), Alice (materializada no Decreto-Lei 1.455/1976) encontrou "…uma garrafinha, em cujo gargalo estava enrolado um rótulo de papel com as palavras 'BEBA-ME’ graciosamente impressas em letras graúdas".

E o Decreto-Lei 1.455/1976, como revela a Exposição de Motivos 102, que o acompanha, publicada no Diário do Congresso Nacional de 24/4/1976, deu um longo gole, esclarecendo que "…nos artigos 23 e 24, com fulcro no artigo 153 da Lei Magna, enumeram-se as infrações, que, por constituírem dano ao Erário, são punidas com a pena de perdimento de bens".

Aqui se poderia apontar que a reduzida Alice (ainda na forma do Decreto-Lei 1.455/1976) encontra um minúsculo bolo "…com as palavras 'COMA-ME' lindamente escritas com passas", e o devora, buscando voltar a seu tamanho normal. Mas pelo espaço destinado a este artigo na coluna, interrompemos a sequência do clássico, ainda no início do Capítulo 2 ("A lagoa de lágrimas"), para tratar de lógica, tema presente de forma recorrente na obra de Carroll.

O Decreto-Lei 1.455/1976, em seu artigo 23, caput, estabelece: "Consideram-se dano ao Erário as infrações relativas às mercadorias…", em texto que é seguido por quatro incisos, que tratam de mercadorias importadas com licença de emissão vedada ou suspensa (I); de mercadorias consideradas abandonadas por decurso de prazo de permanência em recintos alfandegados (II e III); e das hipóteses já qualificadas como "perda" de mercadoria pela legislação anterior — Decreto-Lei 37/1966 [5]. E no parágrafo único original (atual § 1º), dispôs o artigo 23 que "…o dano ao erário decorrente das infrações previstas no caput deste artigo será punido com a pena de perdimento das mercadorias".

Essa construção espelha um silogismo. As infrações listadas constituem dano ao erário (toda "IL" é "DE"), e o dano ao erário é punido com a pena de perdimento (todo "DE" é punido com "PP"). Logo, todas as infrações listadas são punidas com a pena de perdimento (toda "IL" é punida com "PP") [6]. E, nesse silogismo, a premissa de que toda "IL" é "DE" deriva da competência constitucionalmente atribuída à lei para "dispor sobre…".

Assim, no silogismo presente no artigo 23 do Decreto-Lei 1.455/1976, quem resta encolhida é a importância do conteúdo da expressão "dano ao Erário", a priori atrelada às condutas presentes nos incisos. Enfatize-se que não está o artigo 23 a afirmar que as condutas ali arroladas serão punidas com o perdimento se houver dano ao erário, mas que as condutas constituem dano ao erário, e, portanto, serão punidas com o perdimento.

Isso torna o debate referente à natureza jurídica do "dano ao Erário", atrelado à aplicação da pena de perdimento, um dos mais inócuos e infrutíferos do Direito Aduaneiro.

Aliás, a discussão sobre natureza jurídica não poderia deixar de remeter à interessante passagem narrada por Genaro Carrió, em suas "Notas sobre Derecho y Lenguaje", em palavras que ele próprio considerou "… talvez, un poco duras…" (deixo ao leitor o juízo final sobre isso!), justamente no prefácio da obra "Naturaleza jurídica de la letra de cambio", de Eugenio Bulygin, publicada em 1961: "Las afanosas pesquisas de los juristas por ‘descubrir’ la naturaleza jurídica de tal o cual institución o relación están de antemano y en forma irremisible destinadas al fracasso. Entre otras razones, porque lo que se busca, tal como se lo busca, no existe" [7].

Compreendendo-se erário como o Tesouro Público, há certa tentação a se atrelar o "dano ao Erário" presente na legislação aduaneira à falta de pagamento de tributos. No entanto, essa tentação é logicamente contida, seja porque o artigo 23 do Decreto-Lei 1.455/1976 já delimitou a abrangência da expressão (em seus incisos), seja porque o Direito Aduaneiro não tutela apenas matéria tributária (não se crê que haja dúvidas de que uma mercadoria de importação proibida, ou com licença de emissão vedada ou suspensa, deve ser apreendida para fins de aplicação da pena de perdimento, tenha ou não havido pagamento de tributos), ou mesmo porque há hipóteses de perdimento (como as de abandono de mercadorias por decurso de prazo de permanência em recintos alfandegados) em que não há prejuízo, em geral, mas aumento de recursos para o Tesouro Público. A quem, a exemplo do que vem pregando esta coluna [8], considere relevante saber como os demais países e a legislação internacional disciplinam o tema, fica o desafio de encontrar uma legislação aduaneira que puna com a perda apenas mercadorias para as quais não tenham sido pagos tributos.

Para apequenar ainda mais a importância do estudo do significado da expressão "dano ao Erário" em matéria aduaneira, adicione-se que a atual Constituição Federal brasileira, de 1988, voltou a tratar de "Erário" com referência a "improbidade administrativa" (v.g., artigos 37 e 71), apartando tal disposição da congênere aos textos anteriores, presente nos direitos e garantias individuais — artigo 5º, que trata do perdimento (incisos XLV e XLVI).

A falta de pagamento de tributos não é, assim, uma condição necessária à aplicação da pena de perdimento, em matéria aduaneira. Esse tema está assentado em súmula no âmbito do Carf, em relação à multa que substitui o perdimento: "Súmula CARF 160: A aplicação da multa substitutiva do perdimento a que se refere o § 3º do art. 23 do Decreto-lei nº 1.455, de 1976 independe da comprovação de prejuízo ao recolhimento de tributos ou contribuições".

Entender o contrário equivale a negar o conteúdo do texto do artigo 23 do Decreto-Lei 1.455/1976, acreditando que as infrações relacionadas nos incisos NÃO constituem dano ao erário, se não ficar, em cada caso, provada a falta de recolhimento de tributos. Ademais, das 33 hipóteses puníveis com o perdimento da mercadoria, no Brasil, apenas quatro (reproduzidas nos incisos IX, XI, XIII e XVI do artigo 105 do Decreto-Lei 37/1966) [9] vinculam o perdimento à falta dolosa de pagamento de tributos. Por que tais hipóteses seriam criadas se em todas as demais devesse existir a mesma condição?

No "depoimento de Alice" (Capítulo 12), o rei, já sem argumentos plausíveis, suscitou um certo artigo 42 do reino, que afirmava que "…todas as pessoas com mais de 1,5 Km de altura devem abandonar o tribunal”, ao que Alice retrucou que esse artigo acabara de ser inventado pelo rei, tendo este respondido que “…é o artigo mais antigo do Código". Mas o rei empalideceu e encerrou os debates, para que fosse dado o veredito, quando Alice disse: "…então deveria ser o artigo número um".

A exigência de comprovação de falta de pagamento de tributos como condição à aplicação do perdimento aduaneiro, invocando requisito inexistente no texto do Decreto-Lei 1.455/1976, não resiste à lógica, ao tempo, ao benchmarking e ao Direito. É isso que buscamos apresentar em nossa coluna de hoje, inspirando-se no espírito lógico e bem humorado do narrador das aventuras de Alice.

Charles Lutwidge Dodgson, professor de Geometria e Álgebra em Oxford, e que se destacou academicamente como lógico, especialmente na lógica matemática e nos jogos capazes de testar a razão, em publicações como "The Game of Logic" (1887) e "Symbolic Logic" (1896), tinha um talento adicional, e que lhe rendeu fama mundial: o de aplicar seus conhecimentos em obras de ficção, mesclando lógica e nonsense. Mas não desejava usar, nessa segunda atividade, o mesmo nome que adotava nas publicações científicas. Passou a utilizar, então, nas obras de ficção, o pseudônimo de Lewis Carroll [10].

O Coelho Branco colocou seus óculos: "Por onde devo começar, se Vossa Majestade permite?", ele perguntou. "Comece pelo começo", disse o rei com muita gravidade, "e siga até o fim: daí pare".

 


[1] Por que ler os clássicos? (versão Direito Aduaneiro), coluna Território Aduaneiro de 12/7/2022, disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-jul-12/territorio-aduaneiro-ler-classicos-versao-direito-aduaneiro.

[2] A fantástica obra, publicada em 1865, uma das mais populares da história em língua inglesa, pode ser encontrada em edição digitalizada, no âmbito do Projeto Gutemberg, em https://www.adobe.com/be_en/active-use/pdf/Alice_in_Wonderland.pdf, com as 42 ilustrações imperdíveis de (Sir) John Tenniel.

[3] Alice in a World of Wonderlands: The Translations of Lewis Carroll's Masterpiece, editada por Jon Lindseth e Alan Tannenbaum, em 2015 (mencionado, mas não disponível para venda em: https://www.amazon.com/Alice-World-Wonderlands-Translations-Masterpiece/dp/1584563311). Há várias traduções para o português, entre as quais destacamos a efetuada por Clélia Regina Ramos, em 2002, disponível para uso público não comercial em: http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/alicep.pdf, que serviu de base para os trechos que transcreveremos no artigo, e a de Maria Luiza X. de A. Borges, da obra e de sua sequência, disponíveis em https://www.ufrgs.br/psicoeduc/arquivos/alice-no-pais-e-atraves-espelho-trad-m-l-borges.pdf, e antecedidas, inclusive, de aspectos polêmicos referentes à vida do autor.

[4] Disponibilizada pelo Senado brasileiro em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/item/id/518629.

[5] As seis condutas apenadas com "perda" de veículo receberam o mesmo tratamento, mas no caput do art. 24 do Decreto-Lei 1.455/1976. E o art. 23, em 2002, receberia ainda um inciso V, para mercadorias "estrangeiras ou nacionais, na importação ou na exportação, na hipótese de ocultação do sujeito passivo, do real vendedor, comprador ou de responsável pela operação, mediante fraude ou simulação, inclusive a interposição fraudulenta de terceiros". Mas isso é conversa para coluna futura.

[6] COPI, Irving M. Introdução à Lógica. Trad. Álvaro Cabral. 2. Ed. São Paulo, Mestre Jou, 1978, p. 170-172. As raízes da lógica podem ser atribuídas a Aristóteles, que, em seu "Organon", analisa e sistematiza os raciocínios, distinguindo-os em analíticos — sob o padrão dos silogismos, enunciados no esquema: se todos os B são C e se todos os A são B, então todos os A são C — e dialéticos — sob o padrão dos entinemas, ou silogismos dialéticos, nos quais nem todas as premissas são enunciadas, sendo os fundamentos apenas verossímeis ou plausíveis (ARISTÓTELES. Tratados de Lógica (El Organon). Trad./estudos/notas de Francisco Larroyo. Porrúa. México, 2011, p. 87-88, e 301-302). Pelas dimensões da coluna, é inviável o desenvolvimento de discussões mais densas sobre a lógica aplicada ao Direito, pelo que se remete, ilustrativamente, a: PERELMAN, Chaïm. Lógica jurídica: nova retórica. Trad. Vergínia K. Pupi. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004; a VILANOVA, Lourival. As estruturas lógicas e o Sistema de Direito Positivo. 4ª ed. São Paulo, Noeses, 2010; e a CARVALHO, Paulo de Barros (coord.). Lógica e Direito. São Paulo: Noeses, 2016.

[7] CARRIÓ. Genaro R. Notas sobre Derecho y Lenguaje. 5ª ed. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 2006, p. 101.

[8] V.g., em "Benchmarking aduaneiro" (presente na coluna de 31/5/2022 — https://www.conjur.com.br/2022-jun-07/territorio-aduaneiro-benchmarking-aduaneiro), e nos artigos de Fernanda Kotzias e Leonardo Branco (como "Acordo Brasil-EUA: nova fase para facilitação do comércio" — https://www.conjur.com.br/2022-jun-21/territorio-aduaneiro-acordo-brasil-eua-fase-facilitacao-comercio), de Fernando Pieri (a exemplo de "Entre Tiradentes e OCDE: valor aduaneiro e preços de transferência" — https://www.conjur.com.br/2022-abr-19/territorio-aduaneiro-entre-tiradentes-ocde-valor-aduaneiro-precos-transferencia), e de Liziane Meira ("Regime de drawback em tempos de COVID e guerra na Ucrânia" — https://www.conjur.com.br/2022-mai-17/territorio-aduaneiro-regime-drawback-tempos-covid-19-guerra-ucrania).

[9] Para a visão integral das hipóteses apenadas com o perdimento, no Brasil: TREVISAN, Rosaldo. Uma contribuição à visão integral do universo de infrações e penalidades aduaneiras no Brasil, na busca pela sistematização. In: TREVISAN, Rosaldo (org.). Temas Atuais de Direito Aduaneiro III. São Paulo: Aduaneiras, 2022, p. 571-630.

[10] O pseudônimo de Lewis Carroll não foi usado somente nos textos que narram as aventuras de Alice (nome em homenagem a uma das três filhas de Henry Liddell, acadêmico amigo de Charles em Oxford), e chegou a ser empregado em problema lógico-filosófico denominado "What the Tortoise Said to Achilles". Cambridge University Press/Mind Association, Mind New Series, v. 4, nº 14 (apr. 1895), p. 278-280, disponível em: https://www.jstor.org/stable/2248015?origin=JSTOR-pdf. Essa publicação de "Lewis Carroll" recebeu nota de ECHAVE, Delia Teresa; URQUIJO, María Eugenia; e GUIBOURG, Ricardo A. Lógica, proposición y norma. 7ª reimpr. Buenos Aires: Astrea, 2008, p. 104-105.

Autores

  • é doutor em Direito (UFPR), professor, assessor/consultor da Organização Mundial das Aduanas (OMA), do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional (FMI), Auditor-Fiscal da RFB, membro especialista do Carf e membro da Junta Diretiva da Academia Internacional de Direito Aduaneiro (Icla).

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